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sábado, 31 de outubro de 2009

Entrevista Expressa

1. O que as construções deste edifício têm afetado os moradores vizinhos?
X. Bom, na verdade as coisas estão complicadas. A gente aqui do outro lado fica com inveja, é verdade. Poxa, um prédio vizinho, com o qual a gente sempre dividiu um cano quebrado, uns tijolos se esbarrando, de repente vai ao chão e ressurge lindo, todo fino, detalhado, sem sujeiras, com cano novo... O mínimo que poderíamos ter é inveja, não?

2. Como foi para você a adaptação numa situação tão nova quanto esta?
Y. Eu confesso que achei que não fosse aguentar. Durante muitas semanas eu me disse, "vai, menina, aguenta! seja forte, eles vão votar em você!". Daí, passadas essas semanas, eu fui caindo na real. Eu fui tendo dimensão de como estava sendo obrigada a me mudar. Obrigada a me transformar sem ao menos compreender quem seria esse novo eu que não mais eu...

3. Você prefere o LimaVerão ou o sorvete de limão?
B. Eu prefiro o primeiro, porque o segundo, eu tenho certeza, que o segundo tem gosto de substância que é tóxica. Eu gosto mais que o segundo porque tem mais gosto de limão. E quando você está se sentindo mal, isso já aconteceu comigo e com meu irmão, quando você tá mal o de limão é quase um remédio. Funciona.


4. Você se droga?
W. Quando eu subi naquela montanha-russa, a sensação foi real. Eu nunca quis tanto estar em outro lugar do que naquele segundo. Sabe, poder evaporar, rapidinho, como quem some sem sumir, peida sem feder, bate sem cuspir, corta sem romper... Sabe?


5. Como está Mayana?
Faleceu, devo dizer. Conversei ontem com Matilde e ela me contou tudo. Disse que Mayana estava envolvida nas atividades. Disse que tinha jogado pedra na lotação. Disse que rimara Regina com Rejane e que tava ofendendo o Seu João do Botequim do Zé. Enfim, voltou à casa do pai.Ou, já nem vale te dizer.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

revolver

que bom que eu não tinha um revólver.
não saberia o que fazer com ele em mãos
com você ali diante de mim
sob mim
agonizando pedindo pelo amor

que bom que eu não tinha sentidos
que bom que vagava dentro de mim perdido
não saberia como proceder
ninguém nunca escreveu uma auto-ajuda
para estes momentos inelutáveis do ser:


quando vemos a vida de nós ir despregando.

ninguém teorizou. ninguém fez legislação.
tudo pode ser tanta coisa
porque só rimaram essa nossa condição

eu ando tão triste
eu tenho a hora
mas deixo o peito
avesso,
batendo para fora
não em mim.

chaves. freio. transporte. inteiro.
onde está o agora? que eu não vejo.

chega de poesia. um homem foi morto e jogado dentro do carrinho do supermercado. alguém vai comprar esta idéia e vamos produzir mais violência vendável?

>>

desculpem-me a obviedade, mas
o tempo está passando mais depressa?

porque não temos a sensação contrária?
ninguém me parou e disse
nossa, o tempo tá passando devagar.

todo mundo só se impressiona com a velocidade.

é possível?

que as nossas 24 horas diárias não durem propriamente as 24 horas em teoria?

medo.

sábado, 24 de outubro de 2009

ni-afirmativo


o amor é o indescritível da vida.
procuramos nele uma leveza impossível.
a vida me veio e está me levando com ela.

sorte e azar não entram neste esquema
tudo o que é apenas é e isso é sentença
condição destino impossibilidade ao não
não se nega a vida
não se nega a morte, esta também não.


vida é pura abertura
ferida exposta cicatrizante ao vento

é remendo que se faz no ranger dos dentes.
é ida, sem retorno
pois todo retorno é desde o princípio um avançar.

Roberto

Elisa,
achei melhor começar direto com o seu nome. Faz tempo que me sento para te escrever isso que agora chega a ti revoltado. Tudo o que já estás lendo está irritadiço, incontido, descontrolado. Não pedirei desculpas. Você merece cada palavra. Eu mereço cada segundo passado sozinho ao te escrever o que vou dizer. Não direi não te amo. Nunca acreditei que fosse amor, isso entre a gente. Mas o tempo passou. Você passou. A chuva daquele dia passou. As coisas não persistem tanto assim. Elas querem todas finalizar. Por isso eu te escrevo essas coisas, com a caneta numa mão e o coração na outra. Não porque está difícil aguentar, justamente o contrário, é porque daqui a pouco eu o vou esmagar. Apertar o peito externado e jorrar sobre a mesa de vidro um sangue antigo, mal passado, desnutrido. É o nosso fim. Eu quis assinar, dizer, divulgar, transformar em fato. Em fatídico fim formatado. Transformado em verso, rimado. Se não conseguimos nos manter com isso que nos consumiu, que ao menos umas poesias eu possa fazer. Que ao menos alguma felicidade disso possa nascer. Qualquer tipo de felicidade, mesmo a nervosa. Mesmo a apática. Felicidade hoje quer dizer qualquer coisa que não essa a nossa. Desculpa, disse que não ia me desculpar. Mas mesmo assim, eu devo dizer, acabou. Estou indo, se agora você gritar, espero que ninguém a possa perceber. Eu já não o vou. Eu, aliás, já faz tempo que quero, sim agora eu vou. Sem dor. Sem descontentamento. Sem nada porque fui todo consumido e já nem sei o que perdi. Não carrego em mim sensação de perda, estou completo. Completamente perdido. Completamente sem chão sem parede sem rede que me pegue de volta sem vergonha sem sequer alguma dor própria. Você me transformou em cotidiano. Me transformou em prosa, em primeira conjugação. Não posso mais, desejo estourar. Fica, então, com a memória. Fique com o que puder lembrar. Vou correndo, vou pelo mar. Vou me afogando, sem chorar. Sem metáforas. Sem respostas. Decido-me agora partir sem te dizer nada além do que isto, eu parto. Se vou daqui me lançar, me queimar em fatias, despencar, rugir, gritar até secar, não importa, importa? Você se quiser que se ponha a me procurar, mas adianto... Parto agora para ser eterno. Divido-me em pedaços, é a dica que a ti desespero. Já me perco outra vez e me perder, talvez só agora, é o que eu realmente quero, portanto, eu parto

emotivação.

Olha, desculpa
eu não esperava ficar assim tão movido
é que está cada vez mais difícil se comover
e quando isso acontece eu fico assim
pulando as linhas e escrevendo aquilo que talvez nunca
eu serei capaz de dizer
Desculpa, eu sei que fizemos o que se deveria fazer
mas é que as coisas assim arranjadas
são independentes se cruzam outras se esbarram
e refazem nosso curso refazem nova estrada
e eu fico assim meio mexido
no olhar um rio preso querendo ser incontido
Desculpa, eu peço desculpa é por tudo aquilo
maior, impossível, gigante, impalpável, mas exequível
aqui dentro
aí fora
aí dentro
aqui fora comigo
eu peço desculpa pelo amor entre nós construído
quem somos nós (eu não deveria me perguntar isso)
mas quem somos nós?
não importa, importa?
pode ser você, amigo de um instante
amigo recente
pode ser você pedestre ouvinte jovem menina funcionário ou assaltante
qualquer um, amor morrido, amor jovem, amor concorrido
pode ser você, amiga
e todas como você, falecida
pode ser passado, presente, o que quisermos
nós somos os fundadores deste calor aqui dentro
desta brasa que me consome
neste instante
deste inconstante
transtorno pulsante
palavras impensadas
por isso sinceras
mesmo sendo às vezes sinceridade inoperante
eu estou perdido,
Desculpa
era apenas para dizer que estou comovido
com o olhar marejado olhar se diluindo
como quem vai sem querer chegar
vai sem partir
parte sem pensar
eu vou indo
vou indo no tempo
dentro-fora acumulado
dentro-fora agradecendo
e me desculpando
pelo amor que juntos (todos os nós)
fizemos nascer

amor este que agora nos consome
amor que agora entre nós
some...

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

LADO.a.LADO

deixa o tempo correr
vamos nele ficar parados
façamos um pacto, eu te peço
eu me jogo

vamos caminhar lado a lado

olhe para mim a tempo de dizer
isso que virá precisa mesmo acontecer

lado a lado
deixa eu te perceber
e riscar aqui neste espaço
aquilo que nem juntos podemos
assimilar

vai, vamos juntos
sem um ao outro exceder
vamos criar uma ficção que em nós quer crescer
sempre
e cada dia
sempre nova agonia
nós podemos juntos conceber

lado a lado, é o que peço a você
vamos ficar juntos
vamos ficar planos
superfícies abertas ao processo
abertas às revelações
aos protestos

sejamos, minha vida, corpo-
estrada

corpo-
história

corpo-
música

corpo-
gesto
, ASSIM-SELADO

convulsionado pelo amor nas pequenas coisas.

dêem-se as mãos, eu lhes peço

quando ela se joga você olha e pensa, enfim
não pode haver na vida tanta poesia assim

mas foi-se outro corpo em perdição
e você resta impreciso acreditando se possível
que possa haver recuperação.

então silencia,
fica miúdo

um dia você acorda e olha com desespero para seu íntimo
onde ela está? toda aquela poesia, para onde foi?

você silencia, olha pela janela, abre as portas
mas dentro ainda espera
ainda é medo
ele em ti se reverbera

então silencia,
fica pequenino

acorda no dia seguinte e se pergunta
onde começou isso?
quando isso foi acontecer?
que música eu cantei errado
que rima eu não fiz por você?

um dia ela se vai e você fica bobo
sem presença
você fica bobo assim
sem rima que o redima
sem sinônimo que o amplifique
você persiste, só, persiste
é esse o caminho
ser triste

você um dia se resigna

sem poesia
sem vida, só sobre as rimas
sem rima, só nesta vida

num dia
um par improvável
um casamento infeliz
um acontecimento
que quando acontecido
inexplicável se diz.
,

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Guinada

minha poesia ficou boba
assim, coisa boba
sem destino
virou coisa estorvada
coisa que em si mesma
é já início e precipício
virou descomedimento
virou excesso
virou resto
mas sem fazer falta
sem fazer nada exceto
vergonha.

embaralhou-me a noção
dificultou-me a razão
e agora resto eu aqui inoperante
tentando consertar esta ousadia
tentando comunicar um sim
ou não
mas, não!
minha poesia ficou toda boba
precisa de soco, gozo e malícia
precisa aos poços ter sua alma impelida
ser impedida
ser toda avesso sendo nisso estrofe verso e rima
sem beleza
sem contorno
sem recheio
é disso que ela precisa

dentro dela agora quer nascer
todo o ódio que em mim conservo
poesia agora é pré-texto
para a vida
para a sua possibilidade
pré-texto para a vida
sua inevitabilidade,
enfim,
cada tropeço
nela será calculado...

sábado, 17 de outubro de 2009

Luto [Dentro Preciso]

[poema removido]
[palavras usadas sem comedimento]
[palavras nascidas sem pai nem mãe
morrem com o tempo].

[estas daqui, hoje, morreram].

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

resto

olho o lixo na esquina. com que beleza ele se organiza. as cascas vazias, ocas de paixão. os papéis moídos, revolvidos e neles escritas canções. silêncio. é noite a rua agoniza. é noite a rua plena se ensimesma, se solidifica. cada parte é engenho. cada falência é quebra mola que ameniza o acidente do transporte que vem ligeiro.

dentro dele eu resisto. eu me perguntando o porquê de tudo isso. o que em mim se acumula? o que ficou? o que foi que dentro do arroz feijão de cada esquina em minha pele se escreveu? indo sou eu? ou eu sou feito de outros? inda estou pleno ou ser pleno é ser como este corpo é ser torto?

cada esquina conserva em si seu enigma. cada esquina sua pureza, cada mazela seu temporal. o que resta de sangue coagulado, o que resta de história ali mal lavada. de tempo corrido feito suor de criança que nasce e morre na mesma estrada. suor que não se lava, mas que se engole hoje de novo e agora.

sou eu hoje mais tempo. noutro tempo diria ser eu mais morte. mas ser tempo é ser pleno, é ser mesmo clichê pau para toda obra no mesmo azar e sorte. ou côrte ou corte ou quem sabe, sou eu hoje, apenas um cansaço feliz. uma plenitude esboçada. uma corrida de automóveis cujo início se perdeu e cujo fim não se demora.

mas importa?

à maça amarelando sou a única coisa que parece valer,

O VELHO

desaprendi
como faz para dizer eu te amo
desaprendi como sentir
e nem mesmo inda sei
como o amo

não sei de princípios
baniram-se em mim as leis
os pêlos desorientados me confundem
e pelas ruelas me escuto dizer
estou enrolando,

mas o quê
exatamente procria essa confusão
que mar de vermes é esse
cujo destino é sempre multiplicação

eu não sei
mas estou enrolando
vendo o corpo sendo de mim tirado
vendo os sonhos todos por mim serem feitos
mas inda em mim apagados
feito rasura
que na pele cria casca
e o corpo enferruja

desaprendi como voltar
e agora resto, estaco
fico lutando contra o meu reflexo
tentando ver nele um sorriso
mas se hoje tudo inda é opaco
perco-me num sono de há seculos
e dentro de mim colapso

pois é o velho, eu consigo escutar
o velho nos sonhos perseguindo a criança autoritário
o velho da criança que em mim não quer morrer

criança que de mim inda não foi tirada
inda de mim não toda rasurada,
nem toda erro
nem toda estrada.

sábado, 10 de outubro de 2009

o mistério do mundo.

Como se escreve o perdão que desejo te pedir?

Não são com essas letras, não é assim. Para você eu tenho que inventar outro alfabeto. É com o corpo. É dizendo eu te amo mas não assim. Você não está em você, você se perdeu. Mas se quiser te encontrar, eu sei, sim, eu vou ter que penar. Penando o corpo penando a dor. Cadê você no vazio que nos engoliu e acabou?

Mais tempo. Enquanto espero sua lágrima em mim chegar... Mais tempo, mais tempo. Por enquanto é tudo o que eu posso venerar. Vai, quer dizer, vem, me faz alguma coisa, me puxa o cobertor. Eu não vou ter medo. Eu não vou ter.

Porque eu ainda te amo. E eu nem sei o porquê. Tudo tão rápido tão sem resposta. A gente resta burro, resta com a aorta toda torta, meio imprecisa, meio engasgando querendo ar... Mas não. Amor bate lá dentro e desengasga essa condição.

Eu me duvidei. Mesmo eu me coloquei em questão. Mas se paro, se penso, nos cabelos, na pele, no riso, até na escoriação. Eu ainda te amo, só não entendo nada. Não. Mas importa? Vem, deita aqui comigo. Divide a cama, divide a canção. Você tá fazendo falta sem fazer, tá fazendo nuvem sem chover. Tá tão vazio, tão inconstante. Quem foi que inventou o incompreender?

Tem a sua cara. Tem a nossa dor. Tem o mistério do mundo. Tem muito do que vivemos, muito muito o que o muito for. Vai, Dória, puxa o meu pé e me faz acordar gritando eu te amo. Porque eu te amo sim, sua doida.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Pepino em conserva

Vai, você sabe que eu estou suscetível
Como se pode ser assim, tão propenso?

Se você chutar eu vou chorar
Se me beijar eu vou me apaixonar
Qualquer gesto seu o fim em mim é derradeiro
- Não há meio termo -
Qualquer silêncio seu em mim já é ponto
cravo
dúvida mortal
(leia-se desespero!)

Vai! Você assim me vê suscetível.
Isso existe dessa forma que estou escrevendo?
Estar suscetível?
Estar susceptível?
Há diferença?
Não em mim, não em mim
Pois cada movimento cada gesto cada bigode que se eleva
em mim é onda que afoga
é onda que tudo leva
para regressar ao ser-desespero

Vai, você me sabe todo
estou no inferno deve ser passageiro
mas é que cada gesto seu tem que ter início meio e
fim

Meio e fim! Não em mim! Não quero ser porto!,
olhe aqui e veja dentro
como posso estar tão assim dependente?

É que cada polegar
é que cada agulha do pente
cada rente cada sonho cada parente
afeta o meu corpo fosse estante
fosse viga fosse eu totem dessa religião a qual nós dois
somos crentes!

Eu sou?
Sou mesmo?
Não queria ser mas sou
Reconhecer-se é mais fácil do que entender
o que é estar suscetível (que palavra é essa?) ao que estou...

Calo. Conservo. Sou pepino em conserva. Esbarrando a cabeça no vidro e vendo o mundo lá fora mover sem fim. Pepino em conserva, saltando do chão e ficando meio aéreo, meio ao meio de mim...
Sou menino que enerva os pêlos imaginando o sol rente cortando a pele

Fica vai, você sabe, eu estou suscetível.
Ser propenso a...
Propenso a... (Deve haver algo adiante, me ajuda!)

EStOrVo

Chove dentro do quarto.
Mas lá fora choveu o dia inteiro
eu estou lama goteira sou rio,
me afoga.



Aqui dentro chove em silêncio.
Lá fora o ruído que molha me afaga
eu entro aqui de volta todo água
e sinto falta dessa presença
suor fictício amamentando o corpo
choro incontido costurando o morto
que hoje germina sob a terra em prantos.


Aqui dentro, no entanto, eu tenho medo.
Esse silêncio incontido essas paredes duras
olhando sem fim para o centro do que é ser
olhando duras sem fim para o inevitável
para essa coisa que não tem nome
que não sou eu
nem é você,


Chove chove tanto,
aqui dentro é tornado feito furacão
mistura dos dias que passaram
com essa presente podridão


Com tais palavras faz-se um bolo
um estorvo
um tumor
um cân-
cer


horroroso.
Isso é o que é. Horroroso.

Não gosto.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

MAS NÃO ISSO!

pode ainda haver algo genuíno, ainda algum princípio intocado
alguma incongruência sem apuro, pode?

a sensação de desgaste percorre todo o corpo e o desconfia
ele já não crê em outra coisa que já não tenha sido consumida
gasta, coisa prevista hoje já nos dicionários
discutida nas rodas de qualquer praça

mas pode vir ainda infortúnio maior e pior que os de agora
podem nascer ondas mais profundas, tiro mais certeiro
tenaz profundo, gritos excessivos nos agudos
com medos inda mais obtusos
pode?

ele pergunta sem inclinar o rosto aos céus

em silêncio, segue questionando
poderia haver em mim, neste momento, alguma fé nas coisas divinas

ou se não, já consolado
alguma resignação quebradiça, alguma certeza vencida?

ele pergunta sem inchar o coração

em silêncio, segue - sem perceber - desmontando
poderia haver em mim, neste segundo, alguma fé no movimento
alguma persistência no abstrato escuro
ou céu
ou no vazio deste papel
ou mesmo neste véu
(que cobre a donzela agora plena)

ele pergunta tentando causar no corpo qualquer irritação que o permita
perder

qualquer desmedida que o faça
sofrer

sim, pede aos céus sem sair do lugar
alguma coisa que me deixe incerto
que me faça moleque outra vez
naturalmente fácil de se enganar
mas não isso!

eu quero crer que fui enganado
eu quero crer que foi trapaça
anda, apareça! saia de dentro dessa caixa e fala alguma coisa

coloque as mãos sobre mim e faça chifres em minha cabeça
vem me ofende faz qualquer coisa por favor
mas não isso!

só não me inove pela sua morte
só não me inove pela sua morte
não pela sua morte
não por ela
por ela não


!


eu quero ser reinventado pelas borboletas
pelos romances de cabeçeira
pela magia pelas esquinas
ainda agora e outra vez
pelas coxas dos meninos

mas não pela sua morte
não mais pela sua morte
não por ela
nem por você
por você não não,
tudo mas não isso!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

etiqueta urbana

a etiqueta nunca foi tão ela mesma
cravada ali no chão
pisada em direções
que os pés na calçada não cansam
de experimentar

nunca foi tão ela assim tão só
tão cravada feito destino
tão precisa fosse feito rima
que vem e vai
e mesmo indo já deixa o gosto
na boca
da voltância

cravada no cimento
etiqueta já sem relevo
de tanto ser pisada
de tanto esmagada
já nem resta mais
outra coisa que não
ser solo

ser tapete
página para os cotidianos remorsos
que todo dia ela lança a quem pisoteia
seu corpo

nem se lembra quando ali foi parar
etiqueta de produto mercado
de farmácia padaria estação qualquer lugar
etiqueta que vem estampada com um nome
que já não lhe significa mais

não mais
filé de frango
etiqueta do frango colada no filé do cimento
colada no chão sem sabor sem descontentamento
nem chuva mais é capaz de lhe tirar

ela sobre
sem filé
sem frango
sem peito
sem preço
nem código de barras

filé de frango lambido pelos cachorros
que na rua já nem a percebem mais
porque virou pedra
virou grifo
marca
cicatriz
virou
mesmice,

cândida flor do esquecimento.

nascimento

as sandálias de couro recém-inauguradas
caminhava cambaleante tocando as paredes mais duras do que as de sua antiga casa
as mãos sujas da boca marcavam no cimento aquela condição
tão pequeno, dizia didi, a empregada
tão pequeno que parece coisa rara


ele seguia sem fim nem começo
ia tocando o corpo em tudo que lhe chamava a atenção
foi andando, na cozinha a panela do feijão gritava
na área, a mãe esticava as fraldas brancas no varal
enquanto cantarolava a inaugurada maternidade


ele veio por trás, ela ouviu as sandálias titubeando
ficou estática, ele foi persistente cambaleando e em sua saia atracou
ela disse oi meu amor, ele sorriu e em seguida, tirando um dedo da boca
- pela primeira vez - falou:
mãe quero ser música

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Algo assim, Melhor do que eu.

Reencontro os meios,
Limpo as ferramentas
Modelo o meu projeto
E junto a mim mesmo,
O concebo.

São filhos eternos
E passageiros.
Nascem no trocar das linhas
No trotar veloz e lento de
Quem conduz tanto esperma
Quanto o l-e-i-t-e-i-r-o...

Filhos, melhores que eu tenho.
Aos pedaços, incertos.
Projetos inacabados
De pequenos desejos
Veleidades
E ensejos,
Todos eles
- incompletos
E, no entanto,
Tão inteiros.

Meus filhos são como os verdadeiros,
Somente quando crescem descobrimos
Seus erros.
Somente quando crescem,
O pai e eles mesmos,
Descobrem-se,
Um ao outro,
Um no outro,
Nu pro outro,
Em tempos alternados,
Vão os dois a perceber
O roubo do jeito alheio,
O emprestar das teimosias,
A reciprocidade do recriar-se a cada dia
E de ser o mesmo a cada manhã
E à tarde
À noite
À agonia.

Os filhos que escrevo
São incertos, mas verdadeiros
Filhos do desejo,
E somado a esse,
Filhos do mais puro.
Do mais puro puto,
Que sou. Eu desejo:

Meus filhos,
Gostam de ser
Gostam de se ver
Se ler, perceber.

Os filhos que escrevo
Nascem todos os dias.
São filhos sem mãe
Filhos sem pai
Filhos cheios de mãe
Lacrimosos demais
Filhos cheios de pai
Eles são tristes demais
Filhos com mãe-e-mãe
Filhos com pai-e-pai
Filhos do
Papai-mamãe.

Os meus filhos,
E que não os quero mais
Pois ganharam asas que
- eu mesmo - desenhei
Que podem,
Agora, e quando quiserem,
alçar novos e imensos
Vôos... Eles estão presos.

Presos ao meu redor,
E ainda contagiados
- em demasia -,
pela minha canção.
Pela atroz voz que os revista
incessantemente
em busca da
perfeição.

Eu, Estou doente.
E meus filhos, carentes de
Atenção.
Não mais a minha.
Talvez a de um irmão.
Mas não mais a minha!
Eu preciso acreditar que eles
Querem ouvir outra balada
Outra voz
Sentir outro peso
Que não mais o da minha
Mão.

Para os filhos é sempre à mão,
Para o pai,
Coração!

Estou com o coração nas mãos,
Filhos que me dei.

Os meus. São meus.
Eu sei. Eles sabem. Nós sabemos.
Nós somos cúmplices da criação
E da tentativa de abandono.

Somos cúmplices desde o começo.
Quando da letra surgiu o rosto
Da estrofe o sorriso torto
Do espaçar das linhas o contorno
Que fez as mãos, as luvas e, logo,
Era o corpo.

Das rimas surgiram seus gostos.
Gosto de subir, volver, alternar.
Gostam de rimar todo verso com ar,
Pela vontade de respirar, criar, recriar
Deixar
Voar.

Os filhos que hoje tenho são
a cara do pai.
Cara suja, mal lavada
Cara teimosa,
Desordenada,
Demais.

Os filhos que hoje tenho estão
Quase todos guardados.
Os mais promíscuos,
Já libertados.
Os mais vendáveis,
Excomungados.

Os filhos que ainda hoje conservo,
Estão amassados, espremidos demais,
Concentrados no bolso da camisa quente
Que cobre o meu peito e que me impede
De ser altruísta,
o suficiente.

O suficiente
Para jogá-los ao mundo
Deixá-los ir,
E, em seguida,
Acompanhar sua queda
O seu ir e seu vir e seu ir
E sem vir,
Até cair.

Falta o suficiente para
Ver como se quebram
os seus (meus) dentes
Machucam-se os ossos
E roem-se as unhas
Impacientes.

Assistir,
sem preferência do assento,
Perderem-se aos pedaços
E encontrarem nova gente
Que não mais serei eu.
Visto que os cansei.
Visto que
Eu
Os cansei
De mim.
E de todos os meus personagens.

Nublei suas visões e eles visavam tanto maior do que sou.

Tanto maior do que sou.
Meus filhos,
- e só descobrimos nossos erros
quando os deles fazemos alarde
ao descobrir -,
- quando balançamos o boletim
dos nossos olhando os dos filhos
de outros pedreiros -,
Meus filhos,
Eles visam tanto maior do que sou
hoje.

Mas visam também, meus filhos,
Tudo aquilo que desejei
Em escondido,
Remoendo-me aos gemidos
Meus filhos querem mais
Do que por mim lhes foi
Permitido.

Meus filhos visam algo além do próprio pai.
Tornaram-se mais espertos, mais sedutores,
Indiscretos demais, açougueiros demais!

Meus filhos, vão!
É difícil lhes falar assim,
Mas que partam daqui!

Sejam maiores e melhores e mais velozes do que o pai que vos criou.
Daquele que vos inventou mas que não soube libertá-los
Quando sozinho, percebeu-se autoritário
e isso - jamais -, ele
aceitei.

Vão já, crianças!
E ganhem o vento
E deixem no corpo
O escrito
Do seu sabor
Da sua ilusão.
Efêmera
Ilusão
Do vento
Que é o tempo.

Ganhem o espaço que lhes dão.
Ganhem também aquele que,
por acaso, não lhes derem,
caso não reconheçam em suas lágrimas
o pai que aqui vos escreve.

E eles o farão. Eles sempre
Negarão aquilo tudo que vocês são.

A vocês, filhos queridos,
Tudo aquilo que por mim foi entregue
Remoído, triturado, dissimulado e escondido,
o mundo lhe dará por inteiro
sem ferramenta de manuseio
sem sentido.

Então,
Descubram-se na totalidade dos dias que viverem
Descubram-se a cada momento, quando grandes
E claro, pois assim o papai também o fez,
Quando também pequenos demais.

Aí,
Na pequenitude do seu ser,
percebam-se mais de uma vez.
E mais de uma vez,
Percebam tudo aquilo
Que em vocês, um dia,
eu desenhei.

Sintam as dores que senti e
Saibam: outras maiores sentirão.
E não estarei para refazê-los.
Para isso também
haverá as dores menores.
Para que possam sempre
Abrir e fechar e abrir e fechar
O corte.

E o sentido que o mundo
um dia não lhes deu
faz-se na busca por
tudo aquilo que
não se entendeu.

As dores do corte,
Há pouco cicatrizado,
A incoerência do amassar,
A tonteira da dobradura,
Do se-auto-se-misturar.
A cruel dor do não mais voar e com o tempo
Apenas sedimentar
Sedimentar.
E só,
sedimentar.

Poeira nem sempre se acumula só no ar, meus filhos.

Por isso, queridos
Queiram sempre respirar.
Outros perfumes, outras mãos
Outros tios,
pois sempre tios serão!

Respire, cada um de vocês e
Quando o melhor ar encontrar
Façam dele também o colo certo
Para enfim, rest...ar.

Acreditem na autopromoção.
Uma vez funcionou com o papai.
Acreditem no pensar em si próprio.
Valorizem-se e contem-se
Uns aos outros.
Conte-se a si mesmo e
Contente-se em saber-se
Inteiro.

E quando menos esperamos
- é preciso saber esperar! –
eles nos preenchem
de novo ar
do seu ar.

Quando aí, respirem fundo,
Pois o ar nunca poderá faltar.

A última lição para os filhos
                        que chegam e
            para os que vão
            - e entre vocês há uma
            pequena intersecção -:

Vivemos morrendo a cada segundo,
Por isso mantenham-se firmes,
Presos nos seus ideais.
Provoquem os limites alheios,
Ousem ser mais do que o perímetro
Habitual dentro do qual eu os inseri.

Enfim, meus que nunca vi correr.
Defendam-se do mundo
E sejam o que o corpo de vocês lhes disser
Para ser.

Agora, você!,
Filho desse momento intempestivo.

Escrevo-lhe com você mesmo,
E sobretudo para quando encontrares
Todos os vossos irmãos,
- Perdidos, em outras estações,
Imprecisos, precisando de reparo
Ou não -,
Eis a sua maior missão:
Passe-vos essa mensagem e diga-lhes
É ela de nosso pai, irmão, eu juro!

E ela é mesmo de vosso pai,
Meus filhos obtusos
Que se entreolham buscando
Explicação.

Cada verso, cada aliteração
A rima, o sugerido, o canto
Toda e qualquer intenção.
Esse filho que hoje eu faço
É meu e dono de si mesmo
É meu e dos outros deste meio.

Não me negue,
nunca.
E, filho!
Filho, não te assustes!
Tens muitos irmãos:
Irreconhecíveis
Risíveis
Melodramáticos
Falsos
Verdadeiros
Excessivamente a cara do pai que lhe fala
E faz,

Em pouco tempo,
Tu não serás mais o meu
caçula.
Mas não se preocupe com
Seus velhos irmãos.
Na família do papai
Quase sempre o mais novo
Tem razão.

Evidentemente, quando ela não falta durante uma ou outra geração.

Nesse momento, filho
O fermento do pai acabou.
Amo-te
E te amo
E sempre o farei, tu bem o sabes.
Como um dia hei de amar o filho que nunca terei,
Como um dia o amarei,
Eu choro por ti, filho novo
E pelos irmãos que lhe dei.

2007.

dedo quebrado

incrível como o corpo se acostuma aos infortúnios
agora neste instante meu dedo quebrou-se em pedaços miúdos
mas tudo dentro é ainda paz
nós, eu e meu corpo, nos acostumamos com o estar partido
a gente se respeita nisso
a gente ainda é
sobrevive
resiste
atualiza.

incrível como a dor faz parte
como ela é essencial
dentro moído o corpo continua angelical
fazendo seus gestos seus atos-protestos
suas rimas infantis e seus sonhos eróticos

o corpo moído não é pretexto
é fachada
tudo está claro dessa forma
não queremos ser rosa

rosa cândida leve suave cortante
rosa que cheira a mel que cheira crime
rosa cheira e chama os amantes

mas não
fiquemos assim partidos
mas costurados por essa pele
que agora também está ralada
está riscada, pedindo se possível
quero romper
deixar de mim partir
como foi aquilo entre eu e você

corpo assim moído nunca sabe quando acabar
porque cada passo significa no fim das contas
nova sinfonia da dor louvável
nova sinfonia das partes improvavéis

escuta?
foi meu osso rangendo no coração
ouve,
agora foi meu dedo estalando a coluna
e virando canção

você me escuta?
me ouve?
não quero ser olvido.

dói corpo dói então
pois assim serás sincero
serás dito (no estalar)
e desdito (ao cicatrizar)

serás contínuo
e impreciso

me escuta?
me ausculta
me desnuda
me deixa apenas pele pedaços e pêlos

e nada mais
e nada há mais.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Liberdade poética

Clark - Vai de escada ou de elevador?
Juice - Vou esperar o café esfriar. Pode derramar.
Clark - E depois, vai de elevador ou de escada?
Juice - Escada.
Clark - Você já chamou o elevador.
Juice - Ele não chegou.
Clark - De escada você vai suar.
Juice - Depois me seco.
Clark - Vai ficar fedendo.
Juice - Ponho mais perfume.
Clark - Onde?
Juice - Pulsos, nuca, face e cabelo.
Clark - O elevador tá demorando mesmo...
Juice - Quer café?
Clark - Está quente?
Juice - Frio, mas adoçado.
Clark - Adoçado com açúcar ou mascavo...
Juice - Mel...
Clark - Mel?
Juice - Mel... Por isso iria de escadas, se elas chegassem.
Clark - Estão aí.
Juice - Onde? Não vejo.
Clark - Abra a porta.
Juice - Não estão. Disseram que iam comprar chocolate.
Clark - Quem disseram?
Juice - Susan e Candy.
Clark - Elas?
Juice - Sim, elas.
Clark - Me dá um pouco do seu café?
Juice - Está frio.
Clark - Eu sei, mesmo assim.
Juice - Perdão, mas está na hora de subir.

Juice entra no elevador. Vindo do lado de fora, correndo, Susan e Candy sinalizam a Juice que as espere.
Não acontece mais nada. O tempo nessa história pára. Não tem mais futuro, nem antecedentes criminais. Foi tudo inventado para nada. E agora, como se faz? Ficará por quanto tempo na memória a noção de Candy, Susan e Juice? E Clark, veio mesmo a falecer, ou personagens são imortais, nascem e seu fim é perdurar e eternamente ser?

Não direi mais seus nomes. Ficarão lacrados no meu silêncio, incapacitados. A liberdade é minha. Nela eu te absurdo eu te horrorizo eu me refaço. Nela, a tal liberdade, sou eu quem falo. Por sua boca, eu sei, mas eu quem falo sou eu quem fali, eu quem fale.

a volta. os que já foram.

tudo voltou como se nunca tivesse partido
você aqui dentro de mim ainda é tanto
por isso todo esse precipício
esvaziando o corpo
e pedindo pelo parar

voltou como que para me fazer lembrar
o quanto eu te amava
o quanto eu te amo
o quanto a gente é capaz de inaugurar
nem sempre aquilo que podemos compreender

eu te pediria fica!
mas você não iria me obedecer
hoje seu voo é pleno
e ele eu nunca iria conter
mas é que dói tanto
agora
dói tanto
e eu aqui solto dentro de casa
o que fazer?

eu pediria um sinal
eu pediria alguma coisa
que eu sequer sei se estou pronto para ver

mas não
resto
resto em profundo e quieto protesto

fico
duro
resvalo
sigo
enfim
colapso

é que hoje tudo voltou tão forte
que eu já não sei o que é força para aguentar
eu não sei o que o meu corpo quer
cambaleando assim entre coisas passadas
que estão aqui
fincadas
no mesmo lugar

no mesmo lugar
de sempre
o peito.

mas dói, dói e está doendo.

Regina levou um cano

(Regina está sentada no sofá de sua casa, próxima ao telefone, que está sobre uma mesinha. Um longo silêncio, interrompido por um grito, bem alto e libertador).

- Também eu falo mesmo! Poxa, que coisa. Ah... Falou que ia ligar e não liga, aí fica a palhaça do lado de cá esperando o telefonema. Cara, que vida viu, eu vou te contar uma coisa. Ah... (retoma o silêncio, de olho no telefone, mas irrompe novamente) Ai, gente, coitada de mim. Mesmo! Coitada de mim, eu sofro demais, demais! As pessoas não têm consideração com você, não tem, Regina, acredita em você, mulher! Você sabe bem o que fazer. Aliás, você sempre sabe, é mulher da vida. Aprende batalhando. E você batalha, hein, sua doida?! Aí depois fica igual uma incendiária no cio e em vez de procurar um daqueles bombeiros maravilhosos, pega qualquer encanador que te aperta um pouquinho. Ah, mulher, deixa de ser besta, poxa! E agora ainda fica esperando o telefonema do fulano! Ah... Eu vou falar uma coisa... Eu levei foi um cano, viu! Eu levei um baita cano! Ah... Agora você tem que se sentir forte, porque você é muito forte... Ah... Eu sou uma baita forte... Ah... (olha para o telefone e reflete um instante, em seguida, avança sobre ele como se atendesse a um telefonema) Alô?! Ah... Oi, é você?! Tudo ótimo, obrigada por perguntar... E contigo, dormiu bem? Ah, sei... Também tô, Rô... Sim. Sim. Sim. Também quero, Rô... Ahã. Ahã. Sei. Sei. Eu sei, ahã... Sim, claro que sim. Também. Também, mas vem logo, Rogério, que eu não espero muito não... (desligando bruscamente o telefone) Isso, muito bem sua perdida! Fica se iludindo com esse encanador filho de uma porca, fica! Você fica se martirizando, sua perdida, fica?! Ainda sobra tempo pra isso, poxa! Tudo bem que foi lindo. E foi, gente. Ah... Foi lindo mesmo. Eu tava lá no forró da Marlene, um forrozinho bem sacana, mas eu gosto mesmo, que é que eu vou fazer. (se alterando) Quem é que paga as minhas contas? Quem é? Ah... (controlando-se) Então, eu tava lá... Toda suada, parecia uma porca só que eu tava limpa... Tava até com um suor cheiroso, tinha usado a colônia que eu ganhei no dia do meu dia lá... Aí, então... Ah, sua danada! Você é perdida mesmo! Tava de combinante: calcinha amarela e sutiã azul, as cores do ano novo. Então... Você é uma danada. (espia o telefone) Aí você tava dançando, suada, com as alças do sutiã saltando pra fora, junto com tudo que tava dentro, dançando sem dar trégua pra tristeza... Aí, suada. Gente, eu emagreci uns quilos de tanto suor que eu suei. Deu vontade de gritar, “Eu sou uma porca feliz! Tô suando mas sou feliz”... Aí, não é que ele me apareceu?! Jesus Amado, que o Senhor me perdoe, mas eu não agüento homem assim. Todo suado, de macacão, um esperto... é isso que ele era, um esperto. Saiu do trabalho e foi direto pro Forró da Marlene, sabendo que ia pegar o fluxo... E não é que te pegou, sua dadeira?! Você é ótima, deixa só sua mãe saber disso! É uma porca! Sou nada! Sou nada! Eu tava muito mal, poxa! Ser abandonada hoje em dia é complicado, ah... (entediada) Vai arranjar um serviço, mulher! Anda! (pega uma revista de fofocas e começa a ler, durante um instante, acha uma distração, que é cortada pelo seu levantar súbito do sofá) Você é danada, hein, sua doida?! Ele vai ver esse filho de uma porca. Nem que eu quebre o encanamento todinho dessa casa, nem que eu deixe o gás vazar, ele tem que vim aqui me socorrer. (longo silêncio, como se processasse o que acabou de dizer) E ele vai me tirar daqui de dentro toda suada, meio sonolenta... E vai me tirar no colo, e eu suando igual uma porca... Ele adora uma porquinha... E os vizinhos vão tudo aplaudir ele saindo comigo no colo... Eu vou mudar de roupa, só pra ficar mais bonita... Vou abrir o gás da cozinha. Não, sua burra, abre o do banheiro... A janela do banheiro dá no vão da casa da Darcila, ela vai sentir o cheiro e gritar igual uma doida que é. Além do mais, no banheiro é mais apertado e na hora de me socorrer a gente vai ficar num aperto só... (sai correndo em direção ao banheiro e volta sentindo o cheiro do gás) Êta, cheiro maldito... Eu vou trancar a porta e deixar a chave no lugar que ele sabe achar. Imagina se entra a Darcila pra me puxar lá de dentro... Maldito, danado! Vem buscar sua porca, vem. Falou que ia almoçar em casa hoje... E que quando chegasse em casa ia me ligar... Podia até ter passado aqui mas aposto que ficou com medo de não conseguir sair mais dos meus abraços e voltar pro trabalho... Ah, seu danado! Quando o gás vaza aqui na vizinhança, todo mundo chama quem? O meu encanador. Aí ele vai me tirar de dentro do banheiro, tô pensando até em ligar o chuveiro, pra parecer que o fogo desligou e eu não vi... Aí vai me tirar no colo... Aí vai ser o nosso casamento. Eu toda suada e ele de macacão... Igual no dia em que a gente se conheceu. (Ela corre em direção ao banheiro, uma longa pausa. De longe, se escuta o grito da vizinha Darcila, Olha o gás vazando, Regina! Imediatamente o telefone toca, toca, toca e toca, mas ninguém atende).

que não...

tira do meu corpo
alguma incongruência explícita
deixa ele ser vácuo
para outra vez desejar ser rima

tira dele todo o sumo
deixe-me seco sem melancolia
deixe-me vago sem persistência
quero durar nas horas
no vazio deste secular
segundo

rompe esse mistério
vamos simplificar os planos
reduzir os custos
deixar tudo fácil
tudo simples
vamos ser simplórios
medíocres
infelizes
e sóbrios

para que tenhamos saudade
de toda aquela desmedida que agora
nos gera e contagia
nos constrange
e impossibilita
de ser outra coisa
que não menos
que isto
que não mais
que este
corpo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

list of month wishes

. terminar de ler aquele livro
. beijar mais bocas do que no mês passado
. acordar pleno, em mais dias e menos cansado
. entender aquele motivo
. desentender uma certeza, apenas
. descongelar a geladeira
. fazer uma compra de frutas
. levantar 8 cenas
. escrever mais algumas
. te esquecer
. te lembrar
. te pedir
. te trocar por uma distração
. menos cigarro
. café, sempre café, obsessão, sempre mais
. lavar todas as roupas
. ajudar mais os cegos
. tirar mais fotos
. desrespeitar o clérigo
. avançar limites
. desautorizar autoridades universitárias
. expor conflitos, expor tretas
. praticar vandalismo
. praticar a paz
. atuar, dirigir
. ver os familiares
. beijar os familiares
. ter conversas sérias - e definitivas - com alguns familiares em específico
. não alterar a área de trabalho do computador
. poder me desautorizar e alterar quantas vezes o que eu quiser
. comprar um novo computador
. arrumar a tomada do meu teclado
. arrumar o meu peito, tá rangendo
. tomar banhos mais curtos
. economizar luz
. comprar um isqueiro
. beber mais água
. acreditar na própolis
. rever amizades
. ir ao teatro
. ir ao cinema
. ir às exposições
. pipoca
. sexo
. cachorro-quente
. acabar com alguma possível dor de dente

lista do mês presente
sempre maior do que cabe dentro da gente
mas inda assim
plena
possível
paciente

capaz de ser mês corrente
e de acorrentar
seguindo a gente pela vida toda
até não mais ver, amor.

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