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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Extático

Após a vida ordinária,
você me olha, mãe
E me pergunta sobre o que
tanto escrevo
Eu te olho, meio assim, absorto
eu digo
Você me refuta
o quê?

Passo o fino dedo no seu braço gordo
eu te digo, mãe, eu te digo
Estava boa a salada de batatas
estou com azia
Você ergue os olhos sobre os quais
as sobrancelhas
O poema, você, me pergunta
Como você consegue?

Eu digo que não tem importância
não tem mesmo
Não tem
o poema, mãe
O poema
eu simplesmente o faço
Eu poemo
você ri, está vendo? Me desafia

O poema é essa gororoba
que ninguém gostaria
mas que quem prova
até gosta
até gosta, mãe
Sabe?

Às vezes me sinto assim
um pouco encantado
como se pudesse algo
algo assim
que nem sei, mãe
nem sei
Sinto-me assim
às vezes só
nem sempre
nem tanto
às vezes sinto-me assim, mãe
enlevado, sabe?
Num pequeníssimo alto
maravilhado me vejo

Olha eu lá

É o poema, mãe,
em minha vida

Um instante sem linha

um montante sem moeda

O poema, mãe,
minha placenta que não rasga.

Espero te ver outra vez,
você me diz
Antes da morte?
Eu pergunto
Sim, você concorda
a gente há de se ver
a gente há de se ver
Até lá
- você quase grita -
Haja poema, mãe
sim, meu filho

Haja poesia!


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Adélia

Num gesto sem propósito
então você perceberia que sim
tens medo de amar
um medo profundo
um medo
de se deixar ser
e ser amado

Verias em cada grito
cada grito dado
perceberias você o quanto
estavas assustado
tentando empurrar ao longe
a possibilidade
de um toque
acalmá-lo

Seria numa tarde
como esta, talvez
numa tarde
você perceberia que o seu medo
é apenas o medo de gostar
de gostar do cuidado
que um ser pode
ao outro devotar

Sentiria que o esforço
não deve ser movido
para evitar você sentiria
por fim
numa tarde sentirias
que a força mesmo
deve ser feita para chamar
vem

você agora diz
mudo
na solidão da sua paz forjada
você agora diz
barulhento
no seu silêncio
você diz

vem, mundo
deita em mim
faz de mim
seu chão
seu centro
e diria mais
mundo
pode vir
em mim
sobre mim
venha, mundo
amar
em mim
sim, mundo, sim

Morreria então seu medo
precisamente no dia
em que o mundo
inteiro
sobre ti
tombasse pleno
vem, mundo

sábado, 22 de janeiro de 2022

Não te espanta

A facilidade com a qual você junta uma palavra na outra e faz uma sentença dessas.

Eu fico perplexo, é um horror, uma coisa que nem sei.

Não te espanta? A facilidade com a qual você junta uma coisa noutra e pronto
disse todo embolado um monte de coisa bonita e estranha
bonita e estranha
É poesia, eu sei, você me disse, mas não te espanta?

Eu fico perplexo, mesmo, é um horror, um desassossego.

A facilidade com a qual você mistura isso com aquilo e diz sempre nesse tom
tem um tom sim, tem um quê de desafio, tem uma arrogância, você sabe
não te espanta isso, menino?

Eu fico assim, confesso, perdido, te olho e me lembro do teu avô, coitado
do silêncio que trazia consigo, não te espanta, que isso que você tanto escreve
possa ser tudo aquilo que até hoje não havia sido dito?

Eu fico perplexo, te olho, escuto seu leve grito, eu fico mesmo apaixonado
olhando para você e imaginando as voltas que você deve dar para justificar
a presença do poema em nossas vidas.

Se um dia um livro

Nada daqui
serviria ao pretexto.

Existe algo do poema
que te impede de voltar
aos tempos.

Se um dia um livro
por certo as linhas
viriam em branco.

Não sei se foi poema
ou só a vida
que escrevi neste blog
com ímpeto e
abandono.

Se um dia um livro
eu provavelmente
estaria morto

porque sim
ou um
ou outro
ou um ou
outro.

3S emanas

a sonoridade
já não lembro
o estalo que faz
tanto fora
tanto dentro
não lembro
os dedos amarelos
a boca pede água
não lembro
nem sequer tanto
como fazia
para administrar
o ar que entra
a fumaça movediça
já faz 3 semanas
um lamento de ti
emana
sem piada
sem trocadilho
de ti de dentro
te traindo
um pranto silencioso
pedindo
morra-se
morra-se
morra-se
e era só isso
num tempo preciso
você ouviu
outra voz
você ousou
ser atroz
e com rimas mesmo
sem medo da cafonice
você se disse
hoje não
amanhã não também
e assim perplexo é que se
faz 3S emanas
coração partido
você se ensinando
que nem tudo
nesta merda
é só o que você quer, meu amigo

sua fumaça toda invisível
seu desejo todo sem vizinhos
seu silêncio te contando
à força
que o impossível é bem possível
é bem possível

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Um novo capítulo

Sinto que é um novo capítulo.

Já começou, é recente,
é um novo capítulo.

Não há título ainda,
não sei qual tamanho tem
ou terá,
mas um novo capítulo começou
acabou de começar.

Diria que é novo, por certo,
mas que traz um pouco
daquilo que nos capítulos anteriores
foi possível apreender.

Algo que fica
algo que grita, que gritou,
algo que brilhou, algo que doeu,
algo enfim que se fez nascer
em ti.

Um novo capítulo
mas sem alarde
sem comemoração
sem lacre fechado
agora aberto
um novo capítulo
é também um novo gesto.

Só você
pode degustar
que o estranho
de seus passos
são as páginas
não escritas
que começas
a esboçar.

Faz sentido?

Algum.

Um novo capítulo, é isso?

É isso mesmo. Um novo capítulo,
um novo capítulo.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O poema escondido

Diria, em primeiro, da satisfação
que é ver a sua luta acontecendo
em você.
Da satisfação em te ver rompendo
a cada manhã as caixas de veludo
que o acomodam faz tempo.
Começaria por isso, sem dúvida
pela satisfação de perceber, por ti
que ainda podemos fazer outra

coisa.

De ti, portanto, chego à poesia
ao modo pelo qual você destila
a sua força e a sua ira.
Você escreve o seu poema
mas não diz as causas seu poema
nasce sem materna ou paternidade.
Penso, então, nos poemas escondidos
dentro dos seus dilemas e o quanto
não sei como encontrá-los talvez eu

gostaria.

Seria o exercício do poema
um jeito encontrado para esconder
o dilema da vida?

O poema e o dilema
a vida em curso e trôpega
aí vem o verso e sua ladainha
Quem cura quem?
Quem é mais automático?
O poema ou o dilema?

Gostaria de te perguntar uma coisa.

Sim, por certo, uma dúvida que me avassala:

quando você escreve seus poeminhas
eles te servem ao quê
o que eles te servem
eles apenas fazem
a terapia que você paga
mas tem medo de frequentar?

O dilema da poesia
A poesia do dilema
O poema que esconde
A vida escamoteada

a vida escamoteada.

3h30

olhei as horas no celular
era três e meia da manhã
nem mais nem menos
os barulhos vindos do
apartamento ao lado
me diziam anda acorda
é hora de escrever

relutei um pouco
mas cedi e acendi
o abajur e esquentei
a água fiz chá preto
urinei lavei o rosto
e peguei o carregador

do computador na tomada
ele em meu colo eu pensando
por onde começo se digo
do realismo ou capitalismo
se junto um no outro ou se
apenas me digo eu me digo?

escrevi umas seis páginas
menos ou mais não sei
aos poucos minha tese
vai aparecendo e eu nessa
oscilando entre aceitar
que eu falo de tudo o que

quero ou não é assim
se a vida anda meio
sem vida ao menos eu
escolho viver o que
ainda é possível viver
esta tese por exemplo

virou um porto um ponto
onde eu me acalmo apesar
de tanta agitação nela eu
fico na esperança de que
depois no depois lá longe
espero que nem tão longe

eu consiga respirar
e consiga me sorrir
e consiga cruzar os
delírios as loucuras
que eu consiga eu
gostaria muito de

poder conseguir
afastar para longe
bem longe de mim
esse rumor de fim
de morte e loucura
não sei não sei olha

se as coisas maravilhosas
acabam provisoriamente
acabam então eu preciso
acreditar que os momentos
horrendos também morrem
também acabam para depois

voltar ou voltarem?

não sei concordância
apesar de saber concordar

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

entrega

cá estou 
sem culpa ou pressa
pode me usar 
eu te digo
você me olha
sem saber por onde começar 
eu estou aqui
eu repito
considere se aproximar
de mim
você vem
tremendo, você está tremendo 
é bonito, eu penso, 
ver um homem grande desse jeito
eu pouso minha mão no seu peito e te digo 
faça o mesmo, faça o mesmo
você me olha
você chora
a vida é bem diferente da pornografia
eu sinto
sinto muito
seu pau nem pisca
meu coração está fúnebre 
eu te dou um abraço 
tentamos noutro dia
eu te digo
e repito
pode me usar
pode me usar
e então você me abraça 
e é isso o que sobrou de tudo

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Atentado

Eu te pergunto se faz algum sentido
Algum sentido
Ter agendado uma consulta
Você agendou
Para 11 horas desta manhã
E já ser quase meio dia e 
Você não apenas não sabe quando serei atendido
Como sequer sabe quem está sendo atendido neste exato momento 

Ou não 

Talvez pudéssemos falar com o doutor
O homem que nos coloca neste estado
Foi ele quem chegou tarde
Doutor
Se as suas consultas começam 9 horas
DAS MANHÃS
Como pode você chegar por volta de 10 e meia
Ao consultório?

Sim é preciso dizer

Acostumamo-nos a nos acostumar com o costume dos atrasos

O costume com o atraso é secular

O atraso que tira o olho do lance 
Que faz dormir a atenção devota ao instante 
O atraso que arrasa a dedicação 
Que turva a mão na mão o gesto
Das entregas 

Alguém gritaria
EU NÃO TENHO O DIA INTEIRO
EU NÃO TENHO O DIA TODO

E alguém responderia 
É só aguardar, por favor, é só aguardar e

A humanidade não está pronta para ser humana. 

domingo, 9 de janeiro de 2022

cavalgar cavalgar

na sua calma
disposta a minha cama
aqui fico apenas

te olhando
não digo nada
apesar dos sorrisos

somos um no outro
ninho novelo é lindo
o som que faz

os corpos
se comendo
aproximam-se

da dor
e batem nela
perguntando

se se dói de amor
hein dor só se dói
de amor?

a dor não diz nada
ocupada ela está
em cavalgar cavalgar cavalgar

lenta lenta
toda toda
feliz e desejada

leitura [ou] o horror do dominar

tentamos
por décadas
ter tudo
ler cada página

dizíamos a obra
a obra prima
dizíamos o romance
dizíamos muito
líamos quanto?

cansamos
subitamente
do todo do tudo
viveríamos em flagras

abrupto
o teu olho
me passava
e destacava

isso
aquilo
aquilo e isso
acolá

você ia
seu olhar
lambendo e lendo
não havia todo a dominar

porque o movimento

décadas em mim
vocês me leem
décadas em mim
e mais da metade

fui só leitor de instantes

instante de páginas
de capas de palavras
nada tudo nada inteiro
nada sempre

essa leitura
melhor professora
para quem não anseia
o horror do dominar

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

perversão

e assim de súbito
caminhando numa qualquer rua
você diria a si mesmo
da sua doença
dessa perversão
que te fascina te desorienta
sim
haveria rima
para insondável desespero
mesmo na rotina
diria a si próprio
do seu desassossego
como é possível?
falta a mãe o amor
o dito falo
falta a fala falta a falta
quanto desamparo
e até tudo sustar
você se despencaria
entre homens
conhecidos ou não
e cruzaria avenidas
procurando um consolo
um gesto qualquer
que suprisse a sua demanda
por risco
e por medo
e pelo arrepio
que já não sentes no amor
que amor?
a vida é tão passageira
mas demora
como demora estar vivo
como demora
e o risco é tão mais ágil
que horror tudo isso
quisera eu ter conserto
quisera coragem
para pum
tchau
e deu-se nisso
que horror
que horror
que horror esconder tudo isso em poesias que nem poesia são

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Da solidão

Privado das notícias
apartado dos encontros
naturalmente
cedo ou tarde
A poesia me resgataria

Agora o que sinto
o que penso agora
tudo ou quase tudo
serve de gatilho
para que ela venha

O ordinário brilha
para além de si próprio
tudo mais imenso
mais delicado
tudo potencialmente um gesto,

mas não há nada acontecendo aqui

o que segue em curso é alguém
tentando se desacostumar de si

E isso é de uma solidão
que olha
nem sei
melhor nem
dizer

É de uma solidão tremenda
daquelas que nem seu eu
de outrora
te acompanha
é tudo novo e tudo se faz agora

Eu que não fumo e não me reconheço
após um dois dias sem fumar

Eu que ao acordar alongo a coluna
vertebral eu não me reconheço nesse

Eu que com calma traça os planos
e com calma eu com calma não sou eu

E as manhãs serão assim
perceba: hoje você fez algo
para comer e comeu
e agora está pronto para
trabalhar são nove horas

Alguém haveria um dia
de te contar o quanto a solidão
é mais um espaço
do que uma condição final
alguém te contaria, não?

domingo, 2 de janeiro de 2022

tudo direitinho, mas

Mas é exatamente assim como você costuma fazer. É a sua cara fazer desse jeito. Você nem perguntou o que eu acho, você simplesmente foi e pronto, tudo se resume a você, é sempre assim que você faz.

De fato, seria preciso considerar uma conversa anterior. Considerar caso te interesse que tudo saia do melhor modo possível, afinal, é sempre bom ter esse tipo de atenção. Compreende?

O problema é a quantidade. Eu leio a receita, compro tudo direitinho, mas na hora de cozinhar eu aumento a quantidade de cheiro verde, diminuo a quantidade de creme de leite, coloco até ingrediente um pouco já passado, o problema é esse.

E então ela quis um nome diferente e daí veio esse meu nome. E o do meu irmão também. [...] Acredita? Pois é. Lembra um pouco o nome do seu pai.

Então uma caixa de fósforo então.

Você está doente, definitivamente, doente.

Você perdeu a sua vida, meu irmão. Essas palavras vão entrar no coração.

Foi lindo mesmo. Me diverti muito Dancei, joguei boliche, bingo, dancei. Dancei, já disse. Foi tudo muito bonito, tudo muito assim elevado, sabe? A mamãe ficou muito satisfeita mesmo.

Vou castrar ele então.

Das notícias

Não procurei saber.


sábado, 1 de janeiro de 2022

Autocuidado

Começo pelo o que não sei.

Seria um heroísmo às avessas
Isso de se lançar sem rede
Isso de se arranhar sem capa? 

Por certo seria alguma burrice. 

Uma reposição juvenil da falta 
Primeira a mãe depois as desgraças 
Que viriam e vieram seria isso? 

Ao menos a palavra lançada agora
Te laça.

Autocuidado. 

Se não sabes bem o que é 
Será preciso buscar. 

Alguma perversão originária 
Palavras difíceis tão clínicas 
Você todo exposto menino

Nem no vento te faz bem ficar. 

Talvez ler um romance 
Talvez dançar um pouco
Não amor nem sexo nem sopa
Talvez gastar tempo se mirando
Para ver se muda esse horizonte 
Tão a ti desfavorável. 

Acabaram e acabariam os cigarros. 

Tens medo? 

Então continue. 

Continue.

Estar vivo é tudo menos estar inteiro. 

Procure-se. 
Proteja-se. 
Cuide-se, cuide-se, cuide-se. 

O cuidado há de te celebrar.