Pesquisa

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

juntinhxs

antes
desejar era coisa solitária
ainda que eu te dissesse
estava sempre indo sozinho
como se estivesse junto à boiada

depois quebrou
a máquina quebrou
o corpo rangente
declarou
não vou mais
você está sozinho

eu estou desejando
retruquei surdo
eu desejo
e disse-me o corpo
desejo não é verbo que se conjuga sozinho

foram dias e noites em silêncio
tremendo, por certo
mas quieto
mordendo os lábios por dentro
sangrando como quem tentava
a todo o custo
compreender

como
faz
para
desejar
coletivo

aí acordei mais ameno
demorou
mas veio
acordei e senti
que o meu desejo
era vivo
porque eu pensava
não mais em ti
nem só em mim
mas bem na gente

a gente
essa coisa
de grupo
essa coisa povoada
que faz os desejos
falarem todos
em simultâneo

respirei
achei que foi depois de um longo banho
respirei e aceitei
que eu desejaria
em primeira pessoa
desejaria sim
se meu desejo viesse reagindo
respondendo ao seu
e vinha o meu
o seu
o do outro
da outra
e assim o baile seguiria
e assim eu deixaria de ser trouxa

e cá estou

espaçado

pensando delicado
na força que é andar junto
coletivamente
lado a lado
feito desejos com pernas
que trocam bolas
como trocam passos

eu quero ir junto
em primeira pessoa
eu desejo
mas só se for juntinho
e de verdade

sem medo dessa palavra

a verdade
por agora
é essa

eu vou
mas só se for juntinho
juntinho
cada um
cada uma
bem assim
bem juntinhxs

domingo, 13 de setembro de 2020

Restituição

Pega a bolsa
passa um protetor solar
despenca às ruas
mas vá como quem nem se preocupa se há de voltar.

Vai
pisa o asfalto
troca o silêncio
pela incessante produção de rastros pelo caminho.

Arranhando
desposse o caminho
uma seta que indica
como nunca antes agora se tornou preciso.

Quando lá
quando chegares lá
não hesite
nem pense por demais de está barato ou justo.

Será preciso dizer
como quem tosse
ou engole
Devolve

Devolva
conjugue como for
mas diga
Me dá

Me devolve
anda
devolva o meu coração
ele não é mais meu mas com certeza seu ele não será se enxerga que que é isso?

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Cortar o dedo no filete de papel

Breve
Brevíssimo
um rasgo fino se faz
finíssimo

Na lateral opaca do dedo
por tanto tabaco
passa o papel fino
quase assassinato

Uma dor inédita
inaudita
dor sem parâmetro
o que é a vida?

Se se é possível
dor assim
tão pequeno
antes nunca soube

Sobrevivo, por certo
rasgado, enfim
aproximo a vista
do corte

fino
finíssimo
vermelho por dentro
por fora o mundo

Não confie em papéis
é o que digo
não confie neles
não confie em papéis

brancos
ou coloridos
não confie neles
sobretudo

não confie
em papéis
se neles
tiver algo escrito.

domingo, 9 de agosto de 2020

Axs que partiram, axs que ficaram

Por um segundo
lento
Apenas imagino
estar assim
meio vago
meio lá
meio ao meio

Imagino a possibilidade
de ter perdido
alguém
Imagino a realidade
que se hoje
é real para tantxs
ainda não o é
para mim

Olhos empoçados
um silêncio tremido
não há volta
nós sabemos
o mundo segue
em precipício

Por tanto imaginar
realizo
eu trancado em casa
eu atento às mãos
e suas máscaras
eu com medo
e, sem dúvida,
com a paz trêmula
dos privilégios

eu por poder comer
por ter casa onde dormir
eu por conseguir trabalhar
eu por ter dado a sorte
de continuar e
entre atos
reclamar do cansaço
que é não poder sair

Imagino
como quem vislumbra
outro dia
imagino
saídas, fugas, voltas
imagino rimas e risos
imaginaria
não fossem cem mil pessoas já partidas

Se cem mil se foram
quantas mil pessoas
ficaram
quanto mais que mil
ficariam?
inertes?
imberbes?
irritados e chateados
impossível alavancados
ao quê?
a quem?

O dia demora a passar
a noite dança intrépida
meu desassossego
não sei
olha, eu não sei
viver nestes tempos
não têm sido bacana
nem leve ou bonito

vivo o medo.

sábado, 8 de agosto de 2020

Remoto

No turbilhão de sensações
estacaria, terminado.

Mesmo que trocasse a terra
dos vasos
mesmo assim
estaria vencido.

Ainda que lavasse as louças
todas elas
e que perfumasse atrás das orelhas
ainda assim
se veria acabado.

-

Hoje ele remonta
os passos dados
sem força
revê escolhas feitas
na busca
por outro destino.

--

Ao seu lado
sonolenta
a poesia acordaria
fazendo perguntas vãs
ela agora me olha
e ao me olhar
me azucrina.

---

Ele que sou eu
ela que sempre me foi
o que fazer de nós?
o que fazer com tanto
o que fazer
apesar de tudo?

----

Uma distração, talvez
nessa tarde
tudo o que eles precisavam
teria sido uma distração
para desviar o carro da curva
para atrapalhar a velocidade da reta
uma distração, por fim,
teria postergado este fim
para outro depois.

sábado, 1 de agosto de 2020

Fim

A coragem traz consigo alguma dor. Traria o fim algum novo início? Pergunto-me, perplexo. O que fiz? Que fazer? O que se passa?
Tenho receio de com o fim trazer a perda até mim. Tenho receio de ser sinuoso e querer trazer o fim não para mim, apenas para os outros. 
Seria possível partilhar a tortuosidade de tudo isso? 
Não sei o que fazer. Inominável sensação. De querer continuar sem saber como. De não querer parar sem saber como faz para andar adiante. 
Estar em roda nem sempre é conseguir estar de pé. De pé, ereto, autônomo e orgulhoso, como faz para fechar os olhos e se lançar? 
Pesa o peso. A responsabilidade real é inventada. Uma construção. Uma relação construída.
Constrói como? O que está arruinado, como reconstruir? Haveria outro movimento possível? 
Posso parar de perguntar? 

sábado, 18 de julho de 2020

Tarde

Ele decide, por fim,
sair de casa
Veste meias limpas
calça o tênis
abandonado na área de serviço
Num dos bolsos
um pequeno pote
de álcool gel
No outro
a lembrança
do que seria um celular
Por fim, ele decide,
sair de casa
Veste máscara branca
bermuda azul marinho
camiseta de cor indefinida
Num ventrículo
sangue
no outro
sangue também
Faz certo
é preciso
correr o mundo
correndo riscos
Sair de casa agora,
não como antes,
é uma tremenda ousadia
Ele sai, por fim,
de casa
Ainda um pouco de sol
um pouco de fome
um tanto de saudade
O que significa estar vivo
sem a cidade?
Sem os outros
as outras
outres
O que poderia ser
estar vivo?
Ele caminha
lento
como se a cada passo
voltasse no tempo
regressasse à infância
pré-tormento
Ele saiu de casa
Por fim
onde está ele agora?
Jamais saberíamos
ele caminha
não poderíamos saber
ele anda
lento
Fora de casa
o resto de sol na pele
a lembrança de ser vivo
e
em
movimento.

domingo, 28 de junho de 2020

Uma hipótese


[...]

Aquilo que muda é que paramos de escrever em modo falta e passamos a confiar no poder que as palavras têm de fazer com que coisas aconteçam. Escrever um texto teatral em modo falta seria escrevê-lo partindo da certeza de que ele apenas se realizaria – se completaria – quando posto num palco e encenado.

[...]

domingo, 21 de junho de 2020

Inteligência

Tarde
O sol persistindo
O café preto 
Firme, forte
Acordando a língua 
Remoçando o íntimo 

Posso me apaixonar
por você 
Posso não me apaixonar 
Se devo ou não devo 
Deixe para depois
Venha cá 

Dos medos
Dos traumas transparentes 
Disso nem pretendo
te contar 
Falo a você com um sorriso
Que tenta dizer
Continue, faça continuar 

Fujo dos meus golpes mais certeiros
Fujo das morais e seus volteios
Fujo dos passados e futuros não vindos
Tento ficar agora porque sei
É daqui a pouco
Quando estarei contigo 

Limpar a casa (um pouco) 
Um pouco de perfume (no pescoço) 
O saca-rolhas separado
A mobília da sala e do quarto
Bem limpinha 

Abro espaço para que entre você 
Em minha vida
Não sei do depois
Não sei de nada
Exceto isto: será à força 
Que me farei escutar 
Isso que você sente por mim
E que aprendi a ignorar

quinta-feira, 4 de junho de 2020

quero me constranger

feito piscina
azeitada
feito a gema do ovo
firme por fora
deslizando em superfície
amanteigada

assim me encontro
por isso o confronto
falta-me a dureza
dalguma parede
a bruteza
do som preenchido
que cabe num não

não
por aqui não
dessa forma
não agora
não
assim, desse jeito
sonoro

não

aí talvez um ruído
fizesse talvez ruga
talvez aí
assim se desse
algum troco

preciso disso
necessito
me constranger
para me desacostumar
dessa moleza besta
que se tornou me ser

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Dobradura

Tudo está guardado
Só não tem segurança
Não tem guarda
nem esperança
Tudo aqui
onde?
Não se enxerga
Não se chega
não acaba nem começa
Tudo ou nada
que diferença faria?
Quem fala aqui é o medo?
Ou o costume de escrever?
Poesia?
Guardo-me
trancado
longe dos verbos
sou mais humano
complexamente alienado

segunda-feira, 11 de maio de 2020

imunidade

nem tanto o limão
nem mesmo o sol
ou o abacate

imunidade é o seu sorriso
de manhã
próximo à noite

e junto a mim
bem rente
a cada tarde.

domingo, 10 de maio de 2020

contabilidade

tenho administrado dezenas
dezenas quando viram centenas
no entanto confesso
faz-me perder
perco tudo
a sanidade
a saúde
a sensação de que o amanhã brilha

conto os mortos
e no entanto
eles nada me contam
não dizem nada
apenas viram mortos
e enquanto tais
já não posso ouvi-los

um pesar
um peso sim sem dúvida
ver a curva do mil e tanto
para tantos mil e tantos mais
mais um
mais uma
uma dúzia
hum mil

eles contam
nós contamos
o site conta
o site me diz
mais aqui
menos lá
mais aqui
aqui é brasil
o brasil não para de morrer
e matar

conto os mortos
eles não me dizem nada
eles se amontoam
nos hospitais
em quadras antes esportivas
os mortos se amontoam
na memória que eu tenho
e que não esqueço
não esqueço
e só se aumenta
e só cresce
e mais gente morre
e faz como?
como?

sigo contando os mortos
eles sabem o que dizer
eles sabem

sábado, 25 de abril de 2020

Estacionamento

Letras na fachada do negócio informam:

ALUGA-SE VAGA PARA SERES VAGOS.

Um moço que cruza a avenida
brilha os olhos,
sente-se vago, perdido,
desorientado.
Ele avança até o terreno
e pergunta
Quanto custa, senhor?

O que, menino?

Quanto custa para estacionar aqui?

Quanto você tem?

Só eu mesmo. E esse lenço.

Sujo?

Um pouco.

Passa pra cá.

Perdido o lenço, prontamente lançado numa lixeira,
o menino adentrou o estabelecimento comercial
confiante de que havia feito
o que precisava.

Ali, por favor.

Onde?

Ali, ali, naquele retângulo pintado à tinta no chão.

Sob o sol?

Sim.

É quente.

É sol, ora.

Tem vaga na sombra?

O sol parte daqui a pouco.

Entendi.

Bom dia.

Já é tarde, não?

Boa tarde, rapaz.

[...]

Letras na fachada do negócio informavam:

ALUGA-SE VAGA PARA SERES VAGOS.

Um moço que cruza a avenida
brilha os olhos
ao ver outro moço ali estacionado.
Ele se sente vago e perdido,
mas aquele outro sob o sol
lhe soa como um recado.
Ele avança até o terreno
e pergunta
Quanto custa, senhor?

O que, garoto?

Quanto custa para estacionar ao lado daquele moço?

sábado, 18 de abril de 2020

esse risoto sonolento

já não vale ser sincero
já nem vale tanto ser
a cada passo, um reclame
mas não sonoro
reclame para dentro
é onda de dentro
a qual me afoga
 
escrevo como se escrita
fosse isso
ou seja
qualquer coisa
qualquer coisa
pode não ser?
deveria ser,
mas o quê?
 
um cansaço me ganha de mim
resvalo em sonhos que não chegam
logo eu
que por tantos anos
viva a mocidade
agia o desejo no instante
de seu arrepio
 
porra
fiquei ameno
envelheci por dentro
e é de lá
que vem esse arroto azedo
esse risoto sonolento
essa coisa
esse
isso
isto
esse treco
 
então às vezes me percebo
demora
mas me percebo
percebo a nitidez horrenda
desse som a reclamar
que a vida tá meio assim
que té meio isso
meio aquilo lá
ora
porra
 
vai te catar
vai se foder
vai se lascar
 
reclamas com o pau na mesa
masturbando esse pau mole
arrepiando-se em desejos megabytes
por favor
dê-se algum respeito
anseie outro modo para estar
e ser
 
porra
aí me lasco
aí me ferro
e sinto que só assim mesmo
preu sair do lugar
preu desafogar de mim
 
preu, desgostoso,
voltar a gostar
de mim
e disso
que teima em ser
a vida
 

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Como me tornei inútil

Talvez pelo excesso
de cansaço

Depois ponderei
tornei-me inútil por orgulho atrasado

Poder dizer não
poder não fazer

Um prazer repentino esse
do não querer

Ih, não quero
ih, sai pra lá

Inútil eu me tornei
para me resguardar das exigências

Ter que isso
ter que aquilo

não ter
não ter

Não quero ter que
não quero nada

me deixa
me deixa

Por que te incomoda
que eu possa servir à nada?

Sirvo hoje ao silêncio
ao tremido instante

sirvo apenas a isso
a poder não

Eis minha força
meu anonimato

Tornei-me inútil
apenas para me tornar

para voltar
para ir
para não servir
para apenas ser e estar

mas não servir
nada fazer
por hoje
sou inútil

e isso me permite ainda respirar

terça-feira, 14 de abril de 2020

Rastros

Está tudo aí.

Aqui.

Tudo disposto,
entregue,
evidente.

As motivações
os sustos e volteios
as palavras viciadas
e aquelas
que apenas uma vez vieram.

A graça
os arrepios e seus desejos
tudo está aqui
e, no entanto,
sigo passageiro.

Ainda que me finque
em orações e predicados
ainda assim
ainda por tanto
sigo em deslocamento

eu sigo
deslocado.

Deixo rastros
em forma de versos
querendo, talvez,
a paz do túmulo vindouro
a calmaria revolta
de um útero morno.

Deixo rastros
orgulhoso de que me compreenderiam
caso eu decidisse por agora
rachar-me o crânio
ou a espinha.

Vasculho o passado
(ele não coube na algibeira)
Vasculho o presente
(que sentido há nisso?)
O futuro, me perdoem,
é quase uma piada de mau gosto

deixo rastros assim
na impossibilidade
de algum conforto.

Em meio às ruínas
ele assim esperaria
estaria intacto
algum reino possível.

sábado, 11 de abril de 2020

Faltar

Uma pausa.

Uma pausa no cigarro.

Sem tossir
Sim, controle-se.

É tudo coisa da sua cabeça.

Coisa da sua cabeça.

Mas ainda assim
falta ar.
Falta
ar.

Respiro lento
temeroso pelo momento
em que possa vir
a não mais respirar

lenta
a possibilidade de um fim
se aproxima,
vagarosa.

No planeta
vulcões em erupção
grandes crimes
suas corporações,

neste instante
uma encomenda por telefone
a vizinha bebendo escondida
na área de serviço.

Puxo o ar
mas ele falta
hoje ele não vem
aguenta

Aguento?

O que falta
além do ar
não seria menos
do mesmo?

Menos que o mesmo
menos que o dito normal
o que falta talvez seja
o cúmulo do anormal

O anormal
é preciso
para fazer estranhar
o costume que nos lascou.

Chamas.
Vagas,
panelas e varandas
Ela

ela
suculenta
ela a morte
não esquenta

sabe-se capaz
sabe-se presente
sabe-se na moda
a morte

ela é crente
ela confia
persistente
no ser humano.

terça-feira, 7 de abril de 2020

apenas para não esquecer

aos poucos
se torna possível
isso de só no adiante
te rever

você é tanto
são tantos
em apenas
um você

aos poucos
durmo e acordo
e estar vivo
é saber durar

sem muitos sonhos
nem tantos desejos
sem provas nem certezas
dormir é acordar para dentro

dentro
te vejo em meio à multidão
e você está seguro
acordo assustado

se fosse em vida
meu sonho seria o precipício
se em vida
sonhar seria pesadelo

aos poucos vai sendo assim
o que virá há de vir
e por agora é só isso mesmo
dormir e acordar

sonhar
e eventualmente
apenas para não esquecer
sorrir

sábado, 4 de abril de 2020

Reclames

De fato, é mesmo insuportável ficar trancado em casa
Imagine quem nem casa tem

A entrega do mercado, atrasada
A entrega da farmácia, adiada
E já foi pago!
Já creditou!
E quem faz a sua entrega
você alguma vez já considerou?

Ainda bem que nem todos os serviços foram suspensos
Nem todos os serviços foram suspensos
Ainda bem que dá para fazer o mínimo
do mínimo
Ainda bem
Ainda bem que existem pessoas não como você
não como você
ou como eu

E quem não come?

Eu reclamo (de barriga cheia)
Tu reclamas (de barriga cheia)
Ele reclama e ela também
Por certo, nós reclamamos
(de barriga cheia)
Agora imagine
Imagina esse delirante instante:

deitado à rua escura
por agora um tanto erma
ali deitado
ele acorda e mira o movimento
que escassa
ele pensa
por onde anda aquela gente esfomeada?

Estamos aqui
escondidos da vida lá fora
reclamando por estarmos vivos
e ainda pela demora
da entrega em minha porta.

sexta-feira, 27 de março de 2020

complicado tossir nesse momento...

imagine ficar em silêncio

apenas imagine
quão complicado poderia ser
ter que
ter que ficar distante de tudo aquilo que
outrora
era o seu sustento

antes isso
antes tossir
testemunho do momento
sobrevive-se
ainda que rangendo

por certo
complicado é isto
eu estar aqui
e você lá longe

ainda que perto
complicado seria mesmo isso
você aqui
e entre nós esses dois metros

imagino outro contexto
a vizinha me olha pela janela
eu abro minha porta
e tem feijão sobre a mesa (dela)

eu levo o arroz, tudo bem
sei como fazê-lo
imagino outro contexto
um no qual este vinho ainda não acabou

complicado seria isto
tossir nem tanto
complicado seria mesmo isso
apenas isto

este momento

quarta-feira, 25 de março de 2020

Expurgo

É como se uma voz maior
dissesse a mim bem baixinho

Deixa arder, mocinho,
deixa

Então eu tusso
Essa palavra feia
tusso

E dói
(dentro)
E arde
(dentro)
E repito os movimentos
eu tusso, tusso e hoje já é amanhã

Acordo ameno
até esperançoso
O café quente
A água gelada
A cueca sobre a pele
O silêncio desta casa

Aí tusso
tusso
Essa palavra horrenda
Deixa, mocinho, deixa doer

E arde
E insiste
E vive
E morre
E segue a porra toda

Essa palavra feia
Essa que não pronuncio
Mora dentro de mim
Mora dentro de mim
eu sei
eu sinto
eu
eu
eu

eu tusso.

domingo, 22 de março de 2020

Suspensão

Quando bem lá nos inícios
certa vez recebi uma suspensão
Fui privado de ir ao colégio
privado dos encontros

Tarde, porém, no depois
jamais poderia imaginar
que novamente seria suspenso
e que da vida seria privado

Ao menos um pouco
hoje observo
Suspenso
o que talvez signifique ser vivo

Minha cabeça dói
meu peito esvaziado, vazio
eu tornado terreno
terreno todo baldio

Haveria vida que não fosse
apenas no entre um e outro
no entre nós
eu e você?

Aguento por uns dias
já no meio da segunda semana
leio as estatísticas que me prologam
bem lá para frente

Onde estou?
Como me finco?
Deveria deixar partir?
Deveria deixar de insistir em chão

quando apenas o que parece haver
é este silêncio
suspenso e suspendido?
Devo?

Minha cabeça dói
em letras garrafais me gritam
você está no grupo de risco
ora, não basta viver para ser risco?

Risco
Suspenso
Esboço
Propenso

Nem sei
quase não me importo
o amor não virá por agora
por agora também o amor está suspenso

Sustento o barulho
protejo o sinistro
especulo lento
lento bem lento

É isso
por agora
apenas isso
isto, aquilo, enfim

[...]

quarta-feira, 18 de março de 2020

Fui até a esquina comprar cigarros

No caminho
atravessei para um lado
e outro
uma mesma rua
Atravessava sempre que flagrava
um rosto
(que não o meu).

Um pouco perplexo
observei
como havia gente nas calçadas
como ainda pode haver comércio
fui até a esquina
para comprar cigarros
e ninguém se espanta
que eu fume.

No caminho para casa
atravesse para um lado
e outro
da mesma rua
Temendo cruzar por alguém
que subitamente
pudesse tossir
e me contaminar.

Fumo pólvora
e meu cinismo
tem a cor
dessa cidade.

O que haveria para a poesia
se não a tarefa
de escancarar o vírus
que se tornou a humanidade?

quinta-feira, 5 de março de 2020

Pourquoi tu gâches ta vie?

Às vezes, a pergunta chega assim
Noutra língua

Fico com ela desse jeito
ou ameaço traduzir?

Meu escasso francês
se reanima

Pourquoi é por quê
Por quê?

Tu gâches não faço ideia
mas me lembra o ser gauche na vida, Drummond

Ta vie eu sei
Sua vida

Por que tornar gauche a sua vida?
Eis a pergunta de uma existência

Não sei a resposta
nem em português quiçá francês

O que faço?
Durmo com ela

E afogado em sono
olho o que encontro

Eu apenas danço

Danço
Eu danço

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Por todo esse tempo

Não escrevo para julgar. Não para te julgar. Escrevo apenas porque agora me foi possível concatenar. É possível agora reunir os fatos, dispô-los numa ordenação capaz de me revelar algo: algo que me assusta, meu amigo.

Sob o nome da nossa amizade, o seu profundo medo. Sobre isso que chamo de seu medo, sua explícita - desde antes - busca pelo poder. (Caso você tivesse lido os textos sobre os quais já tanto falamos, talvez você tivesse feito uma tatuagem na pele: não caia de amores pelo poder. Mas você não leu Foucault, apesar de citá-lo).

Passado tanto tempo, tantos anos, anos de amizade, percebo agora tanta coisa que sempre esteve ao nosso lado. E o saldo mais imediato, posto sincero, extremamente honesto, é que escolho deixar para lá. Escolho desistir. Vigio meus movimentos, não posso mais me abrir a você porque, por todo esse tempo, o que mais você fez foi me usar.

Minha força, minha alegria, meus meios e modos de ser e fazer acontecer. Você me usou tanto que não se preocupou que eu pudesse, numa hora ou noutra, perceber que estava sendo usado. Me usou tanto, você, que sequer imaginou que eu pudesse, em algum momento, me chatear por tanto ter sido usado.

Estou chateado. Cansado. Por isso te deixo partir, te deixo ir, não quero me importar. (E que difícil é ver um amigo indo para aqueles cantos da vida que, depois que se vai, talvez não seja mais possível voltar). Nunca antes me pareceu tão possível e plena a ação desse gesto: desistir.

Estou triste. Triste sim. Triste com o orgulho excessivo que, mesmo sem condições, você cisma em sustentar. Você não tem perna, não tem peito, não tem coração para tanta glória que gostaria de dourar e mostrar. É o caso de dizer uma palavra franca e bastante definitiva: farsa. Você, meu amigo, talvez, sim, sem dúvida: você uma farsa.

E não, não exagero. É o que é, foi o que foi. Segue sendo isso aí. É só que nada disso seria tão grave se você se permitisse o diálogo, sem medos nem receios. Diálogo sem orgulho por ser contrariado. Sem orgulho por ser ajudado, mexido, modificado. Você alguma vez me ouviu? Sem dúvida que sim. Mas por que não mais? Quando foi que, ao me ouvir dizer, você escutou apenas o que precisava para você? Seria mais legal se pudéssemos, como amigos, juntos, se pudéssemos desenhar outras saídas.

A amizade e a filosofia nos possibilitariam mudanças efetivas. Mas o medo, o medo só vai bem com o orgulho. E com a violência que dele deriva.

Seu orgulho me violenta. Sua violência me anula e entristece. Por isso te deixo partir. Não porque você queira, mas porque cansei de ti. Cansei que você só veja em mim a fraqueza que, talvez, seja a melhor roupa que você tem para mim. A fraqueza que você me veste serve bem ao seu esforço incessante e jocoso de me diminuir. Por que tens medo que eu seja grande? Acaso estamos disputando algo? Sempre fui grande e você, que para mim sempre foi imenso, só faz diminuir.

Cansei da sua fala citada. Sua fala cheia de referências que nunca te esbarraram o corpo. Cansei da sua insistente tentativa de parecer bom moço, bem frequentado, amigo dos famosos e esvaziados. (Você era tão grande, tão brilhante, tão imenso e acabou virando um invejoso delicado, um ressentido dissimulado, outra vez uma farsa).

Que horror escrever essas palavras. Escrevo sem destinatário. Escrevo por mim, em primeiro lugar, por mim, porque preciso me acostumar a te perder. Quero te perder um pouco. Quem sabe? Talvez no depois a gente volte a se frequentar, mas agora, aproveitando que estás mais longe, noutro país, agora fico comigo e recebo, silencioso, as suas curtidas digitais.


O que eu poderia te dizer?

Ao meu redor, já faz tempo, outros amigos nossos manifestam, cada um a seu modo, o mesmo espanto que o meu. Espantos idênticos e com tamanhos variados. Nossos amigos se perguntam: o que aconteceu com ele? E eu balanço a cabeça, meio concordando, meio descrente, completamente chateado.

Penso naquilo que um dia aprendi: não se vai à força, não se faz à força. É um saber que seria legal ter chegado a você. Não adianta fingir. A mentira hoje escorre por todos os seus lados, resvala dos seus gestos mal ensaiados, a mentira é sua casa e está um tanto chato ficar lado a lado.

Não entrarei nas minhas hipóteses. Não quero explicar coisa alguma. Não falarei do seu namorado nem do quanto sinto e sei que ele é um dos principais agentes de sua perdição. Não entrarei em hipóteses, não preciso mais especular.

Por todo esse tempo, mas somente agora, tudo esteve disposto esperando esse instante de edição: empírica é a vida, não? Empírica não é sua citação.

Escrevo em modo lamento. Lamento, mas como nunca antes, estou cansado. Entreguei as contas, rendi-me ao acúmulo do tempo. Deixo você partir de mim. Não farei força, não direi palavra capaz de nos aproximar novamente. Deixo o tempo agir seu cansaço que, junto ao meu, cria este corpo que agora quer você mais para lá do que para cá.

Triste é. E fato: tristeza existe.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

What Could I ?

pergunto
essa pregunta
prego esse prego
não na testa
mas no texto

te pergunto
meu caro estúpido
o que seria de você
caso fosse apenas você
sem o tempo

você me olha
meio vesgo
bem mais cansado
você me olha
e não vê nada

por isso esse prego
essa pergunta
pregunto-te
o que seria
o que poderia ser?

você não diz nada
faz dias não toma banho
faz dias não tem refeições
faz dias você apenas
faz dias

agora eu te olho
do dentro de tantas preguntas
te olho
te contemplo
e não há piedade

o que você poderia
anda justo ao seu lado
o que você poderia fazer
é precisamente
já o não feito

você se abandona
fica no café
acende outro cigarro
escreve poesias sem caneta
ou verbo

você resiste
sobrevive você
insiste tanto
mas tudo sem força
tudo sem força

você fez décadas
o que poderia te dizer?
não digo nada
vislumbro interrogações
para que não percas toda a sua graça

interrogo
interrogo
te peço, te vejo,
te olho
interrogo

o que você poderia?
o que pode?
o que talvez você pudesse?

você dá de ombros
você me esnoba

suspeito
o perigo era esse
sempre fora
deixar de ser amante
do desassossego

por isso, meu caro
o que eu poderia fazer
que não apenas
e somente
te interrogar?


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Ad Eternum

Enquanto ouvia sua voz
se alongando através do silêncio
neste dia
pude ouvir um pouco
do que havia esquecido.

Como um transporte
um veleiro
um pequeno navio
caudaloso
sobrevivi inerte.

E havia o vento
não nos cabelos
não turbulento
Havia o vento
nas suas vogais que se prolongavam ad eternum.

Ali poderia morar
ali viveria sem medo
de futuro
ou das guerras
Sua voz me devolve

ao conforto primeiro
(que já nem lembrava)
ao útero externo
(sem capa ou casca)
Você e sua voz

eu ouvi
sigo a ouvir
como se através dela
através de ti
Houvesse a confiança necessária

para atravessar os medos que me atravessam.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Coma

Imperativo
do verbo comer
Coma
Coma, rapaz
Ou em coma você ficará
e de lá para o fim
faltaria pouco
Quase faltou
por isso
Coma
Haverá de comer
ouviste?

domingo, 9 de fevereiro de 2020

A50

afirmo ser grande
sim, senhor
quase imenso (eu diria)

não cabe no bolso
nas bermudas que tenho
não cabe

fico sem graça
como dizer?
não cabe, não cabe

fazer o quê?
postergo o presente
imagino outros futuros

prenhe
deslancho desenhos inimagináveis
imaginar me faz mais seguro

em mãos
sustento a ousadia
de tamanho tamanho

é grande
é pesado
esse aparelho celular

é maior que o desejado.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Seca

Numa primeira ou segunda abordagem
Diríamos que secou o desejo
A vontade de fazer acontecer 
De correr atrás, aquilo tudo
Diríamos que acabou. 

Na constância da insatisfação 
Diríamos num momento seguinte
Que não, que não, que ainda há desejo
Algum desejo há, haveria
Nem tudo acabou. 

Seria então preciso perguntar 
Qual então é a questão? 
Qual? Qual questão? 
Qual questão é então? 

Na ausência de hipóteses 
Diríamos que das três uma vai:
Ou acaba tudo;
Ou põe mais paixão na coisa toda;
Ou dorme e se dê longas férias.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Hostel

A porta trancada.

O que fazer? 

Ouço a cadela acordando. Quem mais ela acordaria com um simples latido? 

Abro o elevador novamente. Desço até o térreo. Outra vez precisarei passar a noite num hotel qualquer. 

Vida bandida. 

Rico, ou um dia talvez, pago um quarto de casal. Privativo. 

À beira da piscina, envolto em escuridão, contemplo o que me tornei e sorrio aliviado. 

Não há de ser tão sem sal isso de ser livre. Contrariado, pondero que livre não é a palavra mais apropriada. 

Mas continuo sorrindo. Ora, o que fazer? 

Está escuro. Sento numa espreguiçadeira próxima à piscina. Molho a bermuda e a bunda com água fria da chuva passada. 

Chuva vespertina. 

Alguns acontecimentos nesta vida servem, ao menos, para que encontremos novas palavras. Outras. 

Sorrio outra vez. Acendo um cigarro. Penso: grande é a vida que brinca consigo mesma. 

Há que se divertir. Me fala uma voz que mora bem no fundo de mim.

Divirto-me. Por certo. Amanhã acordo, nem tomo o café completo. Apenas o café preto. Volto à casa de meus amigos. 

Eu sempre volto. Eu vou. Eu continuo. Estou vivo, não estou?

Isso há de bastar. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

olho profundo


desconfias
não tens certeza
sinto que desconfias
estás certo
viver é mesmo coisa incerta

sinto e sei
estás empenhado
parado, te olho
olho profundo, moço
olho e vejo

um sorriso
modo largo
larguíssimo
deito-me
esparramado

sem ti
e em ti
uma ação
me resta:
olhá-lo

mirar você,
moço
você chegou
ao pós-almoço
de sua vidinha

que roupas?
quais?
quantas mudanças?
conservou a algibeira?
sabes o que és?

ei, moço
te olho profundo
e acho até bonito
o cheiro de ferro baunilha
do sangue que jorra saindo

já era hora
você sabe
você sabe
morrer
não acontece a todo o instante

e a vida
moço
te juro
a vida
juro

eu te olho
olho profundo
o que vejo
certo seria chamar
disso mesmo

vida apenas
vida
sabe?
vida
aquela coisa

aquela
coisa
gostosa
irada
indomável

te vejo, moço
te olho profundo
e imagino
que eventualmente
você também se olhe

você
moço
te pergunto
você
se vê?

Arquivo