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quinta-feira, 9 de abril de 2009

Conto aos pedaços

O morador de cima aproximou-se da janela de sua cozinha. Era manhã recém-nascida. O sol ainda tímido já queimava os corpos expostos no quintal do andar de baixo. Encheu sua xícara com o café de sempre e avistou, sem muito se surpreender, o filho mais moço da dona mais velha. Estava ele ali, sentado numa mureta de cimento mal passado, o filho mais moço sentado com as mãos dentro do short desbotado.

Recuou-se, não era necessário. A manhã invadindo-o em sol e já no primeiro andar os corpos enlouquecidos pelo calor. Pensou, isso não pode ser normal. Tomou seu café, o som da sala ligou. Aumentou a música - não seria uma manhã de protesto. Seria manhã amena na qual a vida transcorre plena sem tropeços ou sustos. O som ligado, a música invadindo banheiro cozinha e quartos.

Ouviu então, certo de que não era música, um grito, uma coisa grave, alguma coisa muito bruta. Seguidos os gritos, eram gritos, pensou. Seguidos, impossíveis de se decifrar, se era alguém que morria ou alguém que se aprontava para matar, não saberia dizer. Mas um grito consome a pele o grito consome o corpo e nada fica ausente nada pode permanecer o mesmo quando grita um outro. O som ligado emudeceu. Por um segundo, o colapso que vinha de fora de sua casa, de dentro, ameaçou sua permanência.

Voltou à cozinha, devagar foi até a janela e diferentemente do que sempre via, as mãos agora do filho mais novo moviam-se com real transtorno dentro do short desbotado. O corpo do menino mais moço do filho da mulher velha agora se debatia e não via horizonte a sua espera era corpo constante em sua tentação. O que faria ele ali olhando, que sol era esse que queimava o pudor que o lançava para fora de casa, no meio da perdição dos corpos - alheios?

Passou a mãe cambaleante. O filho persistindo no afundar do corpo no externar do desejo. A mãe cambaleante saiu de baixo da janela e avançou firme trazendo as mãos do filho para fora. Puxou as mãos do filho disse meia dúzia de palavras tortas que não diziam nada e o filho respondeu batendo a própria cabeça contra a coluna do mesmo cimento mal passado.

Uma panela voou por baixo da janela do morador de cima. Uma panela depois pratos depois uma mulher em cima. Cambaleante ela se ergueu novamente e era agora fielmente levada à mãe velha e cambaleada, entre o tirar das mãos do filho de dentro da calça e o segurar do grito inevitável que na outra já se anunciava.

Um grito. Foi o que ele fez. A xícara vazia rachando na própria mão. A mãe partindo o braço do filho teimoso. A filha fazendo em fatias o rosto da mãe medonho e velho e jocoso. Morreu pelo grito a fulana enlouquecida. Morreu pelo grito que a consumiu inteira. O filho com o braço torto voltou ao entre-calça. A filha com sangue no rosto voltou para dentro de casa. No chão, caída, o rosto desfigurado sangrando veemente um sangue vermelho-desesperado, a mãe velha olhou para cima e compartilhou com o morador do café o desespero concretizado.

Era a normalidade reinventando-se para ser em si o próprio colapso. Era a música vindo da sala e homogeneizando os traços. Tudo fazia parte de mais um dia de outono, tudo parte de mais um dia de calor extremado.
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