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quinta-feira, 30 de abril de 2020

sábado, 25 de abril de 2020

Estacionamento

Letras na fachada do negócio informam:

ALUGA-SE VAGA PARA SERES VAGOS.

Um moço que cruza a avenida
brilha os olhos,
sente-se vago, perdido,
desorientado.
Ele avança até o terreno
e pergunta
Quanto custa, senhor?

O que, menino?

Quanto custa para estacionar aqui?

Quanto você tem?

Só eu mesmo. E esse lenço.

Sujo?

Um pouco.

Passa pra cá.

Perdido o lenço, prontamente lançado numa lixeira,
o menino adentrou o estabelecimento comercial
confiante de que havia feito
o que precisava.

Ali, por favor.

Onde?

Ali, ali, naquele retângulo pintado à tinta no chão.

Sob o sol?

Sim.

É quente.

É sol, ora.

Tem vaga na sombra?

O sol parte daqui a pouco.

Entendi.

Bom dia.

Já é tarde, não?

Boa tarde, rapaz.

[...]

Letras na fachada do negócio informavam:

ALUGA-SE VAGA PARA SERES VAGOS.

Um moço que cruza a avenida
brilha os olhos
ao ver outro moço ali estacionado.
Ele se sente vago e perdido,
mas aquele outro sob o sol
lhe soa como um recado.
Ele avança até o terreno
e pergunta
Quanto custa, senhor?

O que, garoto?

Quanto custa para estacionar ao lado daquele moço?

sábado, 18 de abril de 2020

esse risoto sonolento

já não vale ser sincero
já nem vale tanto ser
a cada passo, um reclame
mas não sonoro
reclame para dentro
é onda de dentro
a qual me afoga
 
escrevo como se escrita
fosse isso
ou seja
qualquer coisa
qualquer coisa
pode não ser?
deveria ser,
mas o quê?
 
um cansaço me ganha de mim
resvalo em sonhos que não chegam
logo eu
que por tantos anos
viva a mocidade
agia o desejo no instante
de seu arrepio
 
porra
fiquei ameno
envelheci por dentro
e é de lá
que vem esse arroto azedo
esse risoto sonolento
essa coisa
esse
isso
isto
esse treco
 
então às vezes me percebo
demora
mas me percebo
percebo a nitidez horrenda
desse som a reclamar
que a vida tá meio assim
que té meio isso
meio aquilo lá
ora
porra
 
vai te catar
vai se foder
vai se lascar
 
reclamas com o pau na mesa
masturbando esse pau mole
arrepiando-se em desejos megabytes
por favor
dê-se algum respeito
anseie outro modo para estar
e ser
 
porra
aí me lasco
aí me ferro
e sinto que só assim mesmo
preu sair do lugar
preu desafogar de mim
 
preu, desgostoso,
voltar a gostar
de mim
e disso
que teima em ser
a vida
 

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Como me tornei inútil

Talvez pelo excesso
de cansaço

Depois ponderei
tornei-me inútil por orgulho atrasado

Poder dizer não
poder não fazer

Um prazer repentino esse
do não querer

Ih, não quero
ih, sai pra lá

Inútil eu me tornei
para me resguardar das exigências

Ter que isso
ter que aquilo

não ter
não ter

Não quero ter que
não quero nada

me deixa
me deixa

Por que te incomoda
que eu possa servir à nada?

Sirvo hoje ao silêncio
ao tremido instante

sirvo apenas a isso
a poder não

Eis minha força
meu anonimato

Tornei-me inútil
apenas para me tornar

para voltar
para ir
para não servir
para apenas ser e estar

mas não servir
nada fazer
por hoje
sou inútil

e isso me permite ainda respirar

terça-feira, 14 de abril de 2020

Rastros

Está tudo aí.

Aqui.

Tudo disposto,
entregue,
evidente.

As motivações
os sustos e volteios
as palavras viciadas
e aquelas
que apenas uma vez vieram.

A graça
os arrepios e seus desejos
tudo está aqui
e, no entanto,
sigo passageiro.

Ainda que me finque
em orações e predicados
ainda assim
ainda por tanto
sigo em deslocamento

eu sigo
deslocado.

Deixo rastros
em forma de versos
querendo, talvez,
a paz do túmulo vindouro
a calmaria revolta
de um útero morno.

Deixo rastros
orgulhoso de que me compreenderiam
caso eu decidisse por agora
rachar-me o crânio
ou a espinha.

Vasculho o passado
(ele não coube na algibeira)
Vasculho o presente
(que sentido há nisso?)
O futuro, me perdoem,
é quase uma piada de mau gosto

deixo rastros assim
na impossibilidade
de algum conforto.

Em meio às ruínas
ele assim esperaria
estaria intacto
algum reino possível.

sábado, 11 de abril de 2020

Faltar

Uma pausa.

Uma pausa no cigarro.

Sem tossir
Sim, controle-se.

É tudo coisa da sua cabeça.

Coisa da sua cabeça.

Mas ainda assim
falta ar.
Falta
ar.

Respiro lento
temeroso pelo momento
em que possa vir
a não mais respirar

lenta
a possibilidade de um fim
se aproxima,
vagarosa.

No planeta
vulcões em erupção
grandes crimes
suas corporações,

neste instante
uma encomenda por telefone
a vizinha bebendo escondida
na área de serviço.

Puxo o ar
mas ele falta
hoje ele não vem
aguenta

Aguento?

O que falta
além do ar
não seria menos
do mesmo?

Menos que o mesmo
menos que o dito normal
o que falta talvez seja
o cúmulo do anormal

O anormal
é preciso
para fazer estranhar
o costume que nos lascou.

Chamas.
Vagas,
panelas e varandas
Ela

ela
suculenta
ela a morte
não esquenta

sabe-se capaz
sabe-se presente
sabe-se na moda
a morte

ela é crente
ela confia
persistente
no ser humano.

terça-feira, 7 de abril de 2020

apenas para não esquecer

aos poucos
se torna possível
isso de só no adiante
te rever

você é tanto
são tantos
em apenas
um você

aos poucos
durmo e acordo
e estar vivo
é saber durar

sem muitos sonhos
nem tantos desejos
sem provas nem certezas
dormir é acordar para dentro

dentro
te vejo em meio à multidão
e você está seguro
acordo assustado

se fosse em vida
meu sonho seria o precipício
se em vida
sonhar seria pesadelo

aos poucos vai sendo assim
o que virá há de vir
e por agora é só isso mesmo
dormir e acordar

sonhar
e eventualmente
apenas para não esquecer
sorrir

sábado, 4 de abril de 2020

Reclames

De fato, é mesmo insuportável ficar trancado em casa
Imagine quem nem casa tem

A entrega do mercado, atrasada
A entrega da farmácia, adiada
E já foi pago!
Já creditou!
E quem faz a sua entrega
você alguma vez já considerou?

Ainda bem que nem todos os serviços foram suspensos
Nem todos os serviços foram suspensos
Ainda bem que dá para fazer o mínimo
do mínimo
Ainda bem
Ainda bem que existem pessoas não como você
não como você
ou como eu

E quem não come?

Eu reclamo (de barriga cheia)
Tu reclamas (de barriga cheia)
Ele reclama e ela também
Por certo, nós reclamamos
(de barriga cheia)
Agora imagine
Imagina esse delirante instante:

deitado à rua escura
por agora um tanto erma
ali deitado
ele acorda e mira o movimento
que escassa
ele pensa
por onde anda aquela gente esfomeada?

Estamos aqui
escondidos da vida lá fora
reclamando por estarmos vivos
e ainda pela demora
da entrega em minha porta.