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sexta-feira, 3 de abril de 2009

Farpa

Estava sentada. O olhar vidrado. Nunca percebera como era imenso um simples ponto a sua frente. Fechou os olhos. O vazio que lhe preenchia tornou-se maior, sentiu pena de si mesma. Impossível. Pensou. Não se pode sentir pena de si mesmo. Não se deve nutrir tão pouca esperança para um ser, seja ele quem for. Tornou a abrir os olhos, então. Dessa vez, espiou ao seu redor, assegurando-se que ninguém havia presenciado aquele momento tão seu. A grama era fofa demais e, além do mais, seu pai havia regado toda ela logo de manhãzinha. Ainda podia sentir o cheiro do mato molhado. Pôde até sentir-se criança outra vez. E olha que a janela ainda estava fechada. Ademais, não se daria ao trabalho de levantar da cama, abrir a janela, para em seguida, jogar-se dela. A grama era fofa demais, refletiu. E o tempo para cumprir uma tarefa como a dela deveria ser o mesmo de quando um copo se quebra, se espatifa por inteiro. Tempo sem hesitação. Tempo que antes de ser presente já é passado. E ela tinha tempo demais. Antes que a mãe gritasse para que ela fosse tomar o café da manhã, pôde até se lembrar que o seu quarto era no segundo andar. Pouco provável. Levantou-se e saiu do quarto, em direção às escadas.


Usava duas meias nos pés. Duas em cada pé. O piso de madeira corrida, mesmo não sendo frio, lhe dava nervoso. Uma vez, quando ainda era criança, corria descalça pela casa, até que uma farpa tornou-se parte anexa do seu pé direito. Tinha a marca até os dias de hoje, só que agora, era ainda maior, pois crescera estranhamente junto com seus anos de vida consumidos. Desde esse dia, aquele em que se machucou, levantava da cama com o pé da farpa. Mas na manhã desse domingo, acordara certa que o seu pé direito, na verdade, correspondia ao esquerdo. Caminhando em direção ao andar de baixo, contemplou os tapetes do corredor como se fossem algo novo. Alisou suas paredes como se procurasse sujar-se de uma tinta recém pintada. Estava perdida. Poucas vezes esteve tão preenchida de vazio como estava agora. Parou, de súbito, no topo da longa escada. Seria cinematográfico, pensou. Mas eles não entenderiam. Achariam que foi um tropeço, poderiam nem notar, até o momento em que se incomodariam ao perceber a cachoeira cor de acerola que meu sangue criaria ao jogar-se pela escada sujando as paredes e todo o caminho à frente. Seria doloroso? Mas, o que é a dor agora? A vida se resume em dor. Dor sem faca. Dor sem rasgo nem bala. Em dor tudo termina. Não temo mais nada senão as farpas do assoalho. Segurou com uma das mãos o corrimão. Quando viu, estava no andar inferior e o cheiro do café acentuou a sua confusão.


Sentou-se à mesa. Não era um café da manhã em família. O irmão passou rápido, encheu a caneca de café e partiu sem adoçar. Nunca havia notado que ele gostava de café amargo. Percebeu, além do gosto do irmão, que sua atenção estava voltada para as pequenas coisas, aquelas que estão ali o tempo todo e que não são vistas, mas que, nem por isso, se cansam de ser iguais todos os dias. Como uma teia de aranha que, pelo tamanho, há muito deveria existir. Na porta da cozinha para o quintal. Ou então, pequenas coisas como ela mesma. Pegou uma xícara já desistindo de tomar café. Bateu a ficha do turno matinal com uma torrada murcha e fria. Torrada abandonada no prato de alguém que já havia saído. E o seu sabor era melhor do que a aparência poderia sugerir. E olhando para o vidro com a geléia de morangos, supôs que seria muita falta de estética largar-se ali, sobre a mesa do café, perfurada pela faca suja de geléia, em meio às migalhas de uma baguete qualquer. Seria apenas mais um ingrediente para a mistura do cachorro, que no domingo, acordava sempre mais cedo na ânsia de receber algo em troca pela entrega do jornal que só acontece nos filmes. E nem gostava de morangos. O problema era a cor, mas ter a mesma cor não significa nada. Sangue tinha gosto de ferro. E o que ferro tem a ver com morangos? Não sabia responder. Nem sequer lembrava-se do gosto daquela frutinha tão delicada. Tinha nojo. E, novamente, sentiu pena de si mesma. Como podia ser tão inconstante?! Pensar em sangue para, em seguida, lembrar-se de morangos. Ouviu um estalo vindo da sala. Continuava perdida. Saiu da cozinha, mas não havia ninguém por perto.


O café lhe acordara. Tingindo cada linha de suas quatro meias, o líquido quente e negro atingia também a sua fina pele, que se retorcia, incapaz de socializar-se com algo tão profano, tão clichê. O irmão surgiu com um pano branco, recolhendo os cacos sobre os quais ela apenas fazia-se leve. Evitando cortar-se, retirou-se de cima deles. Em seguida, uma a uma, as meias foram deixando os pés que agora estavam despertos, respirando como seres anexos. Três meias em uma mão, as mais encharcadas. A outra restante, presa no segmento esquerdo, mais tarde, passou despercebida diante do sangue que escorria do pescoço estreito. Não era para ser sobre a grama. Não era para ser do seu próprio quarto! A corrida sim começaria nele, mas o salto, o salto somente através da janela de outro quarto, do outro lado, depois de cruzar o corredor das fictícias paredes recém-pintadas. O quarto do irmão do café amargo. Aquele que quebrando a xícara em mil pedaços deu sentido à irmã em desamparo. Mas era insuficiente. O coração bombeava o sangue desenfreado, que quando tem platéia, recipiente, sai como se fosse o líquido de um chafariz restaurado. O sangue sai. Seja pela porta da farpa recém tirada. Ou pela memória de uma criança abandonada. Sai também das classes burguesas, ou não. Das casas mobiliadas, ou não. Enfim, ele sai. Mas, preferencialmente, através da estrada esburacada de um corpo oriundo do salto sacada-chão. De concreto. Sujo de óleo do automóvel que saiu discreto. Na manhã de um domingo qualquer, o sangue sai como um café expresso. E o que resta é um corpo sujo e frio. E nada há mais.


2006.

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