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domingo, 29 de abril de 2018

Avó minha,

Vejo uma senhora sentada num banco público. Lembro-me de ti, avó minha.
Meu rol de memórias tuas é tão pequeno, mas tão caloroso. Lembro-me pouco de seu jeito ao falar. Recordo-me quase nada de algum momento específico entre nós dois.
No entanto, te vejo com o pano de prato pelo sítio em fins de semanas intermináveis. Vejo a ti, também, adoecida e sentada à mesa, aguardando a medicação para cessar o câncer que em ti se multiplicaria e de nós a levaria.
Lembro-me, vó, de um dia que eu estava brincando no quintal e quebrei o braço ao cair da árvore. Ao gritar, chorando para ser socorrido, uma amiga de minha mãe veio até o quintal e me chamou a atenção. Disse-me que você estava doente e que minha mãe precisava apenas cuidar de ti.
Faz quase vinte anos desde a sua partida. Conservo em mim, a despeito dessas décadas, um amor a ti todo especial, amor ameno, amor sem muito conteúdo, mas pleno. O seu sorriso, quando me veio, fez-se ficar.
Não escrevo por saudade, vó. Escrevo para lembrar. Para lembrar que mesmo longe a senhora continua.

sábado, 21 de abril de 2018

Elogio ao Orgulho Próprio

Não será possível dar outro nome que não o seu próprio.
Sobre isso, que virá a seguir, não será possível dizer que não foi coisa sua
destinada a si mesmo.
Assim o é: e será preciso aceitar.
Alguma palavra de homem a homem
De você para você mesmo.

De todas as suas qualidades
a mais perigosa é essa de ser misantropo
de não se misturar tanto assim
Essa de querer muito ajudar o outro
qualquer outro
mas nunca ou quase nunca
se ajudar.

É escuro agora. Você na sua solidão forjada.
O que dirá a si mesmo?
Dirá mesmo alguma coisa?
O que você conseguiria dizer
e mais que isso
O que conseguiria receber?

Queria hoje te agradecer
em momentos como esse
por ter se tornado
quem é você
Simples assim
eu te agradeço a si próprio.

Não é feio
não fere a moral
qual moral?
que morra!
Agradeço a você
pelo caminho até aqui.

E te pergunto se dói
dói saber-se alguém que importa?
Dói assumir sua glória?
Ora
as mazelas você até que divulga abertamente
elas te dão força
Mas e suas maravilhas?
Elas não?

Seria preciso dormir com essa
dormir junto às palmas
dormir abraçado aos sucessos
são tantos
foram tantos
tantos serão
Qual é a questão?

Leu demais sobre ego e egocentrismos?
Morre de medo de parecer autoelogiativo?
Está ensimesmado?
O século vinte e um não está para isso?

Deixe o tempo estar a seu favor
um pouco
te peço
deixe-se elogiar
pelos outros
por você mesmo
Elogie-se, cara, ora!
Por que não?

A sua ação no mundo você alastra com alteridade
e preocupação
Não veio a brincar
já sabes disso
então qual é o problema
da autopromoção?
Você vai ter que se aguentar

do tamanho
que seus sonhos tão vívidos
fazem de ti
a cada passo
terás que aceitar
ser gente que faz com que coisas aconteçam
não pode nunca
nunca mais
te anular

porque você faz
fez
está fazendo
agora, por exemplo, agora
você se esfrega na cara
a possibilidade de mudar
o que antes era desse jeito:
lamúria por ter sido belo
desespero pelo sublime que é traço seu
qual foi, amigo?

O que você perdeu quando ganhou?
precisa perder?

Perdem-se maiúsculas e letras minúsculas
desordem na formalidade dessa casa cascuda
dos conceitos imberbes
Continue, eu te peço
continue sendo fazendo indo
e parando
sempre que preciso
para se abraçar.

Não é pelo abraço que não veio
não é mesmo pelo movimento dos astros
hoje você brilha
porque no escuro
abraçado em seu cansaço
ainda assim lava a louça
passa um pano no banheiro
tira a poeira do ventilador
ouve música com letra estranha
e sonha a vida presente
o tempo presente
o instante que nasce
- você sabe disso -
e morre
e em ti, poeta,
dura mais
dura mais porque resplandece.

Um brinde ao seu inesgotável compromisso com a continuação dessa história
a sua
que é dos outros
que é toda nossa.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

possível

Haveria a possibilidade de, num dia qualquer, retermos alguns acontecimentos numa duração mais alongada que a original?

Não se trata de medo. Perder já é fato. Mas, seria possível durar um pouco mais junto ao acontecimento? Para observar mais, aprender um pouco mais. Seria possível?


O cigarro apagou e o raio de sol que o deu essa pergunta acabou por desaparecer.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Sufocamento

É quando uma alegria sem nome
Te engole o medo
E fica tu assim todo repleto
Sentindo amor pelas pernas cruzadas
E compaixão - profunda - pelo
Desaparecimento do tempo.

O que restou sobra vivo fora dos nomes.

A diversão do homem foi inventar sentido
Para o que sobrevivia sem contorno
A vida
Ela mesma
A vida
Deixou de andar por ter lhe faltado
Um conceito?
Uma biologia?

Não, nem nada
Tudo seguiu e segue
E nesta tarde (importa ser tarde?)
Sobrevivo inerte na ousadia de um verso solto

Sei que me posso mais como poesia do que como homem feito

Soluço dentro do inexorável que é
Estar vivo
Aqui
Agora
Antes
Amanhã

Importa?

Nunca existiu nada tão velho quanto o agora.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Descripción

Perder-se ia em detalhes. Nas coisas. Sobre elas. Em seus tamanhos. Na sua duração no tempo. Quantos tempos? Cabem tantos. Sobretudo, os inventados. Perder-se ia e, no entanto, ainda que perdido, estaria sempre - e incessantemente - encontrado. Reencontrado. Escrito. Descrito. Revisto. Modificado.

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