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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Guirlanda

Marceau está sobre uma escada que se encosta à parede. No alto, retira livros e pedaços de passado e os limpa, devolvendo tudo de volta à prateleira em seguida. Marcel chega cabisbaixo. Senta-se na base da escada. Imóvel.
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Marceau - (sentindo a chegada de Marcel) Ainda bem que você chegou! Ainda bem!
Marcel mantido em um silêncio profundo.
Marceau - Ora, Marcel, já era hora! Ande, vamos, me ajude com isso aqui!
Marcel quase imóvel, pisca um olho com pesar.
Marceau - Eu já limpei uns 73 livros, 49 caixas de cds e algumas bandeiras inteiras. Sabe o que eu achei?
Marcel - (apático) Humm?
Marceau - A bandeira do Cazaquistão! Não é ótimo? Você estava procurando ela outro dia.
Marcel - Ótimo.
Marceau - (estranhando) Não diga "ótimo" de maneira tão ingrata. Eu achei a nossa bandeira!
Marcel - Pode ficar pra você.
Marceau - (desequilibrando-se) Espera lá! Não é minha, eu disse, é nossa! A nossa bandeira...
Marcel - Pode ficar.
Marceau - (olhando para baixo do alto da escada) Ora, Marcel, o que foi agora?
Marcel permanece mudo.
Marceau - Ora, você sabe, não gosto de falar sozinho. (Pausa) O que foi, diga...
Marcel coça o nariz.
Marceau - Certo, não foi nada. (Volta a limpar a prateleira) Eu estava pensando aqui, sabe? A lembrança é mesmo uma coisa muito poderosa. Já parou para pensar como ela é libertadora? Nada é tão duro quando é lembrança, porque a gente lembra e muda o que lembrou e tudo ainda conserva a mesma cara, apesar de muitas mudanças. (Pausa) Eu fico emocionado com tudo o que construímos juntos!
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Marcel se levanta bruscamente e sai da sala.
Marceau - (preocupado) Ora, começa assim e daqui a pouco sou eu quem cai dessa escada. (Descendo) O que será dessa vez? Marcel! Espere por mim, vamos almoçar, você está precisando se alimentar direito. Marcel!
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Marcel está sentado em um banco de jardim. Marceau se aproxima, como se pedindo espaço, e ele sequer se move. Marceau, com cuidado, ajoelha-se diante de Marcel, sobre a grama verde-radiante.
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Marceau - O que é que você não quer me dizer?
Marcel - Você já disse. Não quero dizer.
Marceau - Certo, a questão é... Me diz. Eu te ajudo.
Marcel - Eu não preciso de ajuda. Preciso de cura.
Marceau - Marcel, você está gripado?
Marcel - Antes fosse...
Marceau - Não diga isso! Viu quanta gente tá morrendo? Eu quero você vivo.
Marcel - Mas é como se eu estivesse indo... Devagar, enquanto vejo tudo ir acontecendo...
Marceau - Não é gripe, então?
Marcel - Ora, não!
Marceau - Eu preciso entender o porquê da sua rispidez...
Marcel olha de maneira assustada para Marceau
Marceau - Ora, convenhamos, você está um tanto sem modos nesta manhã.
Marcel - Eu preciso te falar...
Marceau - Sim, um pedido de desculpas e depois há de me explicar...
Marcel - Acabou.
Marceau - Acabou o quê?
Marcel - Acabou.
Marceau - Ah, certo, as ervas? Eu já ia mesmo te chamar para cortarmos mais, não quer ir agora?
Marcel - Não. Acabou.
Marceau - Ora, Marcel, o que acabou além disso?
Marcel - Acabou, já disse.
Marceau - Você tá acabando com a minha paciência. Estou aqui sendo muito compreensivo, aproveite.
Marcel - Não quero!
Marceau - Se aproveitar de mim? Ora, desde quando?
Marcel - Desde ontem. Acabou, Marceau. Entre a gente. Tudo acabado. Não posso.
Marceau cambaleia sobre si mesmo no chão do gramado.
Marcel - Acabou. Não pode ser eterno. Eu pensei que fosse, mas não pode.
Marceau - (levemente descorado) Não pode ser eterno o quê, meu Marcel?
Marcel - A gente. Não pode ser.
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Marcel levanta-se e deixa Marceau caído ao chão, imóvel. Perto do pé de ervas, Marcel volta a olhar Marceau, dessa vez, desabando o interior.
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Marcel - Eu pensei que você fosse eterno. Eu pensei que a gente pudesse ser pra sempre! Eu tentei que fosse, eu me esforçei, você também o fez. Mas não dá. Acabou, eu percebi. Você não é eterno. Eu também não sou. Isso não está me fazendo bem. Faz poucos minutos eu me vi empurrando a escada só para que você caísse...
Marceau - (levantando-se e segurando Marcel pelo rosto) Você quis me derrubar?
Marcel - Ora, eu quis te derrubar.
Marceau - E por qual motivo?
Marcel - Eu não sei...
Marceau - Eu te explico. Quis me derrubar porque no chão, onde eu cairia, você já estava. Quis me derrubar pela vontade de estar junto pela vontade de eternizar. O que é eterno precisa de calor, sem isso não vale, sem isso tudo fica empoeirado, não pode ser. Escute! (Olham-se, lacrimejantes, olho a olho) Eu sou eterno enquanto eu for. Você para mim é eterno enquanto existir. Não é algo contra o qual se deve lutar.
Marcel - Mas ela morreu! ELA MORREU! NÃO FOI ETERNA! ELA ACABOU DE PROVAR!
Marceau - (surpreso) Quem morreu, Marcel?
Marcel - Minha mãe, Marceau. Ela era eterna. Agora se acabou. O que eu faço?
Marceau - Oh, Marcel, é verdade o que me diz?
Marcel - Não fosse eu não estaria assim.
Marceau - (deprimindo-se, aos prantos) Oh, Marcel, como isso é doloroso! Mas a titia nunca...
Marcel - Nunca pareceu que fosse capaz de morrer. Pois é. Mas morreu. Eu não consigo compreender.
Marceau - Oh, que angústia me invade o peito. Dá vontade de ir no lugar dela!
Marcel - Eu já tentei, não tem como. Eles fecharam o caixão hoje cedo.
Marceau - Já foi o enterro?!
Marcel - Estava voltando dele, por isso acordei mais cedo.
Marceau - Oh, Marcel, como o tempo passa veloz!
Marcel - Ora, é melhor você se segurar... Eu não vou ficar por muito mais tempo.
Marceau - (caindo sobre o gramado, sem saber o que falar) Ora... Mas... Titia...
Marcel - Eu disse, acabou. Não podemos continuar. Ainda mais agora que mamãe morreu...
Marceau - Ainda mais agora? Você quer me desesperar?
Marcel - Achei que também quisessem, mas não dá. Eu já pensei em tudo. Vou partir, você vai ficar.
Marceau - (erguendo-se e limpando as lágrimas) Ora, muito bem, senhor Marcel. Vamos supor que tu partas. Sim, vamos supor. Me desculpe, mas é só o que eu consigo. Supondo que você vá entrar nessa casa, pegar uma mala e sair por essa porta, sem sequer se despedir de mim. Eu poderia ao menos entender um pouco mais dessa situação?
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Marcel entra em disparada para dentro de casa. Marceau continua falando sozinho.
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Marceau - (gritando, incomodado) Ora, que coisa, não? Um dia você acorda e alguém que estava com você, junto na mesma obra, resolve largar o barco e todos morrem afogados no fim! Não pode ser assim, Marcel, eu exijo o mínimo de afeto! O mínimo de noção, eu disse aquele dia no comércio, compre esta porção de noção, é bom ter em casa, é bom às vezes a gente se desgasta e faz coisas que não são feitas sem nem perceber. É falta de noção que tá faltando dentro, você deve estar mesmo doente, se quiser, espere mais um pouco, eu vou buscar pra...
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Marcel sai completamente agasalhado e com uma árvore de natal semi-enfeitada de dentro de casa. Marceau o olha assustado. Marcel se aproxima lentamente.
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Marcel - E eu que pensava que você fosse eterno como mãe... (Sai em disparada)
Marceau - Oh, Marcel! E ainda vai levar o nosso pinheirinho! Oh, como eu me sinto mal. Não é possível. Marcel! (Marcel vai indo já distante. Marceau tenta correr em vão atrás dele. Fatigado) Eu não sou eterno como mãe, mas eu tenho em mim alguma eternidade. Eu tenho! Quando é que você vai ver, seu Marcel? Não demore muito. Não deixa acabar esse pouco de alguma coisa. Não deixe. (Pega sobre a grama um enfeite de palha da sua agora distante árvore de natal).
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____________________ outras cenas com Marcel e Marceau:
Violácea, em 31 de maio de 2009 | Rúcula, em 21 de junho de 2009
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dialética

tudo o que eu quero dizer eu não saberia te contar. dentro as coisas se entendem sem que eu precise explicitar. tudo o que eu queria sentir a minha pele se deixa exposta. dentro as coisas se resolvem elas se reorganizam sempre e sempre a cada hora. tudo o que dentro eu não comprendo fora sai feito rima. tudo o que eu dentro não dou remendo aqui fora em mim se procria. feito pendência. feito absurdo. feito ingratidão. tudo que dentro eu não organizo aqui fora vira insônia. insônia indecisão tudo o que fora me choca o corpo dentro eu reconheço como perda. e de tanto perderes, sou eu assim um ser já perdido. assumidamente perda. assumidamente nisso partido, partida, condição, saberes. meu destino é perder. perder é o meu destino. destino é o meu perder. quanto mais eu vou indo mais próximo eu vou chegando desse estado do total se abster, onde sorrisos não valem, onde abismos não me matem, onde a morte sequer chegue a assustar. onde não há devaneio onde sequer se vê um "há". e de tanto perderes, eu serei completo. eu serei uno. naturalmente eu serei discreto. capaz, se possível, de evaporar. de evaporar.
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sábado, 25 de julho de 2009

Eufemismo

Disse a mãe adentrando o quarto do menino,

- Rafael, desliga esse treco!
- Ai, mãe, não enche eu já falei...
- Eu não quero ouvir desculpa. Eu disse desliga esse treco, Rafael, sem mais demora!
- Mãe, eu já sou crescidinho, tá certo? Não precisa ficar me tratando como se eu fosse seu filho...
- Mas você é meu filho. Quem foi que te enganou, meu amor?! Você é meu filho, é meu filho!
- Certo, mãe, eu sou. Agora você pode me dar licença que eu preciso terminar...
- Eu não quero saber do que você precisa. Quem vai dizer o que você precisa agora sou eu!
- Como é?
- Anda, levanta desse computador ou eu puxo essa porcaria da tomada.
- Qual é, mãe?
- (com a mão na tomada) Eu vou precisar fazer isso, meu filho?
- Mãe, você vai queimar o computador...
- Vou sim. Eu tenho esse direito. Quem te deu, não fui eu? Então eu posso.
- (levantando-se e indo pra longe do computador) Tá certo, calma, deixa isso aí... Eu saí do computador.
- Meu filho, e quando eu não estiver aqui?
- O quê?
- Eu tô te perguntando o que vai ser de você quando eu não estiver mais aqui?
- E quando vai ser isso, mãe? A senhora vai viajar?
- Rafael, eufemismo, meu filho. Já estudou isso, não?
- Metáfora?
- Eufemismo.
- Dizer uma coisa pela outra... É isso?
- Não, meu filho. Isso é metonímia. E eufemismo, o que é?
- Eu não lembro...
- E hipérbole, você lembra? É possível arrancar de seu cerebelo toda a memória concentrada em passagens que mesclam os tempos, os dramas e os remendos desse peito seu que agora bate aí dentro, cheio de dor...
- Mãe, você tá exagerando, mãe!
- Isso é hipérbole, meu filho. Agora eu quero saber do eufemismo. Diga.
- Já disse que não sei.

A mãe avança até o filho e o leva até diante a janela de seu quarto.

- Abra-a, Rafael, por favor.
- (abrindo-a) Abri, pronto, pode falar.
- Quando eu te pergunto o que vai ser de você quando eu for, eu quero dizer, de maneira amena...
- Amena?
- Eufemisticamente falando... Eu quero dizer o que vai ser de você quando eu morrer.
- (assustado) Por que você tá me perguntando isso?
- Porque você tá tão sem cuidado.
- Eu não sei como vai ser quando você morrer. Mas vai ser ruim, é inevitável.
- E, hiperbolicamente falando, vai ser muito mais do que ruim, meu filho.
- Você tá exagerando! De novo!
- Eu estou exagerando sim. Mas é preciso. Vai ser ruim porque você sem cuidado é o mesmo do que te deixar caminhando descalço sobre um abismo qualquer...
- Mãe!
- O que foi?
- Para de falar essas coisas... Tá tudo bem. Foi algum sonho que você teve, é isso?
- Eu costumo sonhar acordada, você sabe. Mas isso não foi sonho, é concreto, eu olho pra você, meu filho...
- E vê tudo isso acontecendo?
- Eu vejo que eu te deixo solto demais, e que isso é bom, e que isso é legal, mas eu sinto, eu sinto que não...
- É mesmo bom, é legal, você sabe que eu não saberia ser de outra forma.
- Mas eu sinto que quando eu for, quando chegar a hora, eu sinto que você vai se enrolar todo.
- Mãe, é sério, às vezes você me confunde... É uma metáfora agora?
- Não, filho. Enrolar. Ficar todo perdido, confuso... É metáfora, mas é seguro. Eu não quero te ver enrolado.
- Então me deixa ser livre, como eu sou.
- E o que eu faço quando eu te ver desse jeito, quando eu olhar pra você e achar que vai dar tudo errado?
- Confia em mim. Eu daqui vou sempre lembrar do seu amor, mãe. Ele me ajudará a me desenrolar.
- (depois de uma pausa, olhando pela janela) Quando eu pedi pra você sair desse computador...
- Eu saí, nem vem...
- Era porque eu queria que você visse o céu hoje.
- Sim, eu estou vendo.
- Eu queria que você visse o céu sempre, sempre que estiver se sentindo mal, entende?
- Certo. (Pausa) Mãe, você tá querendo me dizer mais alguma coisa?
- Eu?
- É, mãe. A senhora.
- Eu? Eu não. Era só isso de olhar o céu e de apreciar o vento e também de às vezes dormir bem quentinho e também de se dar o seu tempo eu queria dizer que às vezes um café resolve às vezes um silêncio e também um sorriso. Às vezes, porém, meu filho, nem mesmo um ombro amigo irá resolver a sua dor...
- E o que eu faço então?
- Lembra que eu te amo. Só isso. Lembra que eu te amo que eu sei que nesse momento, quando você lembrar, um pouco do seu desespero vai se afastar e você com o tempo vai ter de novo as suas pernas para andar... Lembra do nosso amor, meu filho.



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é a ti, corpo meu?

custa a vida
isso de ralar a pele
e desvendar um sentido

basta de pé restar
para que sobre o corpo
venha o vento
e faça um transtorno
incapaz de escapar

basta estar vivo,
eu lhes digo,
para deixar de estar.

custa a vida
essa canção imperfeita
custa a lixa das unhas
recriada em nova palheta
sempre que o íntimo
amanhece desvelado

é a ti que eu devo, corpo meu?
é a ti que eu devo devolver
a pele refeita
e o peito costurado

é a ti que eu te devolvo
ou devo eu arriscar outro salto
eu digo, devo eu, corpo meu
dar-lhe outro destinatário

é a ti que eu devo, não?
sendo assim, resta-me
apenas essa canção
que não está em você
mas que eu sei
é ela que te transborda
em outra direção

sim, eu te faço ir se perder
vamos comigo, que juntos
a gente é capaz de se entreter

é a ti que eu devolvo,
o mundo das unhas sujo
sob outra forma
mundo por mim outro contorno

é a ti que eu devolvo,
o vento de cada esquina
convertido em encontro
ou não

a ti, meu corpo
tudo devolvo
fosse tudo canção

nada pode ser de novo
atrito
posto seja no desfascelar
de sua pele
que você alimente-me
preciso

nada de novo atrito
eu canto agora o belo
até me precipito
mas para buscar nova cor
nunca mais talvez faça por amor
nunca mais talvez amor
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sexta-feira, 24 de julho de 2009

por engano amanhã eu acerto

a porta fechada | eu abro
a sala apagada | eu acendo
a mochila pesada | no chão a despenco
o som nos ouvidos | eu retiro eu desligo
a roupa colada | eu ando nu pela casa

o tempo | passa

o íntimo gritando | eu esquento um pão faço dele uma torrada
a memória dizendo | eu lavo uma roupa eu a penduro em meio ao vento
um soluço | eu lamento
um susto | eu aqui dentro
uma tremida de mão | um açúcar que me falta
a toalha perdida | eu acabo por encontrar

o tempo | escorre sob o chuveiro

o corte na pele | arde mais com a água entre os dedos
o corte no rosto | me faz mais tempo contemplar um meu olho
o corte bem torto | abro o armário retiro a tesoura preciso cortar meus cabelos assumidamente é essa feição meio louca que carrego no correr dos dias assumidamente é essa feição que me é - e que nela eu vou acreditando estar de pé

mas, sabe?
dentro eu deito pleno e em silêncio uma oração me domina
dentro eu deito pleno e em silência a danação me oprime

como posso ter chegado assim até aqui
como saberei ir adiante - eu saberei adiante ir?

não desisto | não faço café
eu persisto | não lavo uma louça sequer
eu estou triste | durmo mais cedo então
eu estou perdido | mas não vou me procurar

amanhã, quem sabe, o sol indica o caminho
amanhã, quem sabe, eu acordo outra coisa
eu piso por engano num outro destino
por engano, quem sabe amanhã,
eu acerto.
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quinta-feira, 23 de julho de 2009

a graça do encontro

o que eu posso te fazer
sem que te machuque
ou te faça sangrar?

como posso me dizer
sem que pela minha voz
eu comece a te desvelar?

o que devo, enfim deter
que eu não corra o risco
de te desesperar?

como posso então despir
esse toque capaz de te acalmar
apenas,
como quem toca a relva
e amanhece com a respiração
amena,
hoje ela é mais divina,
hoje é mais humana,
é efêmera.
o que fazer, então
tu podes me responder?

ou podes tu ser esse ser - anônimo -
que teima e que teima
e que teima em não reconhecer
mas pode ser!

o anonimato é nome
e ser anônimo é ser pleno
jogo capaz de conter:
tu que lá se escondes
e eu aqui a me enlouquecer
eu aqui querendo saber
onde foi que encontrou você essa máscara
- para mim -
seus olhos sempre são fim sem fim.

podes ser anônimo,
eu não ligo, eu me esquivo
e me perco na eternidade do nosso desencontro

podes ser anônimo,
eu imprimo - na pele - essa busca ganha íntimo
só para que o jogo não tenha fim
só para que o jogo
não tenha, enfim
a graça do encontro dos sorrisos.
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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Na sala com paredes de gelo... Nevoeiro.


ENCLAVE
Ele abre a porta. Ela ali dentro. Os dois se olham por um segundo. Ele avança.

Ele – Então terminaram a pintura?
Ela – Tudo pintado a gelo.
Ele – Ficou novo.
Ela – Como se fosse a primeira vez.
Ele – Falta alguma coisa?
Ele – Eles chegarem. 

Silêncio.

Ele – Que bom que você pôde vir.
Ela – É do meu interesse.
Ele – Do nosso. (Pausa) Você está bem?
Ela – Eu estou aqui. Isso basta. E você?
Ele – Ansioso. Eles não devem se atrasar.
Ela – Já estão atrasados.
Ele – Vamos esperar um pouco mais.
Ela – Esperar não me incomoda.
Ele – Mas é melhor resolver tudo isso o quanto antes.
Ela – Será que eles vão desistir?
Ele – Não, eu vou ligar.
Ela – O sinal do celular.
Ele - Tudo bem. Deixe isso comigo.

Ele sai. Ela fica com os documentos, folheia algumas folhas e depois senta-se sobre elas no chão. O olhar fixo no lado oposto da sala. Ele volta.

Ele - Eles não virão hoje.
Ela - Pensei que fosse do interesse deles.
Ele - Estão resolvendo o que falta da documentação.
Ela - Você falou pra eles que era apenas uma visita pra conhecer o apartamento?
Ele - Eu disse. Mas ele me disse que a mulher quer fazer tudo certinho.
Ela - São casados?
Ele - Acho que noivos. Disse que esse é o apartamento dos sonhos.
Ela - (mordaz) Do que é que essa gente acha que os sonhos são feitos? 

Silêncio.

Ela - O que foi?
Ele - Nada. Eu é que preciso ir.
Ela - Espera. Como a gente vai fazer?
Ele - Eu ligo pra ele amanhã. Vou dizer que tem outro casal interessado...
Ela - Ele não vai acreditar. Não existem mais tantos casais por aí.
Ele - Tudo bem. Eu falo qualquer outra coisa. Você vai descer agora?
Ela - Não. (Irônica) Vou me jogar pela janela depois que você pegar o elevador.
Ele - Está bem. Antes de ir, passe a chave por baixo da porta. Boa noite.
Ela - Espera.
Ele - De novo?
Ela - A sala.
Ele - O que é que tem a sala?
Ela - É melhor você olhar.

Ele vai até o canto oposto da sala e puxa um enorme lençol coberto por poeira. Sob ele, uma imponente prateleira carregada de livros é revelada. Nevoeiro na sala com paredes de gelo. Os dois observam a prateleira em profundo silêncio.

Trecho inicial da peça ENCLAVE.
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domingo, 19 de julho de 2009

Come Alone

Ok, now. Tell me something new?
No. I do not have any present for you.
Don't you have even a surprise?
Do you really want it?
I want it, please.
Sure?
Sure. I need it.
Ok. I'll create one for you... Let me see.. Uh... She's dead.
What?
I've already told you. Now she's dead. And you can't do anything!
Is it your surprise for me? What do you think, hum? Is this a good thing to tell me?
I don't know. You didn't ask me for a good surprise. You just said a surprise.
I don't like you anymore. Really. I was thinking about it days ago. I think you're bad. I mean...
Bad? Are you crazy, dear? You talk about dead and sun burning people and then when you ask me for a surprise, I only can tell you about blood, and death, and sadness... I thought you would like it, don't you?
Believe me. You only exist for give me another limits. I, by myself, I won't resist too much longer.
Ok. Now you are being so much... So much... Believe me, you're so absurd, really.
That is it. I'm like that. But you, you can't be like me. I need someone who can change me!
I can change your face!
What?! Wait, how... Gosh, how can you say these things?... I am not kidding.
And tell me... What am I to you? Do you really think that I can't change your face?
No, you can't. You know you are not able to do anything with my skin.
Except hurt you.
You would not...
Would not?
No... I mean, only if you want to be a bad person...
Yeah... That bad person you told me I was. Yeah?
Yeah, but... I mean, I thought you... I mean, you... I'm hurting, why can't you see?
Yeah, yeah, yeah... Human being hurts, naturaly.
But, not me... Not always. I used to be a happy girl.
Hapiness does not exist. And even your girl kind, it does not exist anymore.
What?! Can you stop it?
No.
I'll get something to drink. Wait for me.
Wait...


She goes away. He waits, a little. Then, he turn off the chat. And masturbate himself watching porno videos on the internet.

She is back. Realizes that he is not there,he is not waiting for her. Then, she drinks all the strawberry juice and slowly, she starts to masturbate herself, with strawberry pieces going out her mouth. They reach the top, at the same time, but they are now off-line one to the other.
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Coser

ELA - Você tava falando com quem?
ELE - Com você.
ELA - (Pausa) Comigo?
ELE - Não era?
ELA - (Pausa) Não. Eu quero dizer, agora há pouco, antes de eu chegar. Era com quem?
ELE - Com você. Era com você. Diz, não era?
ELA - O quê... (Pausa) O que você falou comigo?
ELE - Foi você quem começou!
ELA - E o que foi que eu disse?
ELE - Disse... Já tá dito... Eu não quero repetir. Não faz isso comigo. Eu...
ELA - O que foi que eu disse?
ELE - Você sabe...
ELA - O que foi?
ELE - Que sentia minha falta.
ELA - Foi eu quem disse?
ELE - Quem mais poderia ser?
ELA - Tem uma janela uns andares acima.
ELE - O que é que tem?
ELA - Uma janela, uma fresta, um vidro... Passagem de ar.
ELE - E daí?
ELA - Dali saem outros sons, eu consegui escutar.
ELE - Escutar o quê?
ELA - Alguém que também falava comigo.
ELE - Não era eu?
ELA - Não era você. (Pausa) Não pode ser. Disse que...
ELE - O quê?
ELA - Disse que nunca mais queria me ver... Disse, perto. Nunca mais me ter por perto.
ELE - Isso eu não disse.
ELA - Então quer dizer que é verdade?
ELE - O quê?
ELA - Que você não me quer longe de você?
ELE - Não. Eu quis dizer, eu não disse isso...
ELA - Mas me quer...
ELE - Eu não sei. Não fui eu quem disse...
ELA - Nem fui eu também a dizer que você faz falta.
ELE - E eu faço?
ELA - Não sei, não fui eu, quer dizer, eu não sei o que dizer...
ELE - Saiu da janela, não foi?
ELA - Esse eu que não sou eu e que te falou?
ELE - Esse eu que não sou eu e que te falou.
ELA - Sim. Acho que sim.
ELE - Sim, deve ser.
ELA - Sim, lá fora um som perdido tentando nos confundir.
ELE - Um som, eu sei, um som perdido tentando nos...
ELA - Tentando o quê?
ELE - Tentando nos coser.
ELA - Nos coser, você disse?
ELE - Nos coser.
ELA - Um som tentando nos coser.
ELE - Parecia música.
ELA - Sim, talvez música. Fazendo eu achar que era você.
ELE - E você achou?
ELA - Achei.
ELE - Eu também achei.
ELA - Mas agora...
ELE - Agora o quê?
ELA - A gente tá aqui.
ELE - Sim, é bom estar estar no mesmo andar.
ELA - A gente tá aqui, presente sim, mas desembrulhado. Eu sem surpresa pra você. Como pode?
ELE - Não importa como, importa nesse momento a gente se ter.
ELA - Coser, você disse?
ELE - Se ter, eu disse. Não importa se assim ou como eu achei que pudesse ser você.
ELA - Se ter, você. Mas se quiser me ver embrulhada, feche os olhos, eu me embrulho pra você.

Ele fecha os olhos. Ela avança até ele e o beija. Ouve-se outra canção, provavelmente, vinda da tal janela andares acima.
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sexta-feira, 17 de julho de 2009

...corpo)

uma garrafa de 2L
que curioso, tamanha sede a essa hora da madrugada?!

pena que o filtro é lento
pena que o filtro é filete d'água
assim escorre o tempo mais ralo
e nisso a minha espera é presenteada

por você, ali perto sonhando
eu ali, a água escorrendo fosse feito um pranto
de felicidade um pranto
de pura gratidão

posto tenham todos ido dormir
nos deixando assim um ao outro
à vontade

sede fome o que vier já foi
é no presente do beijo que eu esqueço o depois
e sempre é mais e mais é sempre agora
não há antes não há destino
o coração fica mudo
e dançam-se os pêlos
todos fora de órbita

é bom conversar com você
algo além da pele, eu devo dizer que é bom
conversar com você
pela língua
pelo gosto
pela rima (que ousam sempre criar
um nosso...

...corpo)
para que te quero?
te quero para ter onde me agarrar
para sentir um solo um sólido um atrito capaz de curar

para que te quero?
para não ser jamais perfeição
corpo te quero antes para ser plena perdição

e nisso
tudo encontrar
pois no perdido com o perdido
algo diferente pode resultar
algo diferente
eu sinto eu posso
auscultar.
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tato

tanto
amado
tudo
olvidado

uma única sensação corre o corpo
a perda

perde, então
resvala em ti
esse desespero
grato, porém, grato
garante em mim a existência
desse tempo.

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quinta-feira, 16 de julho de 2009

NÃO DESAPAIXONAR.

É sempre um esforço, breve porém, recorrente, de capturar naquele segundo uma impaciência presente. Estava eu ali, então, sentado à mesa almoçando. Na taça um vinho ressentido magoava por dentro o meu ânimo, era eu todo contemplação. Pela janela, diante da mesa ainda com restos do pão da manhã, eu devolvia ao mundo a sua plenitude, o seu estado natural, a sua enfermidade concentrada. Era eu todo naquele momento caminho propício, eu era estrada.

De súbito, fosse de súbito um de repente brusco quase em chamas, dentro de mim se contorceu alguma coisa, alguma coisa que me estremeceu a montanha. Lá na frente, onde eu olhava a mastigar, a montanha virava impreciso e desta imprecisão me pûs a chorar. Primeiro o choro choca, não se pode de imediato acreditar. Depois os olhos ficando assim confusos, foi natural que eu soubesse me controlar. E dentro, a palavra-imagem MÃE não parava de bailar.

A captura veio ali, justamente quando eu constatei que seria incapaz de capturar. Veio uma fraqueza por reconhecer-se falível, capaz de deixar escapar. Uma quase resignação por saber - e talvez mesmo aceitar - que sim, muitos amores eu iria perder. Muitos amores para serem amores precisariam se afastar. Restou um lenço me dizendo isso não acaba o seu amor, amor pode ser mesmo eterno. Mas o que fazer com a eternidade? Queria eu nesse segundo ter em mãos, por sobre a mesa, o concreto, a presença, o embate. O que sou eu sem esse imediato?

Tentação. Eu assim sou alguma coisa que parte. Nos olhos as lágrimas ficaram e dali se perderam em meio a outras ações. O cotidiano avassala essa persistência na captura. Sempre traz diante ao semblante pasmo uma outra coisa que o entretem, como fosse entretenimento ajuda. Salvação. Eu ali diante das montanhas, acompanhando o vento movendo os prédios, eu ali era um protesto intacto dessa perdição. Dentro me dizendo sem parar, cara é melhor você ir se acostumando, não quer dizer não chorar, quer dizer apenas que não terás vida o suficiente para permitir a morte, será preciso se acostumar, ir se treinando, mas não desapaixonar. NÃO DESAPAIXONAR.

Era é sempre foi e será minha certeza. Não reduzir o amor quando diante da perda. Doar-se menos não é solução. Pois se eu te amo profundamente que se dane o resto, amar foi nossa construção. Não reduzir o amor diante da perda pois é de tanto perderes que se agiganta e um dia estarás no céu, tamanho amor insistente nas suas coisas e em suas crianças. O céu. Segredo. Envolto em nuvens. Será céu sinônimo de sossego?

Terminei de almoçar. Nada mais havia dentro de mim afora o bolo alimentar. Dentro as máquinas em mim organizando a energia. E lá fora, ainda no alto, perto da montanha que antes tremia, lá fora eu pude ver alguma coisa acenando que agora seria por demais complicado eu tentar te dizer. Por agora seria em excesso qualquer tentativa que extrapole esse silêncio, a apaziguar a alma doída.
.

terça-feira, 14 de julho de 2009

BONANÇA !!!

- Você tá sabendo o que tão dizendo?
- Gripe, avião no Atlântico, Michael Jackson... Tem algo mais acontecendo?
- Deixa de ser bobo. Se fosse uma cobra te picava!
- Eu cortei o cabelo. É isso, ficou ruim, quem tá dizendo?
- Não. Espera. Você cortou o cabelo? Enfim, não importa. Não é bem isso. Mas é sobre você.
- Sobre mim?
- É sobre você que estão dizendo.
- Dizendo o quê, do meu cabelo?
- Não do seu cabelo. Mas de você por inteiro. De você. Ai...
- Que foi, agora fala! Começou, termina. Anda logo, mata em ti essa agonia.
- Tá bom, mas não diz que sou eu. Calma. Bem... Tão dizendo que não dá pra te dizer.
- Que isso, porra?
- Pois é... Tão dizendo que não tá dando pra te dizer.
- Dizer o quê, merda?
- Pra te dizer, sei lá, qualquer coisa... Eu tô te dizendo, tô conseguindo, é verdade... Mas sabe... Toda vez que alguém passa por aqui, te vê, sabe?, vê suas coisas assim espalhadas, então!, toda vez que isso acontece é como se as pessoas estivessem vendo você pendurado numa sacada.
- Ih, caralho! Que merda é essa?
- Desculpa, eu só tô te falando, eu nem sei se eu concordo, mas faz algum sentido...
- Eu tô numa sacada? Que sacada? Eu moro no terceiro andar, não tem nada, só janela!
- Não é isso. É uma metáfora...
- Começou...
- Você sabe o que é. As pessoas querem dizer que toda vez que te vêem aqui, não sabem como te dizer...
- Me dizer?
- É. Não sabem como falar oi, nem dizer isso é ruim, não faz. Elas não sabem dizer nada porque se aproximar parece doer demais. Aproximar parece doer demais.
- E você quer que eu faça o que? Quer que eu diga, gente, depois da tempestade vem aquele negócio???
- A bonança!
- Isso. GENTE, DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A BONANÇA! A BONANÇA TÁ VINDO! VAI TUDO FICAR LINDO! EU TÔ FAZENDO DE MENTIRA, É TUDO FIGURA DE LINGUAGEM. EU SOU UM ZEUGMA. MINTO. EU SOU METONÍMIA, EU SOU UMA BOBIÇE PODE ENCOSTAR EM MIM, EU NÃO MORDO, A NÃO SER QUE VOCÊ PEÇA...

- Cara... Você precisa se tratar.
- Certo. E as pessoas, precisam do quê?
- Elas precisam. Elas não precisam. Elas estão bem. Elas não precisam de nada porque estão bem.
- Sei...
- Era só pra você saber.
- Uhum...
- Bom, era isso... Eu vou indo, depois passo por aqui...
- Passa sim... Mas escondido, tá? Não me deixe saber que você passou sem me cumprimentar. Eu posso acabar pensando que você esteve por aqui, se aproveitou da vida assim toda exposta (né? você disse as minhas coisas assim espalhadas), e depois voltou pra sua, pronto pra dizer sobre os absurdos desse mundo...
- Não, imagina. Eu vou falar com você. Eu vou. É que na verdade eu lembrei amanhã tenho dentista, daí, só depois... Só depois...
- Sem pressa. A vida continua além da agenda. A vida continua até embaixo da terra. Não é mesmo? Na sacada, a vida continua. Até na sacada...
.

O mês do meio

Porque é, sendo assim bem concreto mas com reticências no final, insinuando algum protesto ainda por vir...

Mês do meio sim
talvez do meio do caminho
do meio dos desejos que hoje se dispersam
e me deixam só assim
meio sei lá o quê
meio incapaz de te dizer
o tamanho de certas dores
a persistência das mesmas
cores

A natureza desolada não se dispõe
tudo anda muito concreto
tudo anda, muito embora
a sensação seja de ânsia
corroendo pelas pernas
dormentes
sempre dormentes
uma agitação esquisita
uma necessidade de explicar o que
desde já
já não se compreende

Fica! eu sempre peço a quem quer que seja
deixa esse seu rastro esse seu lastro esse compasso
sobre a mesa
a acariciar com calma alguma dificuldade
a persistir em alguma ausência
por isso eu peço eu digo fica!
e deixo sempre uma exclamação no final
para que nunca duvides do quanto te amo
oh, desespero

Você me comove
me desloca me destrói me impõe sua corte
e eu sou sempre incapaz
sempre indelicado demais
para lidar com linhas e curvas
para lidar assim com o que nomeias de corpo

Eu, rouco, sou sempre incapaz
sou sempre demais
ou demais sempre pouco
infértil
impossível
jeito torto de se lidar com a esquina

Por isso, fica!
que eu te faço canção
eu te invento de novo
eu te deixo ser pleno te nomeio criação
e juntos vamos nós a se perder
a perder de vista, amor
o tamanho de nossas faltas

Faz frio aqui, sabia?

Talvez não.
Talvez devesse eu ligar de volta
aquela velha e tenaz canção que foi você
em seu auge
que com ela me descobriu

E tudo ficou fraco
e tudo ficou sorte
e tudo ficou confuso
e hoje eu não sei quando é azar
ou quando sou eu a minha sorte
hoje eu não sei

e não saber
nunca foi tão assim
pleno

não saber nunca foi tanto assim
ameno
aceitável

permitível ao corpo
e à perdição das horas
ser resto

sem melancolia
sem fim nenhum começo
sem protesto
sem ausência
quiçá presença

do jeito natural
como quem volta à terra
para se enterrar novamente
em meio aos vermes
em meio aos...
.

domingo, 12 de julho de 2009

Antúrio

Posiciona o relógio sobre a mesa. Nas mãos uma impaciência tenta alçar voo. Ela se controla.

Rejane - Quer dizer que agora é isso?
Regina - Sim, é isso. Se alguém deve algo a outra, esse alguém é você, não eu.
Rejane - Você não acha que eu também mereço algo além do seu desprezo?
Regina - Achar eu acho. Eu sempre acho. Mas não posso. Acho que já deu.
Rejane - Já deu o quê, mulher? Que papo é esse?
Regina - Você sabe.
Rejane - Sei não, você sabe.
Regina - Sabe sim, você sabe que sim. Não me enrola. Eu tô esperando.
Rejane - Senta e espera, então.

Regina senta no sofá. Nas mãos uma impaciência tenta alçar voo. Ela se controla.

Regina - Vamos, me diga... Quando foi?
Rejane - Ontem...
Regina - E como foi, eu quero saber o como, como foi?
Rejane - Calma... Foi como tinha que ser. Os dois ali, era inevitável algo não acontecer...
Regina - Inevitável, sei. Quer dizer que agora você é um fantoche na mão do destino?
Rejane - Não, amiga.
Regina - Não me chame de amiga! Estou magoada, você não percebe?
Rejane - Eu te entendo...
Regina - Não preciso de sua compreensão. Mas quero que me olhe mesmo assim. Não te parece quase um... (Milimétrica) Quase um ultraje, que isso tenha acontecido com você e não comigo?
Rejane - Por isso eu disse... É coisa mesmo do destino...
Regina - Hipócrita. Não quer assumir a responsabilidade!
Rejane - Eu não tenho culpa, amiga.
Regina - Não me chame de amiga.
Rejane - É como é com azar e sorte.
Regina - E hoje você acha que eu estou como?
Rejane - Hoje você tá linda. Você tá linda, hoje.
Regina - Não, sua estúpida. Eu perguntei como você acha que estou hoje. Com azar ou sorte?
Rejane - Você tá... Você tá com raiva, Rê.
Regina - Chega de intimidade comigo. A gente não se ama mais.
Rejane - Você não me ama mais... (A conta-gotas) Mas eu ainda te amo. E te respeito.
Regina - Hipócrita duas vezes na mesma noite, como pode, meu deus?!
Rejane - Você tá exaltada. Não quer um pouco d'água?
Regina - (após uma tensa pausa) Um balde, por favor.
Rejane - Quer mesmo?
Regina - Sim, um balde, por favor. Tenho sede.
Rejane - Certo, sim, vou buscar...

Rejane se retira. Regina cujas mãos salpicavam sobre as coxas gordas, agora insere a pilha de volta ao relógio. Ele volta a girar. Rejane traz com dificuldade um balde cheio d'água e o põe sobre a mesa, diante de Regina.

Rejane - Aqui está, confesso... Se não conseguir tomar tudo, não tem importância, eu jogo o resto nas plantas. O antúrio ali no canto da sala tá seco, parece até que vai morrer.
Regina - Sabe que às vezes nem é água que falta? Às vezes falta mesmo amor. (Desce o rosto lentamente e beberica um pouco d'água) Saborosa, obrigada.
Rejane - Saborosa, Rê? (Repreende-se pela intimidade. Após uma tensa pausa) Mas água não tem sabor...
Regina - Quando se quer muito alguma coisa, a gente acaba inventando um jeito de se ter, um motivo que justifique uma fome ou sede que te permite ir além e simplesmente ser... (Após uma pausa, amável) Mas acho mesmo que exagerei. Não quer dividir comigo, Rê?
Rejane - (confusa, assustada, enojada) Ai, Rê, bebe aí o que quiser, se sobrar, não tem problema, eu dou pro antúrio...
Regina - Sabe que às vezes o que falta mesmo é amor e nem água. Você sabe. Mas eu digo, entre a gente, o que você acha que falta?
Rejane - (sem graça) Acho que talvez seja mesmo água, não?
Regina - Sim, acho que talvez seja mesmo água.
Rejane - Sim, talvez seja mesmo água...
Regina - Sim, talvez mesmo água.
Rejane - Sim, talvez água...
Regina - Sim, talvez.
Rejane - Sim...
Regina - Sim.

Rejane avança o rosto lentamente em direção ao balde sobre a mesa. As mãos seguram tremulamente a borda do balde. No tocar da língua ao líquido, Regina avança não só as mãos mas o corpo inteiro. E sustenta sob seu peso a cabeça da amiga sob a água. Rejane se debate, enquanto a outra apenas fala,

Regina - Se não conseguir beber tudo, pode deixar... O que sobrar eu dou pro seu antúrio. Ele tá seco, parece mesmo morto. Deve mesmo ser falta de água. Deve mesmo ser falta. Deve mesmo ser. Deve ser. Ah, deve...

Num último espasmo, Rejane faz o relógio cair da mesa e dele se desprende a pilha. Tempo.

FIM

.

sábado, 11 de julho de 2009

como estou me sent/indo

é meio entre barras
é mesmo meio termo
é um estar sem nem estar
é um sossego pós-sossego
é um desejo a tilintar
é um percurso reterno
é um jejum hospitalar
é um frio desconexo
é anemia falciforme
é uma cegueira seletiva
é incapacidade de um contato
é incapacidade para rima
é um não saber mais o que dizer
é um saber mais não o que dizer
é um dizer sem motivo
é um precisar sem preciso
é um sentimento não sentido não seguindo não vou indo tentando em meio aos volteios dos verbos fazer neles e por eles mesmos protestos de um corpo assim tão meu de um treco assim tão breu tão seu mas tão só tão às vezes me sinto menor que me penso desde já como estrela perdida em constelações

me achei
me cortei
me perfurei
me coçei
me deitei
me masturbei
me maculei
me amedrontei
me aprendi
me carreguei
me deitei no colo
me empacotei para viagem
me esqueci de fechar a janela
me atrasei e perdi também a felicidade e agora resto perdido mas crente num futuro porque será que eu penso que todo futuro seja desde já promíscuo eu penso nisso eu acho todo futuro tão promissor porque nele eu lanço todos os desejos e desejos são coisas cabeludas são coisas que não se resolvem com uma simples escuta, precisa sempre mais, sempre mais, precisa...

te entregar
te abraçar/amor/morder/vingar
te embalar
te esfacelar
te esboroar
te ensinar a persistir nas poças
te educar
te alimentar
te confessar
te despir te lamber te chupar
te dizer que certas coisas não se pode ouvir
te dizer que certas coisas não se pode falar
te dizer
te falar
te contar
te cortar
te coser
te ofertar
te beber te comer de novo te ter e te despedaçar
te revelar o céu de dia
te revelar o céu à noite
te revelar o céu quando perdido entre uma coisa e outra
te enveredar pelo meio do caminho
te fazer ser pedra
te fazer respirar
te fazer ser pedra que respira
te fazer transtorno alimentar para que sempre coma mais sempre queira mais sempre morda mais além do que minha boca possa sustentar por isso sempre queira mais sempre morda mais sempre queira mais que minha boca vai se ausentar e assim,

quando fores, boca minha
tudo terá sido como foi devido
tudo será resto lixo impreciso
e tudo nisso enfim poderá recomeçar

das mazelas, é, das mazelas
os dois de novo poderão começar

agora a pergunta que não quero calar
que dois são esses que eu acabei de inventar?

dois passarinhos
dois meninos meio mendigos
dois coelhos de páscoa semi-digeridos
dois intestinos delgados reprimidos
dois sucessos
dois precipícios
dois conjuntos habitacionais
dois meninos muito meninos
dois meninos meio meninas
dois meninas
dois meninas?
dois men
dois de colo
dois de berço
dois pães franceses
dois baguetes
dois quilos disso daquilo e daquilo outro
dois dúzias da vermelha sem caroço
dois promíscuos
dois rabanetes
dois segundos, por favor, vou atender o telefone

Passam-se duas horas,

Não era ninguém.
.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

resta um minuto

de sensibilidade
um minuto apenas
para nele me despejar pleno
sem medo de ser cúmulo
sem medo de ser maldade

eu persisto
ainda me permito o persistir
por isso talvez vagueando sobre as poças
eu volta e meia venha a nelas me insistir
para ver minha face sobre o céu
para ver-me no chão ondulando
o cintilante véu
dessa noite
ainda noite

não
sinto que como o tempo avança
as coisas todas precisam nisso ir também
por isso nada dura tanto
e nisso há também o ser também
nada dura tanto assim
nada pode tanto durar
a imagem precisa na mente
é de uma alucinação que o corpo meu experimentado
não se quer deixar perder

por isso eu vago nisso perdido
centrado
mas perdido nesse incompreender
porque me dá esses volteios?
porque é assim consigo mesmo?

eu questiono e durmo em dúvidas
eu acordo torto, entortado da vista
com um gosto de morte precipitando as coisas
não quero mais
não quero mais
alguém me ajude a parar com isso
é como se a cada noite
eu já soubesse
amanhã vai ser um suplício
outra vez me erguer vai ser um suplício
eu não quero tombar
eu não quero voltar
essa eternidade poderia em mim persistir
talvez não fosse me importar
mas não
não posso
não temo

eu deito a cabeça daqui a pouco
eu me deito pleno
e o dia amanhã será evidentemente
melhor
porque antes de tudo assim eu o quero
porque antes de tudo
assim eu
o quero.
.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

poesia expressa

eu me abandono
por um segundo, que seja
quando eu caminho
tem sempre um motivo
que me faça avançar

por um segundo
quando eu me abandono
já não importa avançar
eu sou assim
eu sou uma dor
que não sei mais dar conta

onde quer que eu vá
eu escuto eu teimo eu quero aceitar
que nessa ida
nem sempre é assim
eu me abandono
sou eu quando longe de mim
eu sou assim
um perdedor

que de tanto te perderes
resta profundo magoado
o peito sob a pele da roupa
dilacerado

eu sou assim
estou aqui e nisso eu sim
posso não me fazer legível
mas é que me abandono
e sigo, enfim
eu sigo, enfim
eu sigo, em mim
o impossível.
.

domingo, 5 de julho de 2009

segue sentindo

folha
pão
cimento
chão
isso aquilo
confusão
manias
perversão
porteiro
porteira
prisão
ônibus vindo sem fundo na escuridão
condição
desidratação
coração
digita esse segundo
apreende o outro
e nisso o tempo morre
e nisso eu fico
louco
eu fico
ou sem você
ou na contramão
mas a porta está aberta
aos perigos
na verdade
continuo
em adaptação
fugindo do meu tempo
sob a eterna indagação
quem sou eu?
porque sou eu?
porque deve haver assim alguma condição?
pausa
silêncio
ele toma uma xícara de café
ele permanece na mesma posição
ela está tentando compreender algo que lhe escapa das mãos
tentando compreender algo que lhe escapa posto seja este mesmo algo
a imensidão
a cama feita
a cama esbelta
segunda-feira
soluço, bebida gelada
garganta aguenta
é fresca
rock
rock leave me from me
rock please let me be
whatever i want
whatever i want
in those colours i made by myself
can you let me be like that?
like that
com as pernas de um jeito
o semblante sempre noutro
a roupa mal passada
o corpo no limite entre o amor
e o abandono
me deixa assim eu ser
essa coisa esse indefinir
esse se manter
sempre num espaço que não é antes nem depois
que fica perdido e definido num alto meio baixo
num rumo sem destino exato
numa incógnita que persiste
ele sorri
não entende o que sente
mas sente-se vivo por sentir alguma coisa
algum não compreender que o leva distante
sempre seguindo
sempre tentando ser em si mesmo
aquilo aquilo aquilo que ainda não sabe dizer o que é
mas que é já existe não pode não ser
ele segue sorrindo
segue seguindo
ele segue
sentindo
segue sentindo
sente seguindo
sempre à pele seguinte...

.

divido contigo num só tempo esse bocejo

Eu não consigo não pensar em você.

Se está sentindo frio. Fome eu já não posso dizer.

Mas não consigo não pensar
não calcular nem nisso me perder
foi em qual segundo preciso que a gente se permitiu
conhecer?

E desde então foi tanta coisa
que fica no agora um rastro indescritível
eu não quero lembrar
não quero fazer falta daquilo
que ainda habita este corpo...

É assim não é? A idéia de estar morto
vem primeiro ao corpo
Persiste porém nos outros
a sua existência intacta
ainda mais sutil
ainda mais exagerada

Persiste aqui em mim então
Eu não ligo, pode me usar
eu divido contigo o meu colchão

E se ainda quiser, divido com você o meu queijo
o meu beijo
divido contigo num só tempo esse bocejo que parece enganar o corpo
Dizendo vá dormir quando a necessidade de estar vivo me consome...

Por isso, vague agora
um pouco perdida sim
mas somente se está perdido para de novo vir a se encontrar
Por isso vai ser perdida
para na perdição se estruturar
e mal se faça novamente uma manhã
eu sei
eu sinto
eu quero
que esteja melhor
voando livre na sua liberdade
pulando em nuvens
saltando entre estrelas
indo dormir sempre bem tarde
a tempo de ver
aqui embaixo

como a noite nos consome com sua alegria.

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A boca levemente por dentro corada
era sangue, eu me perguntei se dentro você ainda falava
eu me perguntei se algo foi calado
se algo em ti foi lacrado
mas não sustento esse jogo,

preciso acreditar que no seu vôo agora tu vai longe
e sempre mais
e sempre capaz - agora - de brincar sem corte
de tingir sem morte
de fingir sem choque
sem suor frio
sem azar
nem ode

vai, ganha teu espaço.
e deixa que a gente aqui se comove.

.

certas covas não se escavam.

você sabe que está vivo quando se mata. não precisa ser abrupto, pode ser com calma. na refeição de cada dia, no cigarro tragado após um almoço equilibrado. você sabe que está vivo não por andar alegre e confiante. não sabemos que há vida quando os semblantes todos sorriem desde antes. com o tempo a gente tem certeza que estar vivo não quer dizer estar andando, comendo ou falando. um dia alguém descobriu que sim que sim é possível morrer cantando e falando e seguir fazendo ainda em morte tudo o que transborda a vida. por isso, quando você dentro se debate, é porque há vida demais há vida demais. algo precisa morrer para continuar-se o caminho. alguém precisa tombar para fazer de nós seres menos mesquinhos seres menos sozinhos seres capazes de aglutinar os braços e tocar em mais peles além da nossa. certas certezas são tão abruptas que elas mesmas se auto-digerem e mudam os fatos. a vida tem disso, eu sinto. quando dói mais faz mais sentido. quando é menos colorida é porque algo real nela se escorre. sinto - mais uma vez - que sentirei mais e saberei menos. mais uma vez. mais uma vez.
.
não estou confortável. não me sinto bem, estar mal antes de tudo é saber-se vivo. isso eu não discuto com ninguém. é inexorável. é pedra. é duro é fato. certas coisas não se perguntam certas covas não se escavam.
.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Ligeiro Pranto

- Eu não tenho muito para te dizer.
- Aproveite o tempo, invente se quiser, eu não vou me demorar.
- Você se acha, às vezes, realmente importante, não acha?
- Sim. Isso me acomete.
- Neste momento, portanto, queria te dizer que não procede.
- Que não o quê?
- Que você não é tão importante assim.
- Ah, não sou?
- Não.
- Não mesmo?
- É certo que não. (Ele se retira)
- Espera!

(Ele não volta).

- Frívolo! Infantil! Desmedido... É óbvio que ele importa, é óbvio. Mas não sabe brincar. Não sabe, eu sei. Não entende quando eu grito te odeio não compreende que pode ser amar. Acho por vezes que seja ignorante demais para mim. É bem o que acho. Incapaz de perceber essas sutilezas que fazem de mim quem eu sou. É bom mesmo que se tenha ido...

(Ele volta, fatigado)

- E eu achando que você viria atrás. Não sabendo brincar, poxa, me avisa. Isso evitaria ter corrido um quilômetro sem ninguém a me perseguir. Você me fatiga, às vezes. Olha, eu diria até mais. Acho que você cansa a minha beleza. Desculpa, mas parece haver em você uma inabilidade crônica, é verdade. Você é incapaz de brincar com as minhas palavras e ler meus olhos. O que faz? Permanece fixa no legível - no que eu digo - e perde a verdade aqui comigo...

- Aqui... Comigo. (Ele se aproxima dela) Dá-me um beijo.(Ele o faz) Com delicadeza, querido. Sou de pele não de pano. (Ele o faz com doçura, cria-se no olho dela um ligeiro pranto) Está bom desse jeito. Você me satisfaz. Eu sinto dizer mas o que eu desejo em ti é o prazer.

(Ele se retira)

(Ela espera, confiante)

(Voam pombos negros diante dela, vindo de onde ele agora, não mais virá. Porque virou a página)

(Escurece sobre ela)
.
(Ele.

Poética

Sibilar ao ouvido

Algum gemido há muito contido

No ranger das peles,

Salta um dedo

Corrupto desejo do silêncio

Em mim carrego o peso

Ou a falência de um medo

Posto agora as mãos

Ultrapassem o número dois

Dos dois

O que pode ser um só

Ser

Como pode converter

Um estado um sentido

Na menina ou no menino

Confunde o corpo

Alterna o pensamento

Hora queres mais

Hora queres mesmo

E nunca resta tempo

Para apenas esquecer

Para apenas se perder

Na incapacidade plena que deita em ti

Como pude nascer assim?

Uma interrogação não te leva a nada

E mesmo a um ninguém

O silêncio progride como fosse o novo

Amém.

Alguém me escuta?

Alguém pergunta sem questionar

Eu não sei se foi comigo

Mas o que sinto é de se estranhar

É dentro

Tem remendo

Ou pode mesmo me devorar?

Disse eu mesmo precisar da dor

Que venha de surpresa e me faça tombar

E agora que faço

Tombado no chão pisoteado

Que faço eu se o sorriso quebrado

Junta-se aos cacos

E faz da manhã

O seu mais novo e último

Mosaico prosaico de um lapso

Contornável?

Resto.

.

Arquivo