Pesquisa

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Na pista dos sonhos


Mãe, após tanto tempo, sonhei outra vez com você. Foi tão lindo, tão certeiro. Bateu direto na angústia que me ocupa, desatenta, faz tanto tempo. Subíamos por uma calçada de tijolinhos, numa esquina de ruas asfaltadas. Parecia haver uma pequena banca de jornal nessa esquina. Você usava - acho que sim - uma calça jeans, mas colorida. Era azul. Eu de bermuda, eu acho, bermuda e uma camiseta qualquer. Subíamos essa calçada, quase chegando nessa esquina, e conversávamos alegres. Você era um pouco mais jovem (pelo movimento das pernas) e eu mais jovem também (pela leveza do espírito). Havia alegria, a cada passo. Aí, mãe, subitamente, como se fosse tudo o que eu mais precisasse neste momento, você me parou, na esquina, no topo da ladeirinha que subimos, você me parou, posicionou seus braços ao redor dos meus e disse assim, certeira, exata, entre lágrimas: vai, filho, vai. Pode ir. E então eu sorri, eu chorei, a gente se abraçou tão gostoso, tão moletom, que pronto, eu fui, saí do sonho, segui dormindo, acordei e só agora tudo isso me volta, tão solar, tão delicado, que até choro de novo, mas leve, por ter visto em sonho a possibilidade de um enlace nosso renovado ainda aqui nessa vida. Ah, que pista é essa que meus sonhos não desistem de me dar? O amor é uma revolução. Em vida, em sonho, ele dá um jeito de se enfiar e mudar a coisa toda. Ainda bem. Ainda bem, mãezinha.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

583

sentiu primeiro as pernas pesando
depois percebeu, contrariado, que o nariz respirava estranho
tinha um cheiro sempre que inalava o ar
depois viu-se tonto
e quando realizou
tinha mais açúcar dentro de si
do que do açucareiro

a morte lhe chegava sempre assim,
fazendo piada
sempre lhe vinha, a morte,
sempre sorrateira, fantasiada
ou disfarçada
e mesmo assim, quando vinha
era como se fosse a primeira vez

numa tarde de calor
extremamente desconfortável
ele, já sem nenhum apego pela vida,
convidou a morte para que se aproximasse
serviu-lhe um chá de camomila
lhe disse: "dizem que acalma"

então se olharam
ela estava radiante, calmíssima
ele meio trôpego, ainda lhe faltando energia
"você tem os olhos turvos", ela lhe disse
"por isso não te vejo bem", ele respondeu
e ficaram assim, por alguns minutos,
ele sem vê-la
ela sem sair de seu tamanco

era uma tarde qualquer
ele já nem ligava tanto
acreditou que frente a ela
um novo acordo entre os dois
pudesse aparecer
mas ela não cedia

"pensei que você fosse diferente"
"diferente como?", ela reagiu
"menos reativa, menos dura"
"eu?!", e então riu, ela riu
fazia parte de seu jogo ser assim
incontrolável

"se eu morrer agora, isso te alegra?"
"é evidente que sim!", ela firmou
"e se eu te disser que eu não me importo?"
"você se importa", disse a morte desconfiada
"eu simplesmente não me importo", ele disse
e percebeu
ela não tinha se preparado para ouvir aquilo

e então se ergueu
pegou sua foice
(brincadeira, não tinha foice)
cinicamente derramou a xícara sobre a mesa
e se encaminhou à porta da sala

ele permaneceu quieto
estava tonto ainda, um tanto confuso
ela ainda lhe disse alguma coisa
algo derradeiro
e ele ainda mudo
deu a ela o espelho de sua própria face

"não direi nada, nada lhe devo
não dependo de ti, não tem por ti medo"

e então ela foi
sem deixar pistas
de quando retornaria
ele cochilou em sua poltrona
por longos anos
ciente e tranquilo
de que para além de tantas tardes
uma noite fatídica lhe chegaria

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Lento

Como se o mais importante do mundo
fosse um olhar que durasse tempo
entre dois homens
Lento
ele invade
com delicadeza cega e
indisposta à correria dos dias
É noite
e Lento
entra
escorre
dobra
remodela o medo
Faz dele outro uso
Desfigura tudo
e queima
queima
Dentro
Lento
Fora
Profundo

Um sorriso - também lento - salta comovido

Olham-se ignorantes - e orgulhosos - daquilo que fazem

É lindo
É lento
Contra-mão
Pelos escovados

De tudo tão lento
reparei as nervuras
dos laços
reparei as pressões
sem medo
confirmei o que pode
o tato
Lento
invado-me
rumo à vida
renovada
renovadamente
mas lenta
Lento
Lenta

ela me faz lastro.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Bruno

Perdi a conta.

Ultrapassamos o imaginado.

Por mim. Por ti, não faço ideia.

Estou encharcado, aberto, bobo
Eu assim: vago.

Esse verão foi feito para nós.

O adiante, já não nos cabe pensar.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Ciclo, cisma, essa coisa

Percebeu então que, de alguma forma, tudo (ou quase tudo) se repetia. Era janeiro novamente. O mesmo mês, o mesmo nome, o início outra vez, outro recomeço. Percebeu que, com calma, poderia relembrar como havia sido o janeiro anterior, e o anterior ao anterior, e o anterior ao mais anterior que pudesse recordar. Percebeu, surpreso, que seus hábitos vinham de faz tempo. Gostava, sempre em janeiro, de reformar a casa. Isso poderia ser óbvio, ponderou. É óbvio, estou com mais tempo, menos trabalho, é óbvio isso de querer reformar a casa. Ao mesmo tempo, sabia que não. Não era assim tão óbvio. Parecia haver alguma coisa, uma espécie de ciclo, uma cisma mesmo, cisma, isso, uma cisma do tempo, da época, cisma geracional, talvez, não conseguiu encontrar palavra.

E lá se viu ensimesmado. Olhando a si próprio, surpreendendo-se com a sua surpresa frente aos fatos. Passou quase o domingo inteiro assim: perplexo. Percebera como antigamente também já fazia isso que hoje tanto tinha feito: caminhar pela casa, vago e descalço, resmungando de leve sobre a atual conjuntura de sua vida (ou vidinha, talvez vidinha fosse mais apropriado). Parou, de súbito, contra a mesma janela de tantos anos. Mirou em direção ao céu azul, o calor afrouxava seu pescoço. Olhando o céu, constatou novamente o óbvio (começava a não gostar dessa palavra): o céu cá também está. O mesmo, mas diferente, mas o mesmo mesmo assim.

Bebeu uma água. Ousou, seria preciso, fazer algo diferente. Lembrou-se então de uma jarra de vidro que tinha sobre um balcão na recepção do último hotel em que se hospedara. Dentro da jarra, rodelas de limão siciliano, porém, bem maiores do que se poderia supor ser o certo. Era, para o bem da verdade, era o limão inteiro, limões inteiros, sicilianos, limões cortados ao meio, fazendo breves embarcações. Lembrou de Bartolomeu, já falecido. Lembrou que poderia pegar umas folhas de hortelã que, apesar do calor, não tinham morrido. Que poderia pegar umas hortelãs, jogá-las num bonito copo de vidro, com cubos de gelo e muita água. Pensou que se fizesse assim, diferente, algo então se modificaria.

Aí voltou à sala com o copo suculento entre as mãos. Apoio o dito cujo sobre a mesa e logo se distraiu escrevendo qualquer coisa no computador. Ali ficou a água, os hortelãs foram morrendo afogados, o gelo sumiu, era verão, quase noite, e assim acaba essa breve história. O que se repete se repete. Aceite-se, disse a si mesmo. Numa hora ou noutra a coisa se modifica, se transforma, você passa, você melhora e piora. Hoje está ruim. Amanhã também. Talvez. Não desanime. O tempo, a época, essa coisa toda, está cismando com você. Quer te dar trabalho, quer te desafiar, não sofra demais. Deixe o tempo. Deixe que cisme. Você reage. Reagirá. Você já reagiu, não se lembra?

sábado, 5 de janeiro de 2019

Pequeno pranto


Não pensei que pudesse ser um sinal negativo.
Chorei lento, vendo o choro me consumindo.
O ano novo começando e eu aqui, chorando.
É só que li uma poesia. Uma poesia retrato da tristeza.
Fiquei movido, não pude evitar.
Um verso específico dizia algo como
"Estou ficando velho, tempo".
Fiquei movido. Porque assim também estou.
Ficando velho. Tanto já conquistado e, sobretudo, este cansaço.
Lágrimas penderam suicidas.
Não quedaram, não secaram, fizeram de meus olhos breves piscinas.
Estou ficando velho e quanto mais olho, mais me canso.
Poderia o cansaço ser um resumo, uma sinopse, um título para um humano?
Desumano existir esse, em que quem ganha é a incapacidade de reagir.
Meu tempo, minha época, minha vida assaltada e pouco desperta.
Não reclamo, sigo, ando, proclamo, manifesto, durmo, pouco sonho.
As lágrimas de antes agora parecem cristais ressequidos.
Sou tão estranho que quase me acho um fiel amigo.
"Estou ficando velho, tempo".
Por isso ainda há pranto. Para saber como era quando o corpo ainda reagia.

Arquivo