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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"A Máquina de Abraçar"

ou aquilo que as palavras não podem explicar.

Não escrevo aqui uma crítica. Escrevo poesia, até porque sou todo confusão. Sou mesmo meio heteróclito. Sou meio mesmo. O que tento aqui é regar a avenca para fazer germinar sentidos. É girar a cadeira para sentar de volta à mesa e poder me aprumar, a tempo de condenar a diferença  e nela ir me vendo transformar. Que espetáculo esquisito. Estranho. Potente. Não saberei dizer o porquê. Deixo a missão na boca das imagens que em mim desesperadas precisam correr, vazar.

Dra. Miriam pode soar artificial. Poderíamos dizer que ela está tons acima. Mas acima do que? Eu diria que acima desta nossa naturalidade, desta nossa realidade acostumada. Em comparação a esta, ela não é mesmo humana, porque se movimenta como se perscrutasse algo em nós, como se já indagasse de antemão: o que vocês estão olhando em mim? Por que essa cara de estranhamento? Ela é teatral. Meu deus! Ainda bem. Pois que assim seja. Eu ali diante dela sentado não conseguia não pensar: ela é artista, quer dizer, autista. Ela não sabe bem como se portar. Ela domina a linguagem, os conceitos, tem a bibliografia, mas seu corpo range a cada esquina. É como se ela se fizesse de ameaçada para me ajudar a reconhecer em mim, a minha capacidade de ameaçar. Ela ali diante da platéia lançada. Tendo que se consumir ao tentar dizer sobre algo que talvez eu já não queira mais compreender, porque meus olhos estão abertos - como os dela - atentos as nossas diferenças, atentos ao que possa haver entre nós de semelhante. Os olhos tão abertos da atriz, incapazes de conter a alma dentro dela revolvida. Alma da atriz incomodada com a sua dificuldade divina: a de ser outra e outra igual sempre e mais a cada dia. Talvez ela seja mesmo autista, quer dizer, artista. Por ter me feito perceber aquilo que dentro de mim me adormece e me aniquila. Artista o suficiente para me fazer perceber em mim alguma divindade querendo ser. Ser divino é ser humano chegado ao limite... Do outro. Ser humano chegado ao limite de outro ser. É ser prenhe de abraços.

E eis que a configuração do espaço italiano traz novas camadas de relação ao espetáculo. Havia assistido uma apresentação na primeira temporada, que inseria os espectadores entre dois palcos italianos, costurados por um corredor no qual as personagens transitavam. Neste espaço agora, a primeira forte relação criada é a do espaço enquanto teatro. Do teatro enquanto edifício da arte. Olhar para a luz significa ver o refletor? Rotular a platéia de heteróclita é também ironicamente atentar para o fato de que a platéia está brutalmente homogênea, incapaz de ser outra coisa que não apenas observadora? Platéia incapaz de ser outra coisa que não comensal. Seres que se alimentam ali no escuro, mas com o pudor-guardanapo de não ferir quem ali  sobre o palco se expõe. Triste, enfim, porque quem se expõe se expõe talvez para ser digerido. Quem se expõe o faz talvez por um tomate, por um ingresso vendido (e não amigo), por um abraço, que seja. Um abraço que seja outro que não aquele que não vem.

Por isso inventam-se as máquinas, mais uma vez. No caso, a tal máquina de abraçar. Que também não vem, porque é pretexto para exigir de nós sua funcionalidade. Chega do racionalismo que nos dividiu em mil metades. Estamos escrevendo agora manuais de costura. Ensinando o ser humano a se coser de volta. A ir pela soma e não mais pela divisão: vir-a-ser. Chega dos sintomas, dos diagnósticos, vamos partir para a hostilidade dos amassos. Para descobrir nos apertos o nosso real embate, nossa vitalidade. E quem a isso se dispõe, aprende pois a amar as plantas. Aprende a amar o giro, sobre o próprio eixo, aprende a valorizar o grito, por vezes espremido, por vezes expremido. Sim. Eu choro quando vejo alguém assim se revelando. Eu choro porque dentro de mim ecoa mais que choro, ecoa um canto. Quase uma ode a um fim comum.

Deixe-me perder. Ter consciência disso me faz avançar. O objetivo não pode ser mais encontrar. Porque os abraços também se vão. Até quem mais tem fome pode da comida enjoar. Pode recusar o abraço, pode diante dele não se estremecer. Por vezes me parece que quem mais precisa de amor é aquele ser que perde horas a fio tentando sobre o amor escrever. Os seres em tentação, em repetição. Os seres de Pina Bausch vagando redundantes dentro do café, que os mantêm de novo e mais uma vez eretos, de pé, na busca, na  busca, na persistência das poças (que são incompreensão).



Estamos tão próximos, mas tão distantes. Sinto que a montagem é delicada, sinto que ela mesma se joga numa constelação de problemas. E eu os amo. Porque da mesma forma que o espetáculo me requisita enquanto uma platéia num congresso científico, da mesma forma ele me repreende dizendo ser teatro, dizendo ser artificial. E pelo choque destas linguagens, multiplicam-se as sinceridades. Eu duvido que eu seja platéia num congresso específico para no correr do tempo nisso também me reconhecer. Eu me lanço ao espaço teatral, me abro as suas engrenagens e elas acenam de volta, como que por diversão, como que por necessidade. Dizemo-nos: é preciso falar. Comunicar-se. Porém, enquanto um fala para compreender, outro fala para... Para o outro antes do que a si mesmo.

Destinatário. As ferramentas em conjunção me fazendo confundir autismo com teatro. O som gritando me fazendo ecoar o interior. As partes se chocando e me convidando a se debater: que chato o público prostrado olhando para a gente que virava para trás para jogar de ceder. Que insuportável sua imobilidade. Uma falsa estagnação. Não como a das plantas. Não. Estagnação resignada. Eu sentado na primeira fileira virei para trás, para acompanhar a discussão, eis que um casal envelhecido pelo hábito permaneceu olhando para o palco. Eu ali vivendo a discussão entre as atrizes entre as personagens abraçando o público e os dois espertos mirando o meu rosto e comentando meu choro. Eu não sei se falaram sobre a minha juventude abobalhada ou se reconheceram neles mesmos a sua maturidade estupefata. Sei que num gesto o senhor passou a mão na secura de próprio olho e eu fiz questão de correr do meu ainda mais alegria.

O espaço puxou a atenção por sobre esta platéia tão distinta. E ele é o que é, não precisa recriar novas paredes, não precisa filmar o ângulo da atriz na cena tal específica. Estamos vendo seu rosto, porque mesmo volvido ao céu, o céu do teatro é todo teto, nele o som bate e se multiplica em nós. Pela voz eu senti o aperto do abraço da mãe. Eu não precisei contemplar uma bidimensionalidade feita de luz, porque havia o corpo humano da atriz ali se desfazendo, nos iluminando.



O texto de José Sanchis Sinisterra é extremamente forte. A partir de todo o falatório da Dra. Miriam, vamos construindo os muros que o decorrer do texto se encarrega de quebrar. Primeiro ergue-se o defunto, com brilho e esmero para que diante dele possamos concordar, assegurar nossas certezas. Mas depois, e depois, é por um toque ameno que o edifício despenca. E vemos por entre os escombros o que enfim possa ser a liberdade. Ele fala do autismo dela. Ela fala do autismo nosso. Ela, Íris de Souza - que está em tantas e tantos - nos repete e nos reflete. "Você está tranqüila? Quer que a gente comece agora?”, diz Miriam. “Você está tranqüila. Quer que a gente comece agora. Estou. Estou tranqüila. Quero que a gente comece agora”, diz Íris a nos devolver.

E então as repetições começam a dizer mais do outro do que de si próprio. O que Miriam expõe de seu método é pouco perto do que Iris expõe ao repetir suas indicações, seus freios, suas observações. É estranho, porque nisso coexistem valores distintos. E a nossa tendência é culpar ou livrar o outro. Mas é preciso pausa. É preciso conter a classificação. É preciso ser texto entrecortado por suspiros.  Deixemos então as reticências respirarem. É preciso, de vez em quando, ser monólogo de Lucky em Esperando Godot. Monólogo que de tão claro, de tão genuíno, dá nó na incompreensão. Torna-a pequena diante da nossa inata complexidão. Ao término, aquela que julga é tanto quem julga quanto o ser julgado -  e não adianta passar o batom - porque estamos ali, com a ausculta aberta. Ou talvez, estejam as atrizes com o peito extravazado.

Neste mês de janeiro de 2010, lancei-me a especular sobre a linguagem. Por sorte reencontrei no meio do caminho esta máquina de abraçar. Este engenho que me fala e que me revela o tempo e a intensidade. Esta máquina-espetáculo que sinaliza às existências que precisaram inventar um aparato para controlar o tempo e a intensidade do contato. Máquinas inventadas para suprir a falência da máquina-humana. Para sinalizando este absurdo, tentar nos fazer reconhecer o colapso de nossas próprias engrenagens.

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A MÁQUINA DE ABRAÇAR
De José Sanchis Sinisterra
Direção de Malu Galli | Com Mariana Lima e Marina Vianna
De 19 de janeiro a 10 de fevereiro de 2010
Terças e quartas às 21h
Teatro do Leblon
     

3 comentários:

TUA FILHA GOSTA~ disse...

morri de rir com o vídeo ALGODÃO CRU.
pois é. venho aqui todo dia e não tinha assistido ainda.¬¬

como vc é maluco, dioguito! e fofo.
os prêmios são merecidos!

"eu perdi 2 quilos, eu perdi fios de cabelo, eu perdi minha dignidade, mas ganhei 16m de algodão cru". hahaha

e essa fala: "ela não pintou meu algodão, ela não manchou de café, ela fez TEATRO com o meu algodão".

vc é assim~ :* eu-adoro.

TUA FILHA GOSTA~ disse...

"ela NÃO fez teatro"***

TUA FILHA GOSTA~ disse...

melhor parte:

"o espetáculo me requisita enquanto uma platéia num congresso científico, da mesma forma ele me repreende dizendo ser teatro, dizendo ser artificial."


às vezes me sinto tb meio boba numa platéia de teatro. ainda quero falar disso contigo. a consciência do artista qd coisa.

:****

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