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domingo, 12 de julho de 2009

Antúrio

Posiciona o relógio sobre a mesa. Nas mãos uma impaciência tenta alçar voo. Ela se controla.

Rejane - Quer dizer que agora é isso?
Regina - Sim, é isso. Se alguém deve algo a outra, esse alguém é você, não eu.
Rejane - Você não acha que eu também mereço algo além do seu desprezo?
Regina - Achar eu acho. Eu sempre acho. Mas não posso. Acho que já deu.
Rejane - Já deu o quê, mulher? Que papo é esse?
Regina - Você sabe.
Rejane - Sei não, você sabe.
Regina - Sabe sim, você sabe que sim. Não me enrola. Eu tô esperando.
Rejane - Senta e espera, então.

Regina senta no sofá. Nas mãos uma impaciência tenta alçar voo. Ela se controla.

Regina - Vamos, me diga... Quando foi?
Rejane - Ontem...
Regina - E como foi, eu quero saber o como, como foi?
Rejane - Calma... Foi como tinha que ser. Os dois ali, era inevitável algo não acontecer...
Regina - Inevitável, sei. Quer dizer que agora você é um fantoche na mão do destino?
Rejane - Não, amiga.
Regina - Não me chame de amiga! Estou magoada, você não percebe?
Rejane - Eu te entendo...
Regina - Não preciso de sua compreensão. Mas quero que me olhe mesmo assim. Não te parece quase um... (Milimétrica) Quase um ultraje, que isso tenha acontecido com você e não comigo?
Rejane - Por isso eu disse... É coisa mesmo do destino...
Regina - Hipócrita. Não quer assumir a responsabilidade!
Rejane - Eu não tenho culpa, amiga.
Regina - Não me chame de amiga.
Rejane - É como é com azar e sorte.
Regina - E hoje você acha que eu estou como?
Rejane - Hoje você tá linda. Você tá linda, hoje.
Regina - Não, sua estúpida. Eu perguntei como você acha que estou hoje. Com azar ou sorte?
Rejane - Você tá... Você tá com raiva, Rê.
Regina - Chega de intimidade comigo. A gente não se ama mais.
Rejane - Você não me ama mais... (A conta-gotas) Mas eu ainda te amo. E te respeito.
Regina - Hipócrita duas vezes na mesma noite, como pode, meu deus?!
Rejane - Você tá exaltada. Não quer um pouco d'água?
Regina - (após uma tensa pausa) Um balde, por favor.
Rejane - Quer mesmo?
Regina - Sim, um balde, por favor. Tenho sede.
Rejane - Certo, sim, vou buscar...

Rejane se retira. Regina cujas mãos salpicavam sobre as coxas gordas, agora insere a pilha de volta ao relógio. Ele volta a girar. Rejane traz com dificuldade um balde cheio d'água e o põe sobre a mesa, diante de Regina.

Rejane - Aqui está, confesso... Se não conseguir tomar tudo, não tem importância, eu jogo o resto nas plantas. O antúrio ali no canto da sala tá seco, parece até que vai morrer.
Regina - Sabe que às vezes nem é água que falta? Às vezes falta mesmo amor. (Desce o rosto lentamente e beberica um pouco d'água) Saborosa, obrigada.
Rejane - Saborosa, Rê? (Repreende-se pela intimidade. Após uma tensa pausa) Mas água não tem sabor...
Regina - Quando se quer muito alguma coisa, a gente acaba inventando um jeito de se ter, um motivo que justifique uma fome ou sede que te permite ir além e simplesmente ser... (Após uma pausa, amável) Mas acho mesmo que exagerei. Não quer dividir comigo, Rê?
Rejane - (confusa, assustada, enojada) Ai, Rê, bebe aí o que quiser, se sobrar, não tem problema, eu dou pro antúrio...
Regina - Sabe que às vezes o que falta mesmo é amor e nem água. Você sabe. Mas eu digo, entre a gente, o que você acha que falta?
Rejane - (sem graça) Acho que talvez seja mesmo água, não?
Regina - Sim, acho que talvez seja mesmo água.
Rejane - Sim, talvez seja mesmo água...
Regina - Sim, talvez mesmo água.
Rejane - Sim, talvez água...
Regina - Sim, talvez.
Rejane - Sim...
Regina - Sim.

Rejane avança o rosto lentamente em direção ao balde sobre a mesa. As mãos seguram tremulamente a borda do balde. No tocar da língua ao líquido, Regina avança não só as mãos mas o corpo inteiro. E sustenta sob seu peso a cabeça da amiga sob a água. Rejane se debate, enquanto a outra apenas fala,

Regina - Se não conseguir beber tudo, pode deixar... O que sobrar eu dou pro seu antúrio. Ele tá seco, parece mesmo morto. Deve mesmo ser falta de água. Deve mesmo ser falta. Deve mesmo ser. Deve ser. Ah, deve...

Num último espasmo, Rejane faz o relógio cair da mesa e dele se desprende a pilha. Tempo.

FIM

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