O conflito estava preso no ar. As faíscas que brigavam entre si tentavam preservar o que agora ali se ofuscava. A cada segundo alguma luz se escurecia. A cada alternância de um tempo qualquer, uma faísca desataria em azar ou sorte, alguma vida na esquina seria totalmente persistência ou a própria morte. Não houve caso anterior de evolução.
Foi quando pensou ter aberto os olhos. Mas a noção de existência, mesmo vaga, veio primeiro pelos ouvidos. Algo pequeno, um som medroso e repetitivo, rangia insistente por ali. Onde estava. Não sabia de si. Não sabia sequer que o saber tanto já lhe importara. Veio então o silêncio e sentiu frio. Não como quem junta o corpo para se aquecer. Sentiu o que sentiu e isso fez com que movesse as mãos num espasmo, mas elas permaneceram rígidas. De súbito, um enjoo dentro se moveu sem nada avisar, dentro algo se intrigou e nada mais saberia explicar. Percebeu-se então virada, mexida, perdida, afogada no ar.
A cabeça tocando o chão. As mãos fedendo a ferro, aquele cheiro de sangue e corrente impossibilitando certezas. A cabeça no chão os cabelos pela face silenciosamente arquejante, ainda indefesa. Era sangue ou ferro. Os braços estendidos, o quadril alargado. Foi sentindo achando as mãos pelo cheiro de ferro coagulado. Como se cada corrente lhe pudesse dizer que sim, estava inteira. A cabeça no chão pesava inteira. Os olhos abertos eram só escuridão. A noção de existência que fora antes o som de um grilo elétrico, agora pelo cheiro do corpo ali meio doído, postergava a dissolução. Envolta naquele ar que a continha, os olhos piscaram de novo e o grilo num lado qualquer piscou. Rápido amanhecer do caminho que tão rápido por sobre ela se apagou. Estava onde estava, era certo. Mas estava, foi o que dentro se perguntou.
Silêncio comprimido vaza para dentro, não pode ser ouvido. Mas ali naquela imersa situação, ouviu tombando para dentro de si algum vislumbre de consciência, alguma tentativa de organização. Estou aqui isso é o chão estou presa ou perdi minhas mãos. O que era meu que me foi tirado. Foi tirado ou nunca tive. O peito arrasado. Os mamilos moídos, um frio arbitrário. A consciência volta primeiro testando a nossa capacidade de sobreviver. Foi lhe dando a noção das pernas dos joelhos feridos da canela dos pés assustados. Ao mesmo tempo o interior. O peso da lembrança que não voava como passado. A lembrança era seu presente. Era ela. Aquele lapso que explica tudo mas que rápido se esvái, substituído pelo absurdo em que se transformou a realidade. A cabeça no chão pesada querendo afundar. O frio na espinha era tão vivo que pareceu incapaz de a congelar. Foi quando uma lágrima escorreu precisa. Desceu o rosto não como sempre o descia. Escorreu se despedindo da secura dos olhos e esmaeceu entre os cabelos sujos de protesto, a tempo de morrer devagar indo sumir dentro do ouvido direito. Direita. Pisca o grilo elétrico. Um clarão de brinquedo fez-se à esquerda da lágrima. Esquerda. Assumiu dentro de si que estava naquele quarto. Que ainda estava no mesmo lugar.
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