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sábado, 28 de março de 2009

No meio do caminho...

Surge transtornada no alto de um prédio. Veste uma roupa de entregadora de lanchonete e traz uma caixa de pizza. Retira de dentro da veste um gravador. Aciona o botão.


– Ah, chega uma hora que a gente fala, Eu tô cansada! Eu ia escrever. Mas pra quem enviar?! Então preferi falar. Quem escutar esse relato, por favor, acredita em mim, porque eu não acredito mais. Eu vou explicar tudo pra não ter dúvidas, eu tô cheia delas. Por exemplo, por quê eu pedi pra ser cozinheira e virei entregadora? Por quê, só olham pra mim, depois que já me pisotearam? Eu entrego pizza. Não é o melhor trabalho do mundo, mas é digno e eu me remexo muito. Era com isso que meus pais implicavam. Mamãe sempre repetia, Essa menina parece uma pedra, não faz nada. Tentava de um tudo pra me tirar do quarto, Anda, Rita! Vai à matinê, minha filha, a mãe dá o dinheiro pra você comprar uma guaraná! Só que eu não queria, poxa! É tudo fase na vida da gente. Às vezes sou mais devagar, às vezes sou mais devagar ainda. Também, quando você é criança, basta ficar parada pra acharem que você já tá doente! Poxa, como se contemplação fosse doença! Pra mim é muito difícil falar disso... Meu pai era pedreiro e, às vezes, fazia obra lá na escola que eu estudava. Eu não via nada demais, até o dia que ele gritou, na hora do recreio, pra todo mundo ouvir, Rita, menina! Vem falar com seu pai. Anda, vem! Nessa hora, eu mudei de cor sem sair do lugar. E ele continuou. Não foi legal! Ele olhou pros amigos, orgulhoso, e gritou, A mãe dessa daí tem mania de chamar ela de pedra. E não tem nada ver com o meu trabalho, não. É porque ela é um pouquinho devagar mesmo. Não é, menina? Pronto. Tem coisa que traumatiza a gente pra toda a vida. Eu lembro! Voltei do recreio e quando entrei na sala de aula, todo mundo gritava, Pedreira! Rita Pedreira! Eu ouvi todo o tipo de piada naquele ano, Rita, cadê sua pá? Rita, tem alguma coisa no seu cabelo, acho que é cimento, ah não, é tinta mesmo! Faz pouco tempo que eu fui entender tudo isso. Porque criança é literal, viram meu pai com tijolo e acharam que eu era igual. Ah, chega uma hora que a gente fala, Eu tô cansada!


– Quando eu cheguei em casa, mamãe disse, Minha filha, você já viu pedra chorar? Aquilo mudou tudo... Engoli o choro e só soltei quando meus pais morreram, porque eu sabia que mamãe não ia mais chamar minha atenção. Antes disso, na época do vestibular, prometi pra mim mesma que ia passar de primeira, porque se não passasse, era porque eu era tudo aquilo que diziam... Estudei pouco. Ficava pensando como é que se tirava leite de pedra. Aí eu percebi que eu era parada mesmo. Eu dormia mastigando milho, dormia embaixo do chuveiro, eu dormia contando carneirinho... Mas teve um poema que marcou, na verdade, que manchou a minha vida. Não! Porque depois que você é excluída uma vez, acha que acabou, que tá tudo certo. Mas as pessoas sempre querem mais, elas olham pra você e pensam, Essa daí já deve tá acostumada, nem vai sentir tanto! Aí eu virei a pedra do poema, poxa! No começo achei que o fato de ser Pedreira e virar pedra, era um avanço, porque eu diminuía de tamanho. Mas eu sempre me engano, eu nunca tô certa! Achei que Deus era cego ou não enxergava as coisas, porque eu vou te dizer uma coisa, viu! A turma inteira virou poeta. Todo mundo fez poesia com a minha cara. No meio do caminho tinha uma lerda, tinha uma lerda no meio do caminho... tinha uma ameba, tinha uma ameba no meio... Ah! Chega uma hora que a gente fala Eu tô cansada! E não é de entregar pizza, eu nem ligo de feder pizza! Eu canso é de ser isso que eu sou! Mas eu tô decidida! Não vou demorar, pois vão começar a me procurar porque eu não entreguei essa maldita pizza. De qualquer forma, eu não passei no vestibular porque vestibular é algo desumano! Tinha que pintar cem bolinhas à caneta no cartão de resposta. Poxa, isso cansa!... Aí eu consegui um emprego, pelo menos. Sou entregadora com possibilidade de ser caixa. Eu não sei o que meus pais iam pensar de mim... Eu devia ter assinado um monte de documento, pagado um monte de conta antiga, tudo pra casa ir pro meu nome. Mas tudo é tão difícil! Eu acabei perdendo a nossa casa... Não é culpa minha! As coisas correm tanto que eu perco as chaves de casa, eu perco o freio... Eu ando tão triste...


– Suicídio é menos doloroso, dá menos trabalho, abre um monte de possibilidades. Eu já aviso logo que eu não fui assassinada, não fui molestada, quem dera estuprada. Imagina! Eu sou uma pedra! Ninguém come pedra, ninguém dorme com pedra, ninguém sequer beija boca de pedra. Beijam sapo, agora pedra?! Pedra tem boca? Nunca! Pedra vive no meio do caminho dos outros. Eu entrego pizza e ainda consigo parar no meio da entrega. E por quê? Eu não sei porque, porque se eu soubesse eu não ia ser chamada de pedra! Eu me sinto tão deslocada, quase uma retardada! Eu sinto que as pessoas olham pra mim e fofocam, Coitada, essa daí ainda tá na mesma? Eu tô na mesma. Eu tô nessa, sim! E vou perder meu emprego. Aliás, eu vou morrer, não importa... E essa pizza? Ela vai esfriar? Rita, presta atenção! Pedra não come, pedra nem fala, você já viu pedra falar, Rita? Não! Só eu... Eu não sou eu nem sou outro. Sou qualquer coisa de intermédio. Eu tenho baixa-estima, poxa. Chega uma hora que a gente fala Eu tô cansada! Agora... Pedra fica cansada? Pedra reclama da vida? Pedra tem vida? Pedra fica parada. Pedra fica no chão, presa. Pedra serve para segurar papel, mas nunca para ser cozinheira, porque pedra, pedra é algo pesado e quem é pesado anda mais devagar, atrás de todo mundo, até parar dentro do sapato dos outros, fincada no gramado, dividindo o rio... Ser pedra é isso aí que você é, sua indolente, um obstáculo.


Rita percebe que o gravador enrolou a fita. Retira-a de dentro dele, azucrinada.


Eu sou um embaraço! Uma impossível! Você é uma bruta, sua lerda! Você não é tudo isso, pára de se ofender! Você fica se pisando, sua maluca! Já não bastam os outros?! Você sempre faz isso e agora vai me dizer o porquê! Anda, responde! Isso devia ser pecado, Rita! Poxa!... O problema é que tudo tá correndo e eu não suporto correr... Por isso eu subi até o alto desse prédio e daqui eu me jogo. Quem sabe não dou a sorte de me espatifar toda e deixar de ser uma pedra?! Porque eu ainda sou uma pedra, poxa! E pedra não corre, não usa biquíni... Pedra despenca do barranco, pedra é arremessada, eu sou toda involuntária...


E assim jogou-se do prédio alto. Deixou, sete segundos após o salto, de ser Rita Pedreira.

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