“O suicida quer a vida; não está descontente senão
das contradições em que a vida se lhe oferece”.
Schopenhauer
Ela – Eu sei que isso não se pergunta, mas porque você vai fazer isso?
Ele – Se você souber, por favor, me avisa.
Ela – Não seja tão atirado.
Ele – Não estou sendo. Coloco, agora, um ponto final em tudo.
Ela – E os que ficam?
Ele – Continuam.
Ela – Sem você?
Ele – Sempre foi assim. Eu não faço diferença.
Ela – Faz sim, acredite.
Ele – Então não quero mais fazer.
Ela – Olha, eu sou igualzinha a você...
Ele – Não diz uma coisa dessas.
Ela – Só que eu parei um segundo pra olhar ao redor.
Ele – E o que você viu?
Ela – Na verdade, apenas formigas.
Ele – Formigas...
Ela – É. Foi a última coisa que vi antes de não me jogar.
Ele – E você ia mesmo?
Ela – E você também não vai?!
Ele – Pedra que é pedra despenca. Não pensa.
Ela – Isso faz a gente diferente... Mas também igual. Você já viu que elas andam em fila?
Ele – Andam em fila, gostam de doce. Muito original. Até o uniforme delas é o mesmo.
Ela – Mas existe um mistério além da fila. Uma esperteza individual que faz tudo avançar.
Ele – E o que elas fazem quando ficam sábias demais? Começam a tropeçar em fila?
Ela – Não sei. Mas nunca vi formiga suicida.
Ele engole a própria saliva.
Ele – Tem coisa que é leve demais pra morrer.
Ela – Ou pesada o suficiente pra não sair do lugar.
Ele – Eu já quis voar.
Ela – E agora?...
Ele – José.
Ela – José, e agora?
José – Eu tô no meio do caminho... Feito uma pedra.
Ela – Quanto você pesa?
José – Há três anos a mesma coisa.
Ela – Eu sou mais pesada que você, não sou?
José – Depende pesada de quê.
Ela – Quem chegaria primeiro?
José – É sempre quem pula na frente.
Ela – E se eu fosse com você?
José – Você diz de mãos dadas?
Ela – Em fila, talvez...
José – Sabe que não dá pra voltar, não é?
Ela – Talvez eu tenha medo de desistir por descobrir que eu ainda posso...
José – O quê?
Ela – Se eu dissesse talvez você não fosse acreditar.
José – Enfim, você vai ou não?
Ela – Se você não se importar, eu vou ficar mais um pouco.
José – Tudo bem. Depois de você eu não conseguiria mais ir.
Ela – Imagina. Se for por minha causa, pode ir...
José – Não. Eu... Talvez eu fique pelas formigas. Elas são realmente curiosas...
Ela – Eu não disse?
José – Alguém sempre diz algo que desvirtua o meu caminho.
Ela – Eu me pergunto que lugar é esse onde você não consegue chegar.
José – Será que é pra lá que elas estão indo?
Ela – É, talvez esteja mesmo na hora de eu descer.
José – Será que elas não podem me levar?
Ela – Meninas, me segurem que eu tô descendo!...
José – Eu posso ser mais um na fila...
Ela – Gente, desculpa, mas eu vou furar a fila!...
José – Eu aprendo a gostar de açúcar.
Ela – Ai, meu pai do céu, que ventania!...
José – Elas foram sem mim.
José finalmente olha em direção a Ela, toda descabelada.
José – O que houve com você?
Ela – Eu tava tentando ver pra onde elas estavam indo.
José – Será que elas sabem o caminho?
Ela – Eu não sei. Mas até que você tem olhos bonitos...
José – Mas elas se foram. Eu sinto muito...
Ela – Relaxa, você deve saber como fazer outras coisas além de olhar fomrigas...
José – Eu sei soltar chiclete grudado em roupa.
Ela – Que especial!
José – Eu sei dar beijo na boca.
Ela – Isso todo mundo sabe!
José – E quem não sabe?
Ela – Aprende com você.
José – Eu não sou tão doce assim.
Ela – Mas tem uma formiguinha caminhando em você.
José – (lançando a formiga pelo alto do prédio) Sai daqui!
Ela – Olha o que você fez!
José – Ela ia me morder!
Ela – E agora ele vai morrer!
José – Viu? A primeira formiga suicida agora existe!
Ela – Assassino! Foi você quem a matou! Ela não teve nem como escolher!
José – Não foi por querer! Ela não tem asa, tem? Ela vai morrer?!
Ela – Relaxa, têm coisas que voam sem ter asa.
José – Tipo bala de revólver?
Ela – Tipo sacola plástica.
José – Ela vai voar, eu sei.
Ela – Ela sim, mas e nós dois?
José – Quem?
Ela – Eu e você.
José – O que é que uma coisa tem a ver com a outra?
Ela – O que nós vamos fazer?
José – Por que você perguntou isso?
Ela – Porque talvez eu me inspire em você.
José ligeiramente incomodado.
José – Você pode parar de me olhar?
Ela – Eu não tô te olhando.
José – Ah, não? Então o que é que eu tô fazendo?
Ela – Conversando comigo.
José – Não, eu tava pensando.
Ela – Na formiga que você matou?
José – No meu cachorro.
Ela – O que tem ele?
José – Ele me lembra você.
Ela – Ele late muito?
José – O Choco? Ele late horrores. E costumava se inspirar em mim também.
Ela – Ele fugiu?
José – Choco morreu. Comeu o plástico do pote da ração. Foi todo dilacerado.
Ela – Isso era fome, com certeza.
José – Não, ele sabia.
Ela – Ou o que aconteceu foi que ele tentou te copiar.
José – Eu não costumo comer plástico!
Ela – Mas não deve ser a primeira vez que você tenta se... (Pausa) Desculpa. Mas o que realmente você veio fazer aqui em cima?
José – Vim fumar um cigarro.
Ela – Que bom ouvir você dizer isso. Um cigarrinho é tudo o que mais quero agora.
José – Você tem aí?
Ela – Tava esperando que você fosse me dar um.
José – O meu maço caiu lá embaixo.
Ela – Quer que eu vá buscar?
José – Não. Espera. É que eu tô me perguntando o que você veio fazer aqui.
Ela – Eu vim porque vi você subindo.
José – Mas eu tô aqui já vai fazer um dia.
Ela – Então... Você deve tá morrendo de fome.
José – Olha que eu tô, viu?
Ela – Viu o quê?
José – Elas voltaram.
Ela – Isso que elas estão trazendo é biscoito?
José – Biscoito preto é de chocolate.
Ela – De onde é que elas estão tirando isso?
José – Só se for daquela caçamba de lixo gigante ali embaixo.
Ela – Nossa, mas cabe uma família inteira de biscoitos ali dentro!
José – E a gente?
Ela – Também cabe.
José – Não, eu quero dizer, a gente vai descer ou ficar por aqui?
Ela – Não tem nenhuma outra alternativa, tem?
José, enquanto pensa, descansa o olhar sobre Ela.
Ela – Pára de me olhar.
José – Eu não tô te olhando.
Ela – Então o que eu tô fazendo?
José – Você tá me esperando.
Ela – Eu... Eu também tô morrendo de fome. E isso me lembra que eu tô viva, sabia?
José – E você se esqueceu disso alguma vez?
Ela – Não que eu lembre.
José – Pois é, porque morto não come. Morto é, no máximo, comida.
Ela – Eu não sou comida.
José – Há quanto tempo?
Ela – Já vai fazer um dia.
José – Não é tanto assim.
Ela – Mas se pelo menos eu fosse mordida...
José – Você se sentiria mais viva?
Ela – É... O que também não quer dizer que eu não possa mais ser...
José – Isso é fome.
Ela – Você me entende.
José – É que eu sou igualzinho a você...
Ela – Não diga uma coisa dessas!
José – Só... Que eu parei um segundo pra olhar ao redor...
Ela – E o que você viu que eu não consigo ver?
José – Na verdade...
Ela – Formigas?...
José – Eu vi você...
Ela – Alice.
José – Alice, eu vi você.
Alice – E o que nós vamos fazer?
José – Porque você perguntou isso?
Alice – Porque não tem muita coisa na minha geladeira.
José – E o que você sugere?
Alice – Não sou boa em sugestão.
José – E você é boa em quê?
Alice – Eu não sou boa não...
José – Ainda que fosse, do que isso importaria?
Alice – Não sei. Mas você poderia parar de me perguntar essas coisas?
José – Por quê?
Alice – Eu moro sozinha.
Fim.
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