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quinta-feira, 18 de março de 2010

…TRANSFERêNCIA

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não. ela não desceu o quintal correndo e escorregou rasgando o joelho. não. isso seria fosse ela ainda infância. isso seria fosse ela não toda já tomada pelo complexo. tomada por édipo.
enfaixada. presa. controlada. o desejo nela resistindo, persistindo feito fala. incessante. incapaz de conter. sangue jorrando quer simplesmente dizer. estou viva. sou capaz de morrer. estou viva. mas não quero mais que venha me morder.
numa mão o silêncio na outra o queixo ressentido. o queixo recém-batido, recém-magoado. recipiente tranquilo para o soco para a mordida não para os teus beijos, pai. não para os teus beijos. não mais.
espuleta. inferno. desembestada. infeliz. diaba. peste. insuportável. estrela. esbórnia. aberração. susto. soluço. arroto. arrependimento. erro. erro. filha da puta. filha minha, mas da puta. igual a mãe. do que mais te chamar. a ruína é seu nome.
tirou a casquinha. como se quisesse provar a si mesma. como se quisesse dizer ao corpo veja como és forte. e era. era forte. apesar de não se permitir o cicatrizar. era forte na torrente coagulante tingindo a vermelho a barra das saias. hoje diminuídas.
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você pode me bater de novo. nisso de repetir eu vou aprender a amar essa dor que ainda dói. você me ensinou que se acostuma pai. bate de novo que eu aprendo. não desiste de mim. eu sou nova, consigo aprender, minha pele já nem tem tanta marca assim.
exceto os joelhos. abaixe.
maçã purifica o gosto amargo da vida.
não fale enquanto come.
você…disse que…minha voz era…bonita.
mas não fale.
ou o senhor vai…fazer o quê…? furar…meus olhos?
torcer seu outro tornozelo.
já está…torcido. foram…os dois.
você não tem vergonha?
a dispensa…aqui de…casa está…vazia…não tem…nada. agora somos apenas eu e você.
sua mãe, onde está?
…no seu estômago…mas inda…restam cabelos por toda…casa.
eu tenho nojo.
quer…que…eu…pare?…
não. só não fala. não fale mais.
…aham…
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o que eu faço agora?
agora é hora da sesta. vá brincar.
eu estava me divertindo.
não posso continuar. preciso ficar sozinho.
tem como tirar sua cabeça?
como é?
para ficar sozinho seria preciso não ter cabeça.
o que você está lendo?
seu corpo, apenas.
pare.
de ler seu corpo?
de tê-lo.
lê-lo?
tê-lo.
é minha única noção de família, pai.
seja orfã, eu te peço.
seja fiel, eu te peço.
não me peça nada.
você não pode fazer mais nada por mim?
não posso. tudo o que eu faço é por você.
quanta conversa estamos tendo. me surpreende. sinto que estamos vingando outra vida.
vingando.
vergando.
para de olhar.
eu gosto.
pare.
eu gosto.
pare.
eu poderia morder.
não.
então eu olho. porque eu gosto.
quando isso vai acabar?
não sei. você tem prazo de validade?
não.
pretenso e eterno. deixa eu ver.
pare.
não aqui.
pare, por favor.
nem aqui.
eu te peço pare por favor.
quando eu nem sabia falar eu te falava essa mesma frase. e nada. por que haveria eu de me comover? a desgraça é sua.
não se faça de sofrida.
quem sofre hoje é você.
não me faça de sofrido.
eu faço de você o que eu quiser. deu para entender?

eu gosto dos seus peitos. são fortes mas tímidos. eles tem medo de alguma coisa. você tem medo, pai, de quê?
não me chame de pai.
pois é. tem medo de quê?
da morte eu não tenho mais. se é o que você está esperando eu responder.
as maçãs temem ser mordidas.
o quê?
as maçãs. eu disse que elas temem ser mordidas.
deixe eu morder.
a mim?
a maçã.
não posso. é a única que restou.
eu tenho fome.
a dispensa está vazia.
eu tenho sede.
quando eu tiver vontade de urinar eu te aviso.
no que você se transformou?
num espelho. você não se reconhece? sou sua versão melhorada. tenho esta linda e vaga ferida por ti apaixonada.
não fale nesses termos.
ninguém nos pode ouvir.
não é pelos outro. é por mim. eu não aguento mais. mate-me, por favor.
estava esperando você pedir.
____
deu-lhe a maçã na boca.
ele a mordeu. ela segurou seu maxilar num abraço fraterno. eterno.
seus olhos viraram. volveram para dentro. voltaram para fora. não encontraram nada.
ela deu tempo. tinha tempo. não para mastigar. mas para que ele não sentisse sua falta enquanto lhe faltasse o ar.
não saberia escrever se ela chorou ou não. mas enquanto o sufocava deixou que a urina morna de si sobre o pai escapasse. feito criança mijando sobre a família. ela ficou sobre seu colo. enquanto ela agonizava ela simplesmente por ele se enternecia.
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levantou-se. horas depois. a umidade entre os dois ressequida. feita memória.
deixou a maçã sobre o colo do pai. sobremesa aos vermes, pensou.
não. ela disse: sobremesa aos vermes.
e saiu em direção ao quarto,

para recolher os cabelos da mãe.
ventava muito neste dia.

a partir da fotografia de DANI RIBEIRO.
clique sobre a última imagem para vê-la em maior resolução.

2 comentários:

Dan disse...

"enquanto ELE agonizava ela simplesmente por ele se enternecia"... não seria isso?

E novamente: Por quê esse nosso interesse pela morbidez das coisas?

Anônimo disse...

sim. li esse erro ontem e fiquei quieto. pensei. ninguém vai notar. q bom q notaste. agora. não sei responder sua pergunta. é estranho isso........

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