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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Acabamento

Nas pequenas coisas
Em coceiras localizadas
Nas pontas e nos fios
Na dobra das rugas
No embaixo do sorriso
Em tudo
Diria que em tudo
Se manifesta inteiro
Esse cansaço de faz anos.

Penso na delicadeza do tempo
Que acumulando-se
Vai compondo lento
E imponderável
Esse esgotamento.

Voltar-se aos detalhes
Para ver dor maior.
Coçar a pele até ver vermelha
A alma
Estafada.

Se não há só dor
É porque sobrevive plena
A esperança. De ser outra coisa
Ou antes
Apenas ser o mesmo
Mas de outra forma.

Muda.

Dias mais quietos.

Por que não ficar um pouco mais
Ali
Sem grandes revelações?
Poderíamos mudar o gênero do drama
Dessa invenção de existência?
Poderíamos desfazer os laços trágicos
Nem rir nem zombar
Apenas resistir
Como sendo resistir
Um modo ameno de ser
E aqui estar?

Tenho pensado muito sobre esta outra possibilidade. Não encontro se ela está antes ou depois de mim, mas sei que me envolve e solicita. Posso, então, ceder ao impensável? Posso existir de novo, renovado, dentro dessa mesma roupa que se tornou minha atribulada vida?

Queria sim, queria muito, a angústia do tempo andando colado aos meus suspiros de amor mal amados.

Queria sim, juro, queria que a minha ansiedade pela vida se convertesse, sem graça, em escuta: o que deixa de acontecer quando tudo está tão correndo assim?

Eu deixo de acontecer. Eu, escravo de uma dinâmica que, se um dia funcionou, hoje se move apenas para me moer.

Não quero mais. Não posso nem quero mais querer.

terça-feira, 8 de maio de 2018

William Shakespeare

Numa manhã qualquer, em sala de aula, uma aluna o perguntou algo: professor, como você faz para dar conta de fazer tanta coisa? Ele sorriu para ela. Costumava sorrir para tomar tempo pensando numa resposta adequada. E então ele disse: eu não faço tanta coisa assim. A turma inteira reagiu. É claro que faz. Ele pensou. Todos ali sabiam. E então ele tomou ar e disse: é verdade. Parece estranho dar conta de fazer tanta coisa, mas a questão não é essa. A questão está nessa expressão: dar conta.

O que é dar conta? É conseguir? É acertar?

Sempre acreditei que dar certo é dar gostoso. Os alunos ficaram em silêncio. Ele afirmou: não é sobre dar conta, é sobre dar gostoso.

Alguns riram. Outros abriram os olhos espantados. Dar certo é dar gostoso. Nesse sentido, interrompeu o fluxo, foi essa a sua pergunta?

A aluna negou com um assertivo não. Não? Não. Eu quis saber como você faz para dar conta de tanta coisa que o senhor faz.

Não me chama de senhor. Vamos lá: eu simplesmente faço. Nem sempre o melhor que posso, mas sempre faço. Não tenho muito tempo para pensar em. Eu simplesmente faço.

Definitivamente era uma resposta preguiçosa para uma pergunta tão indevida. Por que ele se sentia perseguido.

Na próxima aula vamos conversar sobre esses escritos de William Shakespeare, porém, não se enganem e nem me enganem, será junto com o cara e não só com ele, entenderam? Eu quero mesmo saber o que vocês pensam sobre as palavras desse que disseram ser um dos maiores escritores de todos os tempos.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Esperânsia

O que esperar?
Desespero tudo.
Disse o cardiologista
Ansiedade é o nome disso
Disso o quê? Retruquei.

Disso...
Disso.
Disse ele
Você.

Respirei fundo e rápido
Olhei pela janela
Os exames sobre a mesa
Ventaram.

Isso...
Isso.
Disse a ele
É o que sou.

O sol lá fora estagnou.
As Vassouras pararam de tocar o chão.
Sinais de trânsito fecharam bruscamente.
Não houve atropelamento.
Estava tudo calmo
Na ânsia
Tudo ainda assim pleno.

Olhei-me nos olhos que me olhavam.

Pensei sobre o que não tem mais jeito.

O que você esperava?
A vida, o que te deu
Foi mesmo e apenas isso
Essa habilidade trêmula
De ser inconformado
Com o seu contorno
Suas maravilhas e depressões.

Ele me disse assim que me levantei
Ele me disse
Diogo, se isso é o que você é
E se ser você é o que apenas o que há
Então seja
Seja ansioso
Fume seus cem cigarros
Durma sozinho e acompanhado
Mas continue

Até tombar?
Lhe perguntei.
Até morrer?
É isso.
Sim, disse-me o doutor
É isso
É isso?
Que assim seja.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Corte

Estranha essa habilidade
De arrancar sem medo
A dor que te ocupa.

A noite não teme morrer
Ao dia. Nem o dia soluça
Por escurecer.
Por que haveria eu
Pobre humano
Que enlouquecer?

As curvas das estradas
Dizem bem dos percalços
De um ou dois corações.

Acordo certo, por fim,
De que houve entre nós
A magia da beleza
A fúria de uma paixão.

Mas que tudo passa
Como muito já passou.

Libero o corpo para outros tropeços.

Não quero mais.

No quiero más.