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domingo, 29 de março de 2009

Tentativa 12/n

“O suicida quer a vida; não está descontente senão
das contradições em que a vida se lhe oferece”.

Schopenhauer


Alto de um prédio. Ela surge por trás dele, no exato momento em que ele ia se jogar.


Ela – Eu sei que isso não se pergunta, mas porque você vai fazer isso?

Ele – Se você souber, por favor, me avisa.

Ela – Não seja tão atirado.

Ele – Não estou sendo. Coloco, agora, um ponto final em tudo.

Ela – E os que ficam?

Ele – Continuam.

Ela – Sem você?

Ele – Sempre foi assim. Eu não faço diferença.

Ela – Faz sim, acredite.

Ele – Então não quero mais fazer.

Ela – Olha, eu sou igualzinha a você...

Ele – Não diz uma coisa dessas.

Ela – Só que eu parei um segundo pra olhar ao redor.

Ele – E o que você viu?

Ela – Na verdade, apenas formigas.

Ele – Formigas...

Ela – É. Foi a última coisa que vi antes de não me jogar.

Ele – E você ia mesmo?

Ela – E você também não vai?!

Ele – Pedra que é pedra despenca. Não pensa.

Ela – Isso faz a gente diferente... Mas também igual. Você já viu que elas andam em fila?

Ele – Andam em fila, gostam de doce. Muito original. Até o uniforme delas é o mesmo.

Ela – Mas existe um mistério além da fila. Uma esperteza individual que faz tudo avançar.

Ele – E o que elas fazem quando ficam sábias demais? Começam a tropeçar em fila?

Ela – Não sei. Mas nunca vi formiga suicida.


Ele engole a própria saliva.


Ele – Tem coisa que é leve demais pra morrer.

Ela – Ou pesada o suficiente pra não sair do lugar.

Ele – Eu já quis voar.

Ela – E agora?...

Ele – José.

Ela – José, e agora?

José – Eu tô no meio do caminho... Feito uma pedra.

Ela – Quanto você pesa?

José – Há três anos a mesma coisa.

Ela – Eu sou mais pesada que você, não sou?

José – Depende pesada de quê.

Ela – Quem chegaria primeiro?

José – É sempre quem pula na frente.

Ela – E se eu fosse com você?

José – Você diz de mãos dadas?

Ela – Em fila, talvez...

José – Sabe que não dá pra voltar, não é?

Ela – Talvez eu tenha medo de desistir por descobrir que eu ainda posso...

José – O quê?

Ela – Se eu dissesse talvez você não fosse acreditar.

José – Enfim, você vai ou não?

Ela – Se você não se importar, eu vou ficar mais um pouco.

José – Tudo bem. Depois de você eu não conseguiria mais ir.

Ela – Imagina. Se for por minha causa, pode ir...

José – Não. Eu... Talvez eu fique pelas formigas. Elas são realmente curiosas...

Ela – Eu não disse?

José – Alguém sempre diz algo que desvirtua o meu caminho.

Ela – Eu me pergunto que lugar é esse onde você não consegue chegar.

José – Será que é pra lá que elas estão indo?

Ela – É, talvez esteja mesmo na hora de eu descer.

José – Será que elas não podem me levar?

Ela – Meninas, me segurem que eu tô descendo!...

José – Eu posso ser mais um na fila...

Ela – Gente, desculpa, mas eu vou furar a fila!...

José – Eu aprendo a gostar de açúcar.

Ela – Ai, meu pai do céu, que ventania!...

José – Elas foram sem mim.


José finalmente olha em direção a Ela, toda descabelada.


José – O que houve com você?

Ela – Eu tava tentando ver pra onde elas estavam indo.

José – Será que elas sabem o caminho?

Ela – Eu não sei. Mas até que você tem olhos bonitos...

José – Mas elas se foram. Eu sinto muito...

Ela – Relaxa, você deve saber como fazer outras coisas além de olhar fomrigas...

José – Eu sei soltar chiclete grudado em roupa.

Ela – Que especial!

José – Eu sei dar beijo na boca.

Ela – Isso todo mundo sabe!

José – E quem não sabe?

Ela – Aprende com você.

José – Eu não sou tão doce assim.

Ela – Mas tem uma formiguinha caminhando em você.

José – (lançando a formiga pelo alto do prédio) Sai daqui!

Ela – Olha o que você fez!

José – Ela ia me morder!

Ela – E agora ele vai morrer!

José – Viu? A primeira formiga suicida agora existe!

Ela – Assassino! Foi você quem a matou! Ela não teve nem como escolher!

José – Não foi por querer! Ela não tem asa, tem? Ela vai morrer?!

Ela – Relaxa, têm coisas que voam sem ter asa.

José – Tipo bala de revólver?

Ela – Tipo sacola plástica.

José – Ela vai voar, eu sei.

Ela – Ela sim, mas e nós dois?

José – Quem?

Ela – Eu e você.

José – O que é que uma coisa tem a ver com a outra?

Ela – O que nós vamos fazer?

José – Por que você perguntou isso?

Ela – Porque talvez eu me inspire em você.


José ligeiramente incomodado.


José – Você pode parar de me olhar?

Ela – Eu não tô te olhando.

José – Ah, não? Então o que é que eu tô fazendo?

Ela – Conversando comigo.

José – Não, eu tava pensando.

Ela – Na formiga que você matou?

José – No meu cachorro.

Ela – O que tem ele?

José – Ele me lembra você.

Ela – Ele late muito?

José – O Choco? Ele late horrores. E costumava se inspirar em mim também.

Ela – Ele fugiu?

José – Choco morreu. Comeu o plástico do pote da ração. Foi todo dilacerado.

Ela – Isso era fome, com certeza.

José – Não, ele sabia.

Ela – Ou o que aconteceu foi que ele tentou te copiar.

José – Eu não costumo comer plástico!

Ela – Mas não deve ser a primeira vez que você tenta se... (Pausa) Desculpa. Mas o que realmente você veio fazer aqui em cima?

José – Vim fumar um cigarro.

Ela – Que bom ouvir você dizer isso. Um cigarrinho é tudo o que mais quero agora.

José – Você tem aí?

Ela – Tava esperando que você fosse me dar um.

José – O meu maço caiu lá embaixo.

Ela – Quer que eu vá buscar?

José – Não. Espera. É que eu tô me perguntando o que você veio fazer aqui.

Ela – Eu vim porque vi você subindo.

José – Mas eu tô aqui já vai fazer um dia.

Ela – Então... Você deve tá morrendo de fome.

José – Olha que eu tô, viu?

Ela – Viu o quê?

José – Elas voltaram.

Ela – Isso que elas estão trazendo é biscoito?

José – Biscoito preto é de chocolate.

Ela – De onde é que elas estão tirando isso?

José – Só se for daquela caçamba de lixo gigante ali embaixo.

Ela – Nossa, mas cabe uma família inteira de biscoitos ali dentro!

José – E a gente?

Ela – Também cabe.

José – Não, eu quero dizer, a gente vai descer ou ficar por aqui?

Ela – Não tem nenhuma outra alternativa, tem?


José, enquanto pensa, descansa o olhar sobre Ela.


Ela – Pára de me olhar.

José – Eu não tô te olhando.

Ela – Então o que eu tô fazendo?

José – Você tá me esperando.

Ela – Eu... Eu também tô morrendo de fome. E isso me lembra que eu tô viva, sabia?

José – E você se esqueceu disso alguma vez?

Ela – Não que eu lembre.

José – Pois é, porque morto não come. Morto é, no máximo, comida.

Ela – Eu não sou comida.

José – Há quanto tempo?

Ela – Já vai fazer um dia.

José – Não é tanto assim.

Ela – Mas se pelo menos eu fosse mordida...

José – Você se sentiria mais viva?

Ela – É... O que também não quer dizer que eu não possa mais ser...

José – Isso é fome.

Ela – Você me entende.

José – É que eu sou igualzinho a você...

Ela – Não diga uma coisa dessas!

José – Só... Que eu parei um segundo pra olhar ao redor...

Ela – E o que você viu que eu não consigo ver?

José – Na verdade...

Ela – Formigas?...

José – Eu vi você...

Ela – Alice.

José – Alice, eu vi você.

Alice – E o que nós vamos fazer?

José – Porque você perguntou isso?

Alice – Porque não tem muita coisa na minha geladeira.

José – E o que você sugere?

Alice – Não sou boa em sugestão.

José – E você é boa em quê?

Alice – Eu não sou boa não...

José – Ainda que fosse, do que isso importaria?

Alice – Não sei. Mas você poderia parar de me perguntar essas coisas?

José – Por quê?

Alice – Eu moro sozinha.


Fim.

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