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domingo, 4 de abril de 2010

seu rosto coberto pela madeira oca. apenas.

No dia em que eu a vi pela última vez, seu rosto estava judiado, seu corpo estava frio, no entanto eu persisti, ali preso ao seu lado. Mexi nas suas mãos, opacas, beijei-lhe a testa dura, movi seus cabelos - inertes - fiz-lhe alguma graça. Sim, eu saberia depois. Você não ia mais se mexer. Isso, no entanto, não me impediu o jogo. A gente se conheceu jogando, seria portanto jogando que eu me despediria de você. E tudo isso veio, certo? Eu saí num dado momento e estava tão fria aquela madrugada. Tinha neblina, tinha lágrima cortanto o rosto de um em um segundo. O ar estava se movendo com calma, nem sequer ventava muito, as coisas meio que pareciam ter parado para se despedirem de você. Eu cruzei o pátio que unia as cinco capelas. Naquela noite só o seu corpo era velado. Eu cruzei o pátio. Cabeça baixa, pés andando juntos, corpo unido. Morrendo de medo do que se anunciaria com o sol. Eu cruzei o pátio, fui à cafeteria. Pensei agora quantas pessoas ali já não entraram com o mesmo ritmo, com a mesma energia. Pedi um café, ele veio quente e apertando o copo eu me senti mais tranquilo. Eu me achei menos demente, ora, aquilo era dor doendo sem vergonha. Dor doendo tudo, não tinha escolha. Bebi todo o café e voltei a caminhada até restar mais outra vez próximo a você.

Eis que o ritual da despedida começa. Mais amigos, mais parentes, mais desconhecidos lhe cruzam o olhar. Você muda, sem falar nada, sem piscar, sem tremer, apática. Eu te vigiei a noite inteira, você não moveu um cílio. Esteve o tempo inteiro sonolenta dentro de sua eternidade forjada. Certo. Começou o choro da mãe, do pai, do irmão, dos amigos. Os ânimos se exaltaram e não faltou discurso, nem sequer ódio meu quando me pediram para não chorar tanto. Como não? Era a minha única força. Era o que restava. Eu segui subindo o morro conservando na mente seu rosto que fazia pouco tinha sido coberto pela tampa de madeira oca. Você ali dentro, provavelmente batendo cabeça e se espremendo e já lhe faltando ar, quando desceram seu corpo, tive a sensação de que eu estava ali dentro, algo me apertando e esmagando e eu sem saber para onde ir eu querendo gritar querendo morrer eu querendo sumir eu querendo sofrer... Meu deus, você se foi tão concreta. Lançada para baixo da terra. Quem me dera tivesse sido queimada, feito fosse bruxa.

Você ficou tão concreta. Tão concreta. Foi seu fim, mas que começo fez você em mim depois de partir? Será que a saudade que eu sinto é o que te impede realmente de ir? Não importa. Não vou nos filosofar. Não há questão, há certezas. Hoje você sobrevive em mim quer você queira ou não. E eu acredito que deves querer. Sabe? Você partiu ficando. Você morreu irradiando. Tudo usado especialmente para uma coisa e outra, ao mesmo tempo. Você foi e é. Você não ia e vai. Você é confusão eterna porque eu não sei se você está aqui ou se o que sinto é justamente porque você não está aqui jamais. Entende? Eu escrevo por você, sobre você, sobre mim, por mim e ainda assim, tudo permanece sem saber. Tudo permanece mistério, como estivesse vivo, como tudo estivesse pulsante. Você inaugurou o absurdo. E hoje, danço esta dúvida para não ficar rígido, burro, certo demais, medroso. Danço esse medo para aterrorizar meus monstros. Que coisa...

Ao mesmo tempo em que eu estou certo de que o fim vem mesmo com a morte. Como aceitar que isso seu aqui comigo hoje é você, depois de ida? Isso é memória? Memória é a liberdade do passado. E quem foi que disse que hoje juntos não estamos mexendo em meu presente, em meu futuro, em nosso passado? Não há controle. O fim é apenas um ponto de vista. Será mesmo?

Um comentário:

j disse...

é lindo de doer

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