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sexta-feira, 27 de março de 2020

complicado tossir nesse momento...

imagine ficar em silêncio

apenas imagine
quão complicado poderia ser
ter que
ter que ficar distante de tudo aquilo que
outrora
era o seu sustento

antes isso
antes tossir
testemunho do momento
sobrevive-se
ainda que rangendo

por certo
complicado é isto
eu estar aqui
e você lá longe

ainda que perto
complicado seria mesmo isso
você aqui
e entre nós esses dois metros

imagino outro contexto
a vizinha me olha pela janela
eu abro minha porta
e tem feijão sobre a mesa (dela)

eu levo o arroz, tudo bem
sei como fazê-lo
imagino outro contexto
um no qual este vinho ainda não acabou

complicado seria isto
tossir nem tanto
complicado seria mesmo isso
apenas isto

este momento

quarta-feira, 25 de março de 2020

Expurgo

É como se uma voz maior
dissesse a mim bem baixinho

Deixa arder, mocinho,
deixa

Então eu tusso
Essa palavra feia
tusso

E dói
(dentro)
E arde
(dentro)
E repito os movimentos
eu tusso, tusso e hoje já é amanhã

Acordo ameno
até esperançoso
O café quente
A água gelada
A cueca sobre a pele
O silêncio desta casa

Aí tusso
tusso
Essa palavra horrenda
Deixa, mocinho, deixa doer

E arde
E insiste
E vive
E morre
E segue a porra toda

Essa palavra feia
Essa que não pronuncio
Mora dentro de mim
Mora dentro de mim
eu sei
eu sinto
eu
eu
eu

eu tusso.

domingo, 22 de março de 2020

Suspensão

Quando bem lá nos inícios
certa vez recebi uma suspensão
Fui privado de ir ao colégio
privado dos encontros

Tarde, porém, no depois
jamais poderia imaginar
que novamente seria suspenso
e que da vida seria privado

Ao menos um pouco
hoje observo
Suspenso
o que talvez signifique ser vivo

Minha cabeça dói
meu peito esvaziado, vazio
eu tornado terreno
terreno todo baldio

Haveria vida que não fosse
apenas no entre um e outro
no entre nós
eu e você?

Aguento por uns dias
já no meio da segunda semana
leio as estatísticas que me prologam
bem lá para frente

Onde estou?
Como me finco?
Deveria deixar partir?
Deveria deixar de insistir em chão

quando apenas o que parece haver
é este silêncio
suspenso e suspendido?
Devo?

Minha cabeça dói
em letras garrafais me gritam
você está no grupo de risco
ora, não basta viver para ser risco?

Risco
Suspenso
Esboço
Propenso

Nem sei
quase não me importo
o amor não virá por agora
por agora também o amor está suspenso

Sustento o barulho
protejo o sinistro
especulo lento
lento bem lento

É isso
por agora
apenas isso
isto, aquilo, enfim

[...]

quarta-feira, 18 de março de 2020

Fui até a esquina comprar cigarros

No caminho
atravessei para um lado
e outro
uma mesma rua
Atravessava sempre que flagrava
um rosto
(que não o meu).

Um pouco perplexo
observei
como havia gente nas calçadas
como ainda pode haver comércio
fui até a esquina
para comprar cigarros
e ninguém se espanta
que eu fume.

No caminho para casa
atravesse para um lado
e outro
da mesma rua
Temendo cruzar por alguém
que subitamente
pudesse tossir
e me contaminar.

Fumo pólvora
e meu cinismo
tem a cor
dessa cidade.

O que haveria para a poesia
se não a tarefa
de escancarar o vírus
que se tornou a humanidade?

quinta-feira, 5 de março de 2020

Pourquoi tu gâches ta vie?

Às vezes, a pergunta chega assim
Noutra língua

Fico com ela desse jeito
ou ameaço traduzir?

Meu escasso francês
se reanima

Pourquoi é por quê
Por quê?

Tu gâches não faço ideia
mas me lembra o ser gauche na vida, Drummond

Ta vie eu sei
Sua vida

Por que tornar gauche a sua vida?
Eis a pergunta de uma existência

Não sei a resposta
nem em português quiçá francês

O que faço?
Durmo com ela

E afogado em sono
olho o que encontro

Eu apenas danço

Danço
Eu danço

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