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sábado, 28 de março de 2009

Mas não aconteceu nada com o amor.

Em tom confessional.


Ele – Eu sei que ela era a coisa mais linda.

Ela – Tipo como?

Ele – Não era linda na definição da palavra. Mas era linda. Aos meus olhos interessava.

Ela – E o que mais?

Ele – Você também pode ir falando.

Ela – Tá. Comigo foi tudo muito inesperado. Eu tinha acabado de deitar na minha cama. A porta do quarto tava aberta. Sabe aquele silêncio que dá depois de tanto barulho procurando uma posição pra dormir?

Ele – Você sabe que eu sei.

Ela – Então, ele durou uma eternidade. Porque não era bem silêncio, era espera.

Ele – Eu também esperei muito. Mas eu sou daqueles que espera sentado, sem nem mexer direito, no máximo olhando e desolhando, voltando a assumir uma cara de assustado.

Ela – E depois?

Ele – Depois já era tarde. Eu tinha olhado de um jeito que entregou tudo. Porque ela entendeu só no olhar. Indo e voltando. Andando na minha frente. Naquela hora eu soube que eu não teria como escapar.

Ela – Você não queria escapar.

Ele – Eu queria espiar. Ficar olhando apenas. Sonhando.

Ela – Não dá pra sonhar de olhos abertos, ainda mais se o seu sonho tiver corpo e vida própria.

Ele – Eu sei. Mas talvez por medo, por não saber o que fazer, eu achei que eu pudesse escapar daquela festa, só, com meus desejos.

Ela – Eu não tinha como escapar. A porta do quarto arreganhada. Achei que ainda não era o momento certo de me jogar pela janela.

Ele – Conseguia respirar?

Ela – Só pra mim. Como se não quisesse mover o ar do quarto. Porque quanto mais eu respirava, mais rápido ele ia entrando, assumindo o espaço vago.

Ele – Isso é nervoso, não respiração. Nervosismo vai puxando o ar e faz tudo em volta se aproximar. As pessoas começaram a perceber que eu tava diferente.

Ela – E o silêncio que eu tinha te falado começou a virar ruído. Deitada na cama, sem ar, eu fui ouvindo os pés dele tentando não tocar o chão do meu quarto. Que eu sei muito bem como reage aos desejos mais intensos. No primeiro ruído eu soube que viria um segundo e outro mais, até o momento em que eu teria que acordar, como se tivesse sido tirada de um sono incrível e profundo.

Ele – É, não tinha mesmo como você fugir. Mas eu fugi. Eu caí na idiotice de ir ao banheiro. Como se lá eu pudesse me esconder. Eu sou tão idiota!

Ela – Não é!

Ele – Eu sei que não. Eu quero dizer, eu fui para um lugar reservado. Molhei um pouco o rosto. E quando saí, ela estava ali fora, parada, me olhando.

Ela – Te esperando.

Ele – Eu sei. E não tinha mais ninguém por perto.

Ela – E o que você disse?

Ele – Calma. Eu vou te contar tudo. Como se fosse a primeira vez.

Ela – Ela pegou na sua mão?

Ele – Não me lembro.

Ela – Como não lembra?

Ele – Não importa. Não deu tempo. O que mais me tocou, foi que ela disse algo como vamos ali em cima que eu vou te mostrar uma coisa.

Ela – Ah, e você caiu nesse papo?

Ele – Não era para cair?!

Ela – Era o que você queria?

Ele – Você sabe que sim. Depois nós subimos até o terraço e ela me mostrou a lua. Depois virou de frente pra mim, soltou minha mão...

Ela – Então ela te deu as mãos?

Ele – Deu. Pronto.

Ela – Você não pode esquecer dos detalhes. São eles que dão a verdade da coisa, que dão a intensidade disso tudo que a gente tava sentindo.

Ele – Os detalhes. Ela virou, soltou a minha mão, e o silêncio que você sentiu deitada no seu colchão, pois então, eu senti nesse momento. O silêncio era toda a curta distância que separava a gente do nosso primeiro beijo.

Ela – E beijou?

Ele – Agora conta você.

Ela – A minha ou a sua história?

Ele – A sua, é claro.

Ela – Beijei.

Ele – Não! A minha!

Ela – Ah, você falou a minha.

Ele – Agora você entendeu. Continua.

Ela – Onde eu parei?

Ele – Na parte que ele entrava no meu quarto...

Ela – Isso. Ele entrava no meu quarto. E eu deitada, fingindo de morta. Ele veio vindo e eu na minha cabeça pensando, gente, a gente vai transar.

Ele – Nossa, com você é tudo assim tão inevitável?

Ela – Eu não sei se eu queria evitar. Eu tava perto demais. Já sem ar. Não sei se eu tive tempo de administrar tudo o que eu tava sentindo, ainda mais fingindo a morta.

Ele – Você é uma piranha!

Ela – Sou mesmo!

Ele – Também não exagera!

Ela – Chega, vamos voltar aos detalhes.

Ele – Espera, conta só o finalzinho.

Ela – A gente transou.

Ele – Sem graça.

Ela – Que nada, foi ótimo.

Ele – Odeio quando você faz isso.

Ela – Tá bom. Eu me levantei de repente, sentei na cama, ele levou um susto e recuou um pouco. A gente se olhou por um segundo, tava escuro, e eu ouvi ele balbuciar um pedido de desculpas...

Ele – Que fofo!

Ela – Aí eu estiquei as mãos para ele...

Ele – As duas?

Ela – Sei lá.

Ele – Ué, tem que saber! Foi a mão direita ou a esquerda?

Ela – Foi uma mão só que eu sei. Aí ele também me esticou uma mão, sentou do meu lado na cama, e foi aí que...

Ele – A gente começou a se beijar.

Ela – Você nunca me deixa falar o final!

Ele – É a parte que eu mais gosto.

Ela – Como eu vou ser sincera? Eu tenho que transbordar toda essa verdade!

Ele – Então fale de mim como se fosse você.

Ela – É isso que estamos fazendo.

Ele – Não, eu quis dizer, fala do meu beijo lembrando de como foi o seu.

Ela – Funciona?

Ele – Beijo é beijo.


Silêncio. Olham-se profundamente e dão-se as mãos.


Ela – Você me sabe por inteiro. E eu sei você todinho.

Ele – Perigo vai ser no dia que a gente se perder. Vão ser quatro perdidos pelo mundo.

Ela – Eu e você em mim.

Ele – E eu e você, também aqui.

Ela – Eu te amo, amigo.

Ele – Eu não vou dizer o mesmo. Estamos buscando a palavra nova, não estamos?

Ela – É muito difícil encontrar. Mas como você insiste, a gente segue procurando.

Ele – E enquanto ela não existir, deixa assim como está. A gente não tem que dar nome a tudo. É muita coisa e ainda mudaram as normas ortográficas, você viu?

Ela – Vi. Mas não aconteceu nada com o amor.

Ele – Esse aí já tá na Academia. É mais sagrado que amém, mais falado que Jesus, mais culpado do que Satanás e mais vendido do que Harry Potter.

Ela – Parece mesmo bruxaria.


Soltam as mãos. Olham-se preocupados.


Ele – O que a gente vai fazer?

Ela – Quando a sua mãe e o seu pai vierem buscar a gente, eu começo a contar a sua história, exatamente como a gente ensaiou.

Ele – Espero que meu pai não bata de carro.

Ela – Não. Ele vai achar tudo tão lindo e sincero, que depois não vai ter como não te respeitar.

Ele – Eu não sei não...

Ela – Você não vai fazer nada. Só me pergunte coisas que me façam responder algo importante que eu esteja esquecendo.

Ele – Do tipo?...

Ela – Ele tinha o pinto grande?... Sacanagem!

Ele – E o pior que tinha, tá?

Ela – Eu sei, eu sei. E depois você vai dizer com invejável articulação e boa pronúncia...

Ele – Você sabe tudo da minha vida, amiga. Não esqueceu nenhum dos detalhes do que aconteceu comigo. Eu vou te contar sempre as coisas da minha vida pra que um dia você escreva um livro.

Ela – Tem que ser mais descontraído, senão parece que é decorado.

Ele – Mas é decorado!

Ela – Eu sei que é, mas você tem que dizer como se não fosse nada demais. Tem que jogar fora. Como se você tivesse me perguntando se eu tenho bala ou doce. Entendeu?

Ele – Ah, ótima idéia. Não pode ser amendoim?

Ela – Se quiser entrar e pegar a arma do meu pai, eu sei onde tá escondida, vai querer?

Ele – Não, tudo bem. É que eu já vou tá nervoso e ainda vou ter que ser bom ator!

Ela – É verdade. E é melhor você falar isso quando estivermos em baixa velocidade.

Ele – Acha que eles vão entender?

Ela – Não sei, são seus pais, você que tem que saber.

Ele – Do jeito que eles são, meu pai vai parar na farmácia e comprar um remédio pra febre. E enquanto ele estiver pagando, minha mãe vai virar lentamente pra trás e falar algo do tipo, como vocês jovens são criativos, porque não escrevem um livro?

Ela – Já sei então!

Ele – Agora a coisa tem que piorar, você não acha? Pra eles verem que não tem volta.

Ela – Exato. Que não é doença. Eu acho que eu podia te perguntar qual é o nome dele.

Ele – Eu vou dizer...

Ela – Não, você me devolve outra pergunta do tipo, ele quem.

Ele – Muito armado!

Ela – Não é. Você pergunta ele quem e eu digo, do menino que você ficou!

Ele – Mas eu não fiquei com ele, eu transei. Eu tô perdido!

Ela – Ótimo. Qual é o nome do menino que você transou?

Ele – Eu falo?

Ela – Óbvio. Só não fala o sobrenome porque seu pai vai querer procurar no Orkut.

Ele – Meu pai não tem Orkut.

Ela – O meu tem. Perfil falso ainda. gostodeninfetas@hotmail.com.

Ele – Gente, eles são piores do que a gente!

Ela – Você não faz idéia! O nome dele nesse perfil é Sexy... Genário.

Ele – Como você sabe disso?

Ela – Ele cantou a Bia pela Orkut. Daí ela me passou o e-mail. E, por coincidência, ele estava gravado no meu computador. Espertinho, não?

Ele – Medo!

Ela – E qual é o nome do menino que você transou, amigo?

Ele – Eu... Não sei.

Ela – Como não?! Você me disse que era...

Ele – Era mentira! Era um amigo do meu irmão que eu nunca tinha visto, ele dormiu na sala enquanto meu irmão tava no quarto dele se divertindo!

Ela – Então você é uma piranha autêntica!

Ele – Pára com isso! Eu invento um nome.

Ela – Não precisa! Chega de inventar coisas.


Silêncio constrangedor. Toca o celular do rapaz. Olham-se apreensivos.


Ele – Oi, pai? Estamos te esperando. Como quem?! Eu e a Carla, eu disse que ela ia dormir aí em casa! Ah, não, então qual é o problema? Meus primos?! Pai, eles nem conversam comigo. Tá, não precisa correr, eu tô terminando de juntar minhas coisas...

Ela – Fudeu.

Ele – Você não faz idéia! O carro tá cheio, você não vai poder ir. O que eu vou fazer? Eu não agüento mais enrolar, eu quero viver a minha vida, não posso fingir eternamente que eu sou outra coisa e não isso que eu realmente sou!

Ela – Calma!

Ele – Calma?! Têm dois primos meus dentro do carro, do tipo de quem pega geral, a primeira coisa que eles vão falar quando me virem é fala leque, sabe de alguma balada que tá rolando hoje. Eu não vou conseguir sem você.

Ela – Me bate!

Ele – O quê?!

Ela – Anda, me aperta, me belisca, me faz chorar. O seu pai tá chegando ali, eu tive uma idéia, me espanca!


Atônito, ele abraça a amiga. No cruzar dos braços, porém, sucessivas e inúmeras vezes ele a belisca. As mãos nas costas dela puxam também seus cabelos. Som de carro estacionando ao lado. Ela se repele do abraço e chorando, começa a gritar muito alto,


Ela – Eu prefiro morrer a contar para meus pais! Eles vão querer me tirar de casa, vão me internar, vão perguntar o que fizeram de errado! Minha mãe vai gritar menina você é gay! Você é um monstro, merece morrer! Meu pai vai dizer, mulher, nossa filha tá doente! Você não devia ter a deixado ir ao show da Ana Carolina! Eles não vão compreender, eu sei que não, eu prefiro morrer...


Os pais do menino no carro. Os primos bombados. Som acidental de buzina no ar.


Ele – Oi pai, oi mãe, oi Fred, oi Júnior. Só um segundo.


Ele abraça a amiga e tenta a acalmar.


Ele – Carla, calma! Isso não era comum na época deles, mas hoje é. Todo mundo é gay, quer dizer, muita gente é. Não tem problema. Eu te amo mesmo assim. Quer dizer, eu gosto muito de você, amiga! Se quiser ir dormir lá em casa, tudo bem, eu fico aqui e a gente volta junto de ônibus.

Ela – Eles não vão me aceitar nunca mais, eu vou cortar meus pulsos!

Ele – Eles têm que te aceitar. Os pais são todos iguais. Tudo o que eles dizem e fazem é por preocupação. Eles acham que ser gay é o mesmo que ir pra guerra.

Ela – O quê?!

Ele – Carla, sossegue, o amor é isso que você está vivendo! É inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Se eu fosse gay com certeza meus pais iriam entender...


Som de pneus arranhando o asfalto. A família do rapaz saiu em disparada. Silêncio.


Ele – Pai? Mãe? Fred? Júnior?

Ela – Meu Deus!

Ele – Eu tô perdido!

Ela – Eu tô mais, porque o meu pai ouviu tudo, ele tá vindo aí!

Ele – Ai, meu Jesus amado!


Saem os dois correndo.


Fim.


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