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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

(demorada) Carta aos Filhos (que me cuidaram)


Rio de Janeiro, 07 de Agosto de 2015

Meus filhos,
O pai nem sabe quando foi a última vez que lhes escrevi. É curioso. Não planejava lhes escrever, mas acontece que vocês me vieram e então eu não quis não corresponder. É preciso. Já faz tanto tempo e o pai morrendo e vocês aqui, mais e mais florescendo, porém, sem mão que os guie, sem cuidado meu, meus filhos, o pai se perdeu. 
Mas está aqui. Aqui ele ainda está. Tanta coisa passada nesses últimos sete meses que nem saberia por onde começar. O cigarro aceso é a única coisa que permaneceu indistinta. O pai continuou fumando como se a cada novo cigarro adiantasse mais a vida para enfim morrer sem soluço a me atrapalhar. 
Vocês sabem que com vocês só mesmo o que há de sincero. Por isso escrevo-lhes pouco e comedidamente, afinal, dói bastante ser sincero em tempos como este. Dói demais, meus pequenos, a vida em meio a homens sem franqueza. E o pai sempre se orgulhou, sempre foi franco, mas dói. E é preciso confessar a vocês: minha franqueza abriu abismos e a cicatrização ainda não deu sinal de chegada. 
Confio em vocês. Na confidência aqui explícita, eu confio em vocês. Todos querem amar. E o pai, certo dia, descobriu também esta possibilidade. E o pai foi. E o pai ainda não voltou. Que vergonha. Demanda um tempo - vocês estão vendo - demora um tempo até o corpo voltar a ser corpo apenas. Punhado de matéria. Corpo sem demandas, sem órgãos, corpo solto, sem ganchos nos quais se poderiam prender seres e outras coisas. 
O pai está todo doído. Por isso demorei tanto a escrever. Porque o pai esteve perdido. E se lhes escrevo é porque vaguei bastante desde então. Já se foram sete meses e o pai, vejam, só agora, o pai só agora está criando condição de sair. De soltar, de largar, de cruzar a linha da miséria para de novo e novamente com vocês estar. 
Mudei tanto que minha fisionomia os assustaria, não fossem vocês tão espertos. Vocês me olham com ligeira cara de reprovação. Eu me acostumei com seu olhar. Podem me reprovar, o pai também está se reprovando, no gerúndio o pai também se reprova. Ele se condena, não tem peso, mas ele não se permite fazer poça nem sequer lágrima porque a vida tem dessas coisas. Ela tem. 
E vocês disso sempre souberam. Na primeira vez que os tive, já foi assim, não foi? Falamos sobre o mundo ao redor, falamos sobre tudo aquilo que ainda não sabíamos, conversamos sobre os amigos do papai que haviam morrido, sobre a fome, sobre o desejo, sobre o fim das coisas, nós, meus filhos, falamos sobre tudo o que pode haver: presença e finitude. 
E o tempo passa e vocês em mim reunidos. Eu não sei de mais nada. Mas sei que vocês não me exigem saber. O pai fica chato quando acha saber de alguma coisa. Então sigam comigo, mesmo assim, sigam comigo, mesmo assim, sigam. Eu estou junto e sem vocês eu nem sequer me chego a ser. Eu amo vocês e vocês me fazem ser quem eu sou hoje: e amo ser quem eu sou hoje. 
Exceto pela parte que me foi tirada. Um orgulho me inflama, um ódio retinto, nebuloso, sincero. Uma ira perfeita, sem retoque a ser feito, ira tenaz e duradoura que me dobra o rosto e me faz tomar os caminhos mais arriscados e mais plenos de desespero. O papai mudou desde a última vez. Mas mudou para conseguir estar aqui: vivo. Mudou o papai e vocês ainda aqui, meus fiéis, meus contraditórios amigos filhos inimigos 
Não tenho medo de vocês. Tenho medo do que faria sem tê-los. Depois de vocês uma necessidade em mim se criou e tudo então ficou mais difícil porque aprendi a não ser sozinho. Minhas escolhas incluem vocês. Seus desejos pervertem o meu e meus desejos, quando sozinhos, logo encontram morada em suas feições. 
Que lindo é ser pai de uma tão linda e imensa coleção de francos amigos. Vocês sabem disso, não sabem, meninos? Meninas, vocês sabem, não sabem? O pai só é pai por conta de vocês, meus filhos. O pai só é pai porque um dia se viu na bifurcação única que poderia em um homem acontecer: essa de se perguntar sobre estar vivo ou sobre morrer. 
Vivi e sigo vivendo. Meus filhos, o pai hoje é relento todo delicado. Sem segredo, o pai, hoje, é só por conta de vocês. Havia tirado férias, fui sozinho, bati-me em outros corpos, bebi outras coisas e senti o cheiro de outros mundos. Mas agora, voltando, eu percebo: eu nasci para vocês. Nasci para ver o mundo pedindo arrego por conta de sua ousadia. Eu nasci para que o mundo não se esqueça jamais de mim um dia, mas, sobretudo, nasci para desconfiar da confiança, para duvidar do amor, para envergonhar a guerra, para provocar alternância (seja no curso dos astros ou apenas para atrapalhar o fluxo dos veículos em alta velocidade). 
O pai aprendeu a desamar e isso tudo é meio que por vossa causa. Obrigado, meus meninos e meninas. Obrigado aos que ainda me olham com olhos virados. O pai compreende sua ira (ela é minha também). Um dia as coisas se acertam e seus futuros irmãos saberão disso melhor que nós todos. Eles saberão me reconhecer mesmo quando agora desfigurado. 
É preciso ser muito esperto para sobreviver. E vocês são minha iluminação. Obrigado. Hoje o pai é só a saudade de quando ainda era jovem e tais palavras tomavam menos tempo e pesavam mais leves. Hoje não, hoje nada. Tudo ganhou peso e o peso reside aqui, entre as mãos que me aprisionam no centro vazio dessa casa. 
Eu peso porque existo. E existir é isso: pesar, apenas. Alguns instantes me salvam de tudo isso. E vocês, feito imãs no céu de lata preta, vocês são minha provisória respiração enquanto eu não desmancho e desapareço. 
Por isso, filhos meus, obrigado. Eu sobrevivo só se vocês vierem comigo, me empurrando, dando-me as mãos e me contando os detalhes do futuro que só vocês sabem ler porque ainda não sei ver o adiante. Vocês olham adiante e eu ainda aqui. É o que hoje eu posso, apesar de tanto amar. 
Um beijo quente e daquele jeito, do seu 
Pai.

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