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domingo, 14 de junho de 2009

o calor por sobre as coisas

Abominável, disse Helena diante do bolo meio caído sobre a bandeja de prata.

Abominável... Seguiu olhando com a devida paciência o que lhe causara tão triste impressão. Não era possível detectar. Ao seu lado, de prontidão, Ruth contorcia as mãos. Sempre tão dedicada, como ela pensa que é ser empregado... Ah, se as reticências falassem, Ruth veria certamente o meu desgosto. Será que ela sabe o que aconteceu em agosto? Não estaria escrito na minha cara o nome Desejo? Oswaldo, Oswaldo das tortas, Oswaldo dos doces. Combinava, será que combinaria? A torta, a senhora, não gosta? Não, Ruth. Não posso gostar, era o que queria te dizer, mas dentro algo dificulta ainda mais o meu explicar. A senhora quer que eu lhe traga a outra? Não. Então gostou desta? Não, também. O que faço, dona Helena? Retire-se, por favor. Eu preciso pensar.

Helena sentou-se em seu sofá marrom cor de um bombom. Passou as mãos aneladas com calma e precisão. Dentro o cérebro fritando a existência. Pensou em rugas, em ser veemente. Pensou no marido, ausente. Pensou, pensou e foi traída, pelo nariz que correu meia sala e detectou por sobre a mesa o bolo de nozes com damasco. Helena, Oswaldo não é coisa que se cheire. Não é coisa que se cheire, dona Helena? E essa perdição que te faz tremer as pernas. A mão acariciou o rosto, como se estivesse ali o corpo diante de sua última grande façanha em vida. Chamou Ruth e lhe disse, mande-o entrar.

Veio o moço meio novo meio velho numa bata branca sagrada roupa de quem lida tão bem com a carne e seus recheios. Olhou-a sem sair do lugar, mas por inteiro. Dentro a sensação era o perder da virgindade, de um damasco ou uma amora no meio de um dia quente do centro de uma qualquer cidade. Ela se levantou, dirigindo-se até a mesa na qual o bolo e seu fiel espermeiro esperavam. Ruth, por favor, nos deixe a sós. Certo, dona Helena.

Devagar, ele do outro lado da mesa, ela rodeando o retangular vidro maciço sobre o qual a prata bandeja sustentava o delicado poder do menino. Aproximou-se demais, pensou. O que é demais para quem desmancha o bolo em sua própria calda, perguntou, o que pode ser demais para quem desmancha o corpo do bolo em sua própria calda? Foi um acidente, respondeu meio tímido o ainda respeitável moço que diferentemente dos outros – e do marido – usava um brinco. Acidente? Ela contornou como se não houvesse acreditado. Não acidente que tenha morrido o bolo no rio de seu recheio, mas acidente que tenha caído só de um lado porque naturalmente prefiro derruba-lo por inteiro. Certo... Afastou-se um pouco e sentou de novo ao sofá, visto que corada pela resposta, achou prudente não desfilar diante das paredes muito brancas da sala de jantar. Sentada, reiterou, o que pode ser demais? Além de ter sido deixada em agosto, o que demais?

Ele pegou a bandeja de prata e sem pestanejar com ela em mãos do sofá se aproximou. Quer que me sente? Ela respondeu com um confuso movimento ondular o qual ele traduziu num concreto se aproximar e sentou. Suspirou, o que esse rapaz esconde além da noz? Além dessa bochecha em forma de damasco? Entre os dois agora ele colocava a bandeja prata e fria. Aproximando-se dela ele inseriu um dedo médio no meio do bolo que se cobriu – lentamente – de recheio. Ergueu diante dela o corruptor dos dedos, sempre aquele com fina casca de chocolate meio morno meio endurecido. Avançou preciso sem tremer e desnudou-se já dentro da boca de dona Helena. Em gozo, só conseguiu nisso pensar, dentro de mim deu-me em gozo, eu já não posso agüentar.

Cuspiu-lhe o dedo fora. No olhar do jovem cuca uma leve tonteira e escusa formalização do perdão. Não, disse ela, não... Não seria Oswaldo, o seu nome? Oswaldo, sim, é meu nome. Contratado, Oswaldo. Todos os dias, de sábado a sábado, servido prato completo em meu quarto. A Ruth poderá te localizar os ingredientes, gosto de alcaparras e algo que esteja sempre no entre... Ingredientes desconhecidos também são de interessar. Resta você descobrir o que pode haver de novo para mim no mercado. Levantou deixando-o extasiado. No canto da boca, limpou o dedo anelado, um resquício de preto chocolate endurecido. Agora, enternecido sob a unha.
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