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domingo, 29 de março de 2009

Tentativa 12/n

“O suicida quer a vida; não está descontente senão
das contradições em que a vida se lhe oferece”.

Schopenhauer


Alto de um prédio. Ela surge por trás dele, no exato momento em que ele ia se jogar.


Ela – Eu sei que isso não se pergunta, mas porque você vai fazer isso?

Ele – Se você souber, por favor, me avisa.

Ela – Não seja tão atirado.

Ele – Não estou sendo. Coloco, agora, um ponto final em tudo.

Ela – E os que ficam?

Ele – Continuam.

Ela – Sem você?

Ele – Sempre foi assim. Eu não faço diferença.

Ela – Faz sim, acredite.

Ele – Então não quero mais fazer.

Ela – Olha, eu sou igualzinha a você...

Ele – Não diz uma coisa dessas.

Ela – Só que eu parei um segundo pra olhar ao redor.

Ele – E o que você viu?

Ela – Na verdade, apenas formigas.

Ele – Formigas...

Ela – É. Foi a última coisa que vi antes de não me jogar.

Ele – E você ia mesmo?

Ela – E você também não vai?!

Ele – Pedra que é pedra despenca. Não pensa.

Ela – Isso faz a gente diferente... Mas também igual. Você já viu que elas andam em fila?

Ele – Andam em fila, gostam de doce. Muito original. Até o uniforme delas é o mesmo.

Ela – Mas existe um mistério além da fila. Uma esperteza individual que faz tudo avançar.

Ele – E o que elas fazem quando ficam sábias demais? Começam a tropeçar em fila?

Ela – Não sei. Mas nunca vi formiga suicida.


Ele engole a própria saliva.


Ele – Tem coisa que é leve demais pra morrer.

Ela – Ou pesada o suficiente pra não sair do lugar.

Ele – Eu já quis voar.

Ela – E agora?...

Ele – José.

Ela – José, e agora?

José – Eu tô no meio do caminho... Feito uma pedra.

Ela – Quanto você pesa?

José – Há três anos a mesma coisa.

Ela – Eu sou mais pesada que você, não sou?

José – Depende pesada de quê.

Ela – Quem chegaria primeiro?

José – É sempre quem pula na frente.

Ela – E se eu fosse com você?

José – Você diz de mãos dadas?

Ela – Em fila, talvez...

José – Sabe que não dá pra voltar, não é?

Ela – Talvez eu tenha medo de desistir por descobrir que eu ainda posso...

José – O quê?

Ela – Se eu dissesse talvez você não fosse acreditar.

José – Enfim, você vai ou não?

Ela – Se você não se importar, eu vou ficar mais um pouco.

José – Tudo bem. Depois de você eu não conseguiria mais ir.

Ela – Imagina. Se for por minha causa, pode ir...

José – Não. Eu... Talvez eu fique pelas formigas. Elas são realmente curiosas...

Ela – Eu não disse?

José – Alguém sempre diz algo que desvirtua o meu caminho.

Ela – Eu me pergunto que lugar é esse onde você não consegue chegar.

José – Será que é pra lá que elas estão indo?

Ela – É, talvez esteja mesmo na hora de eu descer.

José – Será que elas não podem me levar?

Ela – Meninas, me segurem que eu tô descendo!...

José – Eu posso ser mais um na fila...

Ela – Gente, desculpa, mas eu vou furar a fila!...

José – Eu aprendo a gostar de açúcar.

Ela – Ai, meu pai do céu, que ventania!...

José – Elas foram sem mim.


José finalmente olha em direção a Ela, toda descabelada.


José – O que houve com você?

Ela – Eu tava tentando ver pra onde elas estavam indo.

José – Será que elas sabem o caminho?

Ela – Eu não sei. Mas até que você tem olhos bonitos...

José – Mas elas se foram. Eu sinto muito...

Ela – Relaxa, você deve saber como fazer outras coisas além de olhar fomrigas...

José – Eu sei soltar chiclete grudado em roupa.

Ela – Que especial!

José – Eu sei dar beijo na boca.

Ela – Isso todo mundo sabe!

José – E quem não sabe?

Ela – Aprende com você.

José – Eu não sou tão doce assim.

Ela – Mas tem uma formiguinha caminhando em você.

José – (lançando a formiga pelo alto do prédio) Sai daqui!

Ela – Olha o que você fez!

José – Ela ia me morder!

Ela – E agora ele vai morrer!

José – Viu? A primeira formiga suicida agora existe!

Ela – Assassino! Foi você quem a matou! Ela não teve nem como escolher!

José – Não foi por querer! Ela não tem asa, tem? Ela vai morrer?!

Ela – Relaxa, têm coisas que voam sem ter asa.

José – Tipo bala de revólver?

Ela – Tipo sacola plástica.

José – Ela vai voar, eu sei.

Ela – Ela sim, mas e nós dois?

José – Quem?

Ela – Eu e você.

José – O que é que uma coisa tem a ver com a outra?

Ela – O que nós vamos fazer?

José – Por que você perguntou isso?

Ela – Porque talvez eu me inspire em você.


José ligeiramente incomodado.


José – Você pode parar de me olhar?

Ela – Eu não tô te olhando.

José – Ah, não? Então o que é que eu tô fazendo?

Ela – Conversando comigo.

José – Não, eu tava pensando.

Ela – Na formiga que você matou?

José – No meu cachorro.

Ela – O que tem ele?

José – Ele me lembra você.

Ela – Ele late muito?

José – O Choco? Ele late horrores. E costumava se inspirar em mim também.

Ela – Ele fugiu?

José – Choco morreu. Comeu o plástico do pote da ração. Foi todo dilacerado.

Ela – Isso era fome, com certeza.

José – Não, ele sabia.

Ela – Ou o que aconteceu foi que ele tentou te copiar.

José – Eu não costumo comer plástico!

Ela – Mas não deve ser a primeira vez que você tenta se... (Pausa) Desculpa. Mas o que realmente você veio fazer aqui em cima?

José – Vim fumar um cigarro.

Ela – Que bom ouvir você dizer isso. Um cigarrinho é tudo o que mais quero agora.

José – Você tem aí?

Ela – Tava esperando que você fosse me dar um.

José – O meu maço caiu lá embaixo.

Ela – Quer que eu vá buscar?

José – Não. Espera. É que eu tô me perguntando o que você veio fazer aqui.

Ela – Eu vim porque vi você subindo.

José – Mas eu tô aqui já vai fazer um dia.

Ela – Então... Você deve tá morrendo de fome.

José – Olha que eu tô, viu?

Ela – Viu o quê?

José – Elas voltaram.

Ela – Isso que elas estão trazendo é biscoito?

José – Biscoito preto é de chocolate.

Ela – De onde é que elas estão tirando isso?

José – Só se for daquela caçamba de lixo gigante ali embaixo.

Ela – Nossa, mas cabe uma família inteira de biscoitos ali dentro!

José – E a gente?

Ela – Também cabe.

José – Não, eu quero dizer, a gente vai descer ou ficar por aqui?

Ela – Não tem nenhuma outra alternativa, tem?


José, enquanto pensa, descansa o olhar sobre Ela.


Ela – Pára de me olhar.

José – Eu não tô te olhando.

Ela – Então o que eu tô fazendo?

José – Você tá me esperando.

Ela – Eu... Eu também tô morrendo de fome. E isso me lembra que eu tô viva, sabia?

José – E você se esqueceu disso alguma vez?

Ela – Não que eu lembre.

José – Pois é, porque morto não come. Morto é, no máximo, comida.

Ela – Eu não sou comida.

José – Há quanto tempo?

Ela – Já vai fazer um dia.

José – Não é tanto assim.

Ela – Mas se pelo menos eu fosse mordida...

José – Você se sentiria mais viva?

Ela – É... O que também não quer dizer que eu não possa mais ser...

José – Isso é fome.

Ela – Você me entende.

José – É que eu sou igualzinho a você...

Ela – Não diga uma coisa dessas!

José – Só... Que eu parei um segundo pra olhar ao redor...

Ela – E o que você viu que eu não consigo ver?

José – Na verdade...

Ela – Formigas?...

José – Eu vi você...

Ela – Alice.

José – Alice, eu vi você.

Alice – E o que nós vamos fazer?

José – Porque você perguntou isso?

Alice – Porque não tem muita coisa na minha geladeira.

José – E o que você sugere?

Alice – Não sou boa em sugestão.

José – E você é boa em quê?

Alice – Eu não sou boa não...

José – Ainda que fosse, do que isso importaria?

Alice – Não sei. Mas você poderia parar de me perguntar essas coisas?

José – Por quê?

Alice – Eu moro sozinha.


Fim.

.

sábado, 28 de março de 2009

No meio do caminho...

Surge transtornada no alto de um prédio. Veste uma roupa de entregadora de lanchonete e traz uma caixa de pizza. Retira de dentro da veste um gravador. Aciona o botão.


– Ah, chega uma hora que a gente fala, Eu tô cansada! Eu ia escrever. Mas pra quem enviar?! Então preferi falar. Quem escutar esse relato, por favor, acredita em mim, porque eu não acredito mais. Eu vou explicar tudo pra não ter dúvidas, eu tô cheia delas. Por exemplo, por quê eu pedi pra ser cozinheira e virei entregadora? Por quê, só olham pra mim, depois que já me pisotearam? Eu entrego pizza. Não é o melhor trabalho do mundo, mas é digno e eu me remexo muito. Era com isso que meus pais implicavam. Mamãe sempre repetia, Essa menina parece uma pedra, não faz nada. Tentava de um tudo pra me tirar do quarto, Anda, Rita! Vai à matinê, minha filha, a mãe dá o dinheiro pra você comprar uma guaraná! Só que eu não queria, poxa! É tudo fase na vida da gente. Às vezes sou mais devagar, às vezes sou mais devagar ainda. Também, quando você é criança, basta ficar parada pra acharem que você já tá doente! Poxa, como se contemplação fosse doença! Pra mim é muito difícil falar disso... Meu pai era pedreiro e, às vezes, fazia obra lá na escola que eu estudava. Eu não via nada demais, até o dia que ele gritou, na hora do recreio, pra todo mundo ouvir, Rita, menina! Vem falar com seu pai. Anda, vem! Nessa hora, eu mudei de cor sem sair do lugar. E ele continuou. Não foi legal! Ele olhou pros amigos, orgulhoso, e gritou, A mãe dessa daí tem mania de chamar ela de pedra. E não tem nada ver com o meu trabalho, não. É porque ela é um pouquinho devagar mesmo. Não é, menina? Pronto. Tem coisa que traumatiza a gente pra toda a vida. Eu lembro! Voltei do recreio e quando entrei na sala de aula, todo mundo gritava, Pedreira! Rita Pedreira! Eu ouvi todo o tipo de piada naquele ano, Rita, cadê sua pá? Rita, tem alguma coisa no seu cabelo, acho que é cimento, ah não, é tinta mesmo! Faz pouco tempo que eu fui entender tudo isso. Porque criança é literal, viram meu pai com tijolo e acharam que eu era igual. Ah, chega uma hora que a gente fala, Eu tô cansada!


– Quando eu cheguei em casa, mamãe disse, Minha filha, você já viu pedra chorar? Aquilo mudou tudo... Engoli o choro e só soltei quando meus pais morreram, porque eu sabia que mamãe não ia mais chamar minha atenção. Antes disso, na época do vestibular, prometi pra mim mesma que ia passar de primeira, porque se não passasse, era porque eu era tudo aquilo que diziam... Estudei pouco. Ficava pensando como é que se tirava leite de pedra. Aí eu percebi que eu era parada mesmo. Eu dormia mastigando milho, dormia embaixo do chuveiro, eu dormia contando carneirinho... Mas teve um poema que marcou, na verdade, que manchou a minha vida. Não! Porque depois que você é excluída uma vez, acha que acabou, que tá tudo certo. Mas as pessoas sempre querem mais, elas olham pra você e pensam, Essa daí já deve tá acostumada, nem vai sentir tanto! Aí eu virei a pedra do poema, poxa! No começo achei que o fato de ser Pedreira e virar pedra, era um avanço, porque eu diminuía de tamanho. Mas eu sempre me engano, eu nunca tô certa! Achei que Deus era cego ou não enxergava as coisas, porque eu vou te dizer uma coisa, viu! A turma inteira virou poeta. Todo mundo fez poesia com a minha cara. No meio do caminho tinha uma lerda, tinha uma lerda no meio do caminho... tinha uma ameba, tinha uma ameba no meio... Ah! Chega uma hora que a gente fala Eu tô cansada! E não é de entregar pizza, eu nem ligo de feder pizza! Eu canso é de ser isso que eu sou! Mas eu tô decidida! Não vou demorar, pois vão começar a me procurar porque eu não entreguei essa maldita pizza. De qualquer forma, eu não passei no vestibular porque vestibular é algo desumano! Tinha que pintar cem bolinhas à caneta no cartão de resposta. Poxa, isso cansa!... Aí eu consegui um emprego, pelo menos. Sou entregadora com possibilidade de ser caixa. Eu não sei o que meus pais iam pensar de mim... Eu devia ter assinado um monte de documento, pagado um monte de conta antiga, tudo pra casa ir pro meu nome. Mas tudo é tão difícil! Eu acabei perdendo a nossa casa... Não é culpa minha! As coisas correm tanto que eu perco as chaves de casa, eu perco o freio... Eu ando tão triste...


– Suicídio é menos doloroso, dá menos trabalho, abre um monte de possibilidades. Eu já aviso logo que eu não fui assassinada, não fui molestada, quem dera estuprada. Imagina! Eu sou uma pedra! Ninguém come pedra, ninguém dorme com pedra, ninguém sequer beija boca de pedra. Beijam sapo, agora pedra?! Pedra tem boca? Nunca! Pedra vive no meio do caminho dos outros. Eu entrego pizza e ainda consigo parar no meio da entrega. E por quê? Eu não sei porque, porque se eu soubesse eu não ia ser chamada de pedra! Eu me sinto tão deslocada, quase uma retardada! Eu sinto que as pessoas olham pra mim e fofocam, Coitada, essa daí ainda tá na mesma? Eu tô na mesma. Eu tô nessa, sim! E vou perder meu emprego. Aliás, eu vou morrer, não importa... E essa pizza? Ela vai esfriar? Rita, presta atenção! Pedra não come, pedra nem fala, você já viu pedra falar, Rita? Não! Só eu... Eu não sou eu nem sou outro. Sou qualquer coisa de intermédio. Eu tenho baixa-estima, poxa. Chega uma hora que a gente fala Eu tô cansada! Agora... Pedra fica cansada? Pedra reclama da vida? Pedra tem vida? Pedra fica parada. Pedra fica no chão, presa. Pedra serve para segurar papel, mas nunca para ser cozinheira, porque pedra, pedra é algo pesado e quem é pesado anda mais devagar, atrás de todo mundo, até parar dentro do sapato dos outros, fincada no gramado, dividindo o rio... Ser pedra é isso aí que você é, sua indolente, um obstáculo.


Rita percebe que o gravador enrolou a fita. Retira-a de dentro dele, azucrinada.


Eu sou um embaraço! Uma impossível! Você é uma bruta, sua lerda! Você não é tudo isso, pára de se ofender! Você fica se pisando, sua maluca! Já não bastam os outros?! Você sempre faz isso e agora vai me dizer o porquê! Anda, responde! Isso devia ser pecado, Rita! Poxa!... O problema é que tudo tá correndo e eu não suporto correr... Por isso eu subi até o alto desse prédio e daqui eu me jogo. Quem sabe não dou a sorte de me espatifar toda e deixar de ser uma pedra?! Porque eu ainda sou uma pedra, poxa! E pedra não corre, não usa biquíni... Pedra despenca do barranco, pedra é arremessada, eu sou toda involuntária...


E assim jogou-se do prédio alto. Deixou, sete segundos após o salto, de ser Rita Pedreira.

.

Mas não aconteceu nada com o amor.

Em tom confessional.


Ele – Eu sei que ela era a coisa mais linda.

Ela – Tipo como?

Ele – Não era linda na definição da palavra. Mas era linda. Aos meus olhos interessava.

Ela – E o que mais?

Ele – Você também pode ir falando.

Ela – Tá. Comigo foi tudo muito inesperado. Eu tinha acabado de deitar na minha cama. A porta do quarto tava aberta. Sabe aquele silêncio que dá depois de tanto barulho procurando uma posição pra dormir?

Ele – Você sabe que eu sei.

Ela – Então, ele durou uma eternidade. Porque não era bem silêncio, era espera.

Ele – Eu também esperei muito. Mas eu sou daqueles que espera sentado, sem nem mexer direito, no máximo olhando e desolhando, voltando a assumir uma cara de assustado.

Ela – E depois?

Ele – Depois já era tarde. Eu tinha olhado de um jeito que entregou tudo. Porque ela entendeu só no olhar. Indo e voltando. Andando na minha frente. Naquela hora eu soube que eu não teria como escapar.

Ela – Você não queria escapar.

Ele – Eu queria espiar. Ficar olhando apenas. Sonhando.

Ela – Não dá pra sonhar de olhos abertos, ainda mais se o seu sonho tiver corpo e vida própria.

Ele – Eu sei. Mas talvez por medo, por não saber o que fazer, eu achei que eu pudesse escapar daquela festa, só, com meus desejos.

Ela – Eu não tinha como escapar. A porta do quarto arreganhada. Achei que ainda não era o momento certo de me jogar pela janela.

Ele – Conseguia respirar?

Ela – Só pra mim. Como se não quisesse mover o ar do quarto. Porque quanto mais eu respirava, mais rápido ele ia entrando, assumindo o espaço vago.

Ele – Isso é nervoso, não respiração. Nervosismo vai puxando o ar e faz tudo em volta se aproximar. As pessoas começaram a perceber que eu tava diferente.

Ela – E o silêncio que eu tinha te falado começou a virar ruído. Deitada na cama, sem ar, eu fui ouvindo os pés dele tentando não tocar o chão do meu quarto. Que eu sei muito bem como reage aos desejos mais intensos. No primeiro ruído eu soube que viria um segundo e outro mais, até o momento em que eu teria que acordar, como se tivesse sido tirada de um sono incrível e profundo.

Ele – É, não tinha mesmo como você fugir. Mas eu fugi. Eu caí na idiotice de ir ao banheiro. Como se lá eu pudesse me esconder. Eu sou tão idiota!

Ela – Não é!

Ele – Eu sei que não. Eu quero dizer, eu fui para um lugar reservado. Molhei um pouco o rosto. E quando saí, ela estava ali fora, parada, me olhando.

Ela – Te esperando.

Ele – Eu sei. E não tinha mais ninguém por perto.

Ela – E o que você disse?

Ele – Calma. Eu vou te contar tudo. Como se fosse a primeira vez.

Ela – Ela pegou na sua mão?

Ele – Não me lembro.

Ela – Como não lembra?

Ele – Não importa. Não deu tempo. O que mais me tocou, foi que ela disse algo como vamos ali em cima que eu vou te mostrar uma coisa.

Ela – Ah, e você caiu nesse papo?

Ele – Não era para cair?!

Ela – Era o que você queria?

Ele – Você sabe que sim. Depois nós subimos até o terraço e ela me mostrou a lua. Depois virou de frente pra mim, soltou minha mão...

Ela – Então ela te deu as mãos?

Ele – Deu. Pronto.

Ela – Você não pode esquecer dos detalhes. São eles que dão a verdade da coisa, que dão a intensidade disso tudo que a gente tava sentindo.

Ele – Os detalhes. Ela virou, soltou a minha mão, e o silêncio que você sentiu deitada no seu colchão, pois então, eu senti nesse momento. O silêncio era toda a curta distância que separava a gente do nosso primeiro beijo.

Ela – E beijou?

Ele – Agora conta você.

Ela – A minha ou a sua história?

Ele – A sua, é claro.

Ela – Beijei.

Ele – Não! A minha!

Ela – Ah, você falou a minha.

Ele – Agora você entendeu. Continua.

Ela – Onde eu parei?

Ele – Na parte que ele entrava no meu quarto...

Ela – Isso. Ele entrava no meu quarto. E eu deitada, fingindo de morta. Ele veio vindo e eu na minha cabeça pensando, gente, a gente vai transar.

Ele – Nossa, com você é tudo assim tão inevitável?

Ela – Eu não sei se eu queria evitar. Eu tava perto demais. Já sem ar. Não sei se eu tive tempo de administrar tudo o que eu tava sentindo, ainda mais fingindo a morta.

Ele – Você é uma piranha!

Ela – Sou mesmo!

Ele – Também não exagera!

Ela – Chega, vamos voltar aos detalhes.

Ele – Espera, conta só o finalzinho.

Ela – A gente transou.

Ele – Sem graça.

Ela – Que nada, foi ótimo.

Ele – Odeio quando você faz isso.

Ela – Tá bom. Eu me levantei de repente, sentei na cama, ele levou um susto e recuou um pouco. A gente se olhou por um segundo, tava escuro, e eu ouvi ele balbuciar um pedido de desculpas...

Ele – Que fofo!

Ela – Aí eu estiquei as mãos para ele...

Ele – As duas?

Ela – Sei lá.

Ele – Ué, tem que saber! Foi a mão direita ou a esquerda?

Ela – Foi uma mão só que eu sei. Aí ele também me esticou uma mão, sentou do meu lado na cama, e foi aí que...

Ele – A gente começou a se beijar.

Ela – Você nunca me deixa falar o final!

Ele – É a parte que eu mais gosto.

Ela – Como eu vou ser sincera? Eu tenho que transbordar toda essa verdade!

Ele – Então fale de mim como se fosse você.

Ela – É isso que estamos fazendo.

Ele – Não, eu quis dizer, fala do meu beijo lembrando de como foi o seu.

Ela – Funciona?

Ele – Beijo é beijo.


Silêncio. Olham-se profundamente e dão-se as mãos.


Ela – Você me sabe por inteiro. E eu sei você todinho.

Ele – Perigo vai ser no dia que a gente se perder. Vão ser quatro perdidos pelo mundo.

Ela – Eu e você em mim.

Ele – E eu e você, também aqui.

Ela – Eu te amo, amigo.

Ele – Eu não vou dizer o mesmo. Estamos buscando a palavra nova, não estamos?

Ela – É muito difícil encontrar. Mas como você insiste, a gente segue procurando.

Ele – E enquanto ela não existir, deixa assim como está. A gente não tem que dar nome a tudo. É muita coisa e ainda mudaram as normas ortográficas, você viu?

Ela – Vi. Mas não aconteceu nada com o amor.

Ele – Esse aí já tá na Academia. É mais sagrado que amém, mais falado que Jesus, mais culpado do que Satanás e mais vendido do que Harry Potter.

Ela – Parece mesmo bruxaria.


Soltam as mãos. Olham-se preocupados.


Ele – O que a gente vai fazer?

Ela – Quando a sua mãe e o seu pai vierem buscar a gente, eu começo a contar a sua história, exatamente como a gente ensaiou.

Ele – Espero que meu pai não bata de carro.

Ela – Não. Ele vai achar tudo tão lindo e sincero, que depois não vai ter como não te respeitar.

Ele – Eu não sei não...

Ela – Você não vai fazer nada. Só me pergunte coisas que me façam responder algo importante que eu esteja esquecendo.

Ele – Do tipo?...

Ela – Ele tinha o pinto grande?... Sacanagem!

Ele – E o pior que tinha, tá?

Ela – Eu sei, eu sei. E depois você vai dizer com invejável articulação e boa pronúncia...

Ele – Você sabe tudo da minha vida, amiga. Não esqueceu nenhum dos detalhes do que aconteceu comigo. Eu vou te contar sempre as coisas da minha vida pra que um dia você escreva um livro.

Ela – Tem que ser mais descontraído, senão parece que é decorado.

Ele – Mas é decorado!

Ela – Eu sei que é, mas você tem que dizer como se não fosse nada demais. Tem que jogar fora. Como se você tivesse me perguntando se eu tenho bala ou doce. Entendeu?

Ele – Ah, ótima idéia. Não pode ser amendoim?

Ela – Se quiser entrar e pegar a arma do meu pai, eu sei onde tá escondida, vai querer?

Ele – Não, tudo bem. É que eu já vou tá nervoso e ainda vou ter que ser bom ator!

Ela – É verdade. E é melhor você falar isso quando estivermos em baixa velocidade.

Ele – Acha que eles vão entender?

Ela – Não sei, são seus pais, você que tem que saber.

Ele – Do jeito que eles são, meu pai vai parar na farmácia e comprar um remédio pra febre. E enquanto ele estiver pagando, minha mãe vai virar lentamente pra trás e falar algo do tipo, como vocês jovens são criativos, porque não escrevem um livro?

Ela – Já sei então!

Ele – Agora a coisa tem que piorar, você não acha? Pra eles verem que não tem volta.

Ela – Exato. Que não é doença. Eu acho que eu podia te perguntar qual é o nome dele.

Ele – Eu vou dizer...

Ela – Não, você me devolve outra pergunta do tipo, ele quem.

Ele – Muito armado!

Ela – Não é. Você pergunta ele quem e eu digo, do menino que você ficou!

Ele – Mas eu não fiquei com ele, eu transei. Eu tô perdido!

Ela – Ótimo. Qual é o nome do menino que você transou?

Ele – Eu falo?

Ela – Óbvio. Só não fala o sobrenome porque seu pai vai querer procurar no Orkut.

Ele – Meu pai não tem Orkut.

Ela – O meu tem. Perfil falso ainda. gostodeninfetas@hotmail.com.

Ele – Gente, eles são piores do que a gente!

Ela – Você não faz idéia! O nome dele nesse perfil é Sexy... Genário.

Ele – Como você sabe disso?

Ela – Ele cantou a Bia pela Orkut. Daí ela me passou o e-mail. E, por coincidência, ele estava gravado no meu computador. Espertinho, não?

Ele – Medo!

Ela – E qual é o nome do menino que você transou, amigo?

Ele – Eu... Não sei.

Ela – Como não?! Você me disse que era...

Ele – Era mentira! Era um amigo do meu irmão que eu nunca tinha visto, ele dormiu na sala enquanto meu irmão tava no quarto dele se divertindo!

Ela – Então você é uma piranha autêntica!

Ele – Pára com isso! Eu invento um nome.

Ela – Não precisa! Chega de inventar coisas.


Silêncio constrangedor. Toca o celular do rapaz. Olham-se apreensivos.


Ele – Oi, pai? Estamos te esperando. Como quem?! Eu e a Carla, eu disse que ela ia dormir aí em casa! Ah, não, então qual é o problema? Meus primos?! Pai, eles nem conversam comigo. Tá, não precisa correr, eu tô terminando de juntar minhas coisas...

Ela – Fudeu.

Ele – Você não faz idéia! O carro tá cheio, você não vai poder ir. O que eu vou fazer? Eu não agüento mais enrolar, eu quero viver a minha vida, não posso fingir eternamente que eu sou outra coisa e não isso que eu realmente sou!

Ela – Calma!

Ele – Calma?! Têm dois primos meus dentro do carro, do tipo de quem pega geral, a primeira coisa que eles vão falar quando me virem é fala leque, sabe de alguma balada que tá rolando hoje. Eu não vou conseguir sem você.

Ela – Me bate!

Ele – O quê?!

Ela – Anda, me aperta, me belisca, me faz chorar. O seu pai tá chegando ali, eu tive uma idéia, me espanca!


Atônito, ele abraça a amiga. No cruzar dos braços, porém, sucessivas e inúmeras vezes ele a belisca. As mãos nas costas dela puxam também seus cabelos. Som de carro estacionando ao lado. Ela se repele do abraço e chorando, começa a gritar muito alto,


Ela – Eu prefiro morrer a contar para meus pais! Eles vão querer me tirar de casa, vão me internar, vão perguntar o que fizeram de errado! Minha mãe vai gritar menina você é gay! Você é um monstro, merece morrer! Meu pai vai dizer, mulher, nossa filha tá doente! Você não devia ter a deixado ir ao show da Ana Carolina! Eles não vão compreender, eu sei que não, eu prefiro morrer...


Os pais do menino no carro. Os primos bombados. Som acidental de buzina no ar.


Ele – Oi pai, oi mãe, oi Fred, oi Júnior. Só um segundo.


Ele abraça a amiga e tenta a acalmar.


Ele – Carla, calma! Isso não era comum na época deles, mas hoje é. Todo mundo é gay, quer dizer, muita gente é. Não tem problema. Eu te amo mesmo assim. Quer dizer, eu gosto muito de você, amiga! Se quiser ir dormir lá em casa, tudo bem, eu fico aqui e a gente volta junto de ônibus.

Ela – Eles não vão me aceitar nunca mais, eu vou cortar meus pulsos!

Ele – Eles têm que te aceitar. Os pais são todos iguais. Tudo o que eles dizem e fazem é por preocupação. Eles acham que ser gay é o mesmo que ir pra guerra.

Ela – O quê?!

Ele – Carla, sossegue, o amor é isso que você está vivendo! É inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Se eu fosse gay com certeza meus pais iriam entender...


Som de pneus arranhando o asfalto. A família do rapaz saiu em disparada. Silêncio.


Ele – Pai? Mãe? Fred? Júnior?

Ela – Meu Deus!

Ele – Eu tô perdido!

Ela – Eu tô mais, porque o meu pai ouviu tudo, ele tá vindo aí!

Ele – Ai, meu Jesus amado!


Saem os dois correndo.


Fim.


sexta-feira, 27 de março de 2009

há sombra

a sombra me persegue
e por mais que eu a olhe de relance
nunca a surpreendo o bastante
para vê-la parar
assim
diante de mim,

por mais que me confunda
posto seja sombra
é no continuar do meu corpo
que a dúvida também me abandona
e o que resta é solidão
pura escuridão dos sentidos,

a sombra me persegue
mas o seu chegar não é destino
seu chegar habita em mim
fosse eu feito precipício
limite para existir
a sombra
ou não,

se deixar de me perseguir assim
para onde apontará sua seta?
serás sombra minha escuridão no dentro
ou serás luz
transferência verão-outono
ou simplesmente
sombra-primavera?

persiste, sombra
disputa em mim o que possa ser essa escuridão
seja meu espelho sem reflexo
seja no obscuro o meu protesto
a minha própria indagação

o meu tentar fazer compreender
eterno sobre o que possa ser
isso que ontem me tornei
e que hoje não consigo mais
não ser..
.

qual era

precisa categorizar?

não seria uma era faústica
ou seria fálica?

falida

ou fomigerada?

existem tais palavras
ou in-existem?

qual era, enfim
a palavra que um dia não cansava de repetir?

qual era, enfim
o nosso verso o nosso verbo qual era o nosso protesto qual era me diz?

esquecemos (de sorrir).
cimentamos (o silêncio).
foi tudo acidente
ou nós mesmos que nos morremos?

quinta-feira, 26 de março de 2009

Manhã

O café resvala aos pingos
O braço sobre a mesa
tudo é desconforto é contínuo

No rádio a perdição dos corpos
dos outros
da menina que morreu atropelada
do pai que lançou ao chão outro
do chocar entre vidas que resultam
em resto

Sobre a mesa
o braço aguarda ser perfurado
o sangue circula desconfiado
serás sugado
serás, sangue, desviado
para isso
amarra aqui esse elástico
comprime no pulso esse dado
e o colete
perfurando a pele
e eternizando o segundo

Enjoa, corpo
nublado fique sem saber onde está
lance para dentro de si todo açúcar
para não escorregar nem no chão restar
todo esse açúcar, sangue
não mata antes de te salvar

Enjoa, corpo
Nublado fique até se reencontrar
Nublado fique até amanhecer outra vez
e noutra manhã
quem sabe
você há de se encontrar
quem sabe há.
.

terça-feira, 24 de março de 2009

o que haverá lá na frente

um desafio
o de olhar para fora
sim, sai de um dentro
mas ruma para fora
por um tempo
um mês
talvez
somente para lá
para distante de mim
para distante dos órgãos meus
já remoídos tamanha a epopéia
que me faço passar,

tudo se dará noutra direção
a percepção do fora será a condição
as rimas vão ter que se matar
se quiserem apreender o que não se contém
tudo é estranho de antemão
tudo é fora
em mim nada mais se
detém.

sobro.
sobro.
sobro por um tempo.
para ter que sentir - novamente - a minha necessidade.
.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Não há nada estranho.

- Não tem conflito?
- Não tem nada.
- Tem que haver alguma coisa.
- Não há.
- E eu faço o que, fico olhando pra você?
- Não precisa.
- Você está mais econômico do que ontem, em suas palavras, eu quero dizer.
- Faz sentido. Eu perdi tudo.
- Ou quase tudo?
- Tudo.
- Sei.
- Sabe o quê?
- Você tem curiosidade em saber?
- Tenho.
- Então não perdeu realmente tudo?
- É. Tudo não.
- Isso é um começo, que bom.
- Não.
- Não é um começo?
- Não. Não é bom.
- Também não é bom? Ou é um começo, mas não uma boa sensação?
- Não. Não.
- Não tem conflito?
- Tem conflito.
- Qual?
- Você não vê?
- Não há conflito.
- Ele está de frente pra você.
- Eu estou olhando para o nada.
- Justamente. Eu disse.
- Disse o quê?
- Não há nada.
- Então não há nada?
- Na verdade, não. Há nada.
- Há um nada?
- Há.
- Que nada.
- Há sim.
- Não há não.
- Era esse o conflito.
- Isso não é necessariamente um conflito.
- A não ser que seja pra mim e não seja pra você.
- É assim.
- Portanto temos um conflito.
- Mas porque?
- Por causa disso.
- Eu quero dizer, porque precisamos de um conflito?
- Eu não sei.
- Foi algum manual?
- Deve ter sido.
- Desses que faz a gente perder tudo em troca de alguma certeza?
- Deve ter sido mesmo.
- Não precisamos.
- Do conflito?
- Não precisamos dele.
- Por mim, tudo bem.
- Então estamos acertados?
- Acertados?
- Eu digo, estamos bem um com o outro?
- E não estávamos?
- Estávamos.
- Estamos.
- Então, tudo bem.
- Tudo bem, então.
- Estranho?
- Não há nada estranho.
- Há. Alguma coisa tá estranha...
- Não sou eu, é você.
- Sou eu?
- Só pode ser!
- Não, eu não!
- Então tem alguém aqui além de nós dois...
- Pode ser...
- É isso que é estranho...
- Faz sentido.
- Faz sentido...
- Tem alguém olhando a gente não tem?
- É o que eu desconfio.
.

Borrado a desejo

Dizem que o que escrevo é taxativo

Que há demais tratados sobre amor

E morte

Sobre coisas que me extrapolam

Ou que sequer me acometem.


Dizem que há muitas certezas

Muitas formulações objetivas,

Como se eu pretendesse ter o poder

De dizer qual tipo de amor

Você, amante, pode sofrer.


Não.

Apenas tinjo

Com as tintas que tenho em mão.


Não quero dizer sobre as formigas num dia de verão.


Não quero fazer poesia da nuvem e sua imensidão.


O que me atrai está com tempo contado

O fim por mim ou por outro já foi estipulado

E assim

Não perco o sono sonhando

Escrevo mal se faz o dia a agonia escolhida

Para viver.


Não é taxativo

A recorrência não quer dizer segurança

Nem certeza

Repito há morte

Porque ela em mim não se cansa.


Formulo o certo sobre o amor

Porque todo o dia a certeza se esvai

E eu, louco

de amor

Invento outras,

Para suprir o coração estripado.


Em mim cabe todo o mundo.


Não me peça, porém, que o reduza aos meus pés.


Deixe-me lançar ao impossível

E caso não assim seja,

Deixe-me, como a xícara suja sobre a mesa.


Corpo usado

Esquecido

Mas borrado

a desejo.

.

Pêssego

As coisas voltam, não fique assim
Elas dão voltas, foi o que quis dizer
Hoje aqui amanhã num talvez
Talvez seja mesmo assim
feito o pêssego que desprende e rola inseguro
até um deitar entre-lábios.

Vão também eu sei mas voltam
O destino é esse, não percebe
um ir.

Todos temos os destinos
tememos também todos os meninos
porque não sabemos o que farão em nosso corpo
e os meninos hoje em dia
cada vez são mais veludos.

Cada vez mais um pouco agora
e depois cada mais vez pouco
restando o corpo assim rouco
corpo todo torto
pois louco
de amor.

Insista, persista
nessa curva do pessegueiro.
Siga a ondulação dos caules
e se preciso
contorce-te todo
e exploda pelo meio,

primeiro
pelo meio
segundo
pelo abandono

da semente destemida
desencapada
desveludada
dá-se de morta
e obtusa

para de novamente novo vir a ser
outra coisa
que não isso hoje entre eu e você,
mero esquecimento.
.