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quinta-feira, 28 de maio de 2009

então a altura das suas sobrancelhas.

Passa um menino e lhe vira o rosto. Ele aceita, não compreende, mas aceita. Retira da mochila uma maça. Põe-se a comer. O menino passa novamente e mais uma vez lhe vira o rosto. Ele digere mal a maça, já não consegue mais esconder. Promete para si mesmo no íntimo que se o outro passa mais uma vez e lhe vira o rosto,

O Um - Oi? Espera aqui!
O Outro (parando sem nada falar)
O Um - Você passou três vezes na minha frente e virou o rosto em todas elas.
O Outro (sem nada falar sugere quem cala consente)
O Um - Você não vai falar nada?
O Outro (não sente necessidade alguma)
O Um - Nada? Não quer nem deixar claro o porquê de me ignorar? Eu te fiz alguma coisa? Não, desculpa perguntar, mas eu te fiz?

O Outro (incapaz de sociabilizar)
O Um - Quem cala consente, é isso que você quer me convencer?
O Outro (cruza os braços e senta-se diante do Um)
O Um - Então, pelo menos, parece querer me escutar.

Olham-se fixos.

O Um - Eu não posso acreditar. Eu fiz alguma coisa, eu sei que eu fiz. A questão não é essa. A questão é: porque você haveria de me ignorar sendo que o que eu fiz é direito meu, você não poderia me incriminar...
O Outro - Eu posso te incriminar.
O Um - Você fala.
O Outro - Quando eu quero.
O Um - Porque vira o rosto?
O Outro - Porque eu quero.
O Um - E eu com isso?
O Outro - Eu não sei. Eu não te vejo. Eu viro o rosto. Você não me importa.
O Um - Mas você vira o rosto, não?
O Outro - Porque eu quero.
O Um - Sim, sim, porque é seu desejo. A questão é: e porque deseja tanto não me ver?
O Outro - Você cansa a minha beleza.
O Um - Ou a minha beleza é que fatiga você?
O Outro (reforça o cruzar dos braços e permanece mudo, calado)
O Um - Eu devo entender que quando você cala quer concordar? Eu entendo isso, é quase um mito universal, quem cala consente, eu devo entender desse jeito? Que a minha beleza é quem tira você do eixo? É tão difícil assim assumir uma postura? Você não se incomoda de andar solto cheio de angústias?

O Outro - Eu não estou cheio de angústias.
O Um - Alguma deve haver.
O Outro - Eu estou cheio de você.
O Um - Isso é ruim?
O Outro - Cheio de você.
O Um - É bom, então?
O Outro - Cheio.
O Um - Nem todos andam por aí tão completos assim. Deixa eu te perguntar, você me ignora porque você gosta de mim?

O Outro (silencia mais uma vez)
O Um - Eu não vou acreditar nesse cala consente, mas vou ter que te perguntar, porque em você as coisas não podem ser mais claras, menos agressivas, você sabe, isso tudo me faz parecer que você me odeia e que quer me ver morto. Você me odeia ou mesmo quer me ver morto?
O Outro - Eu não vou dizer.
O Um - Então me odeia. E quer me ver morrer?
O Outro - Eu não vou falar.
O Um - Ah, não vai?
O Outro - Não, não vou.
O Um - O direito é seu. Mas eu interpreto da maneira que for.
O Outro - Tudo bem. As coisas são assim, naturalmente. Eu também já interpretei o seu olhar faz tempo. Foi ele quem me disse as coisas que me fazem virar o rosto e reduzir, é verdade, um futuro tormento.

O Um - Oi, como é?
O Outro - Você entendeu.
O Um - Não, não entendi.
O Outro - Tudo bem, nem tudo na vida faz sentido.
O Um - Eu quero entender, não faz isso comigo!
O Outro - Não faço desde que controle então a altura das suas sobrancelhas.
O Um - Elas estão altas?
O Outro - Agora parecem mais calmas mas quase sempre me induzem a me esconder sob a mesa.
O Um - Que mesa?
O Outro - A do recreio.
O Um - Controlar a altura das sobrancelhas.
O Outro - Elas me assustam, é verdade.
O Um - Eu posso tentar.
O Outro - Controle.
O Um - Sim.
O Outro - E quem sabe assim, um dia eu possa te olhar, sem medo de temer.
O Um - Eu assusto você?
O Outro - Assusta sim. Agora você pode entender.

Parte o Outro ruma a outro destino. O Um fica ali sentado pensando num futuro não muito longínquo. Pensa por um segundo se deve usar trema ou não. Não chega a nenhuma conclusão. Percebe a sobrancelha mexendo e se concentra para evitar sua elevação. Ele a controla. Ele sustenta uma paz possível ao seu semblante. Nas mãos, uma maça amarelada espera ser comida. Será?
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