Uma rua de asfalto concreto. Vizinhança. Diante de cada casa o seu morador jaz desperto: Dona Ivone, mãe sozinha cujo filho partiu ligeiro após uma breve visita e Duda, jovem menina que em plena sacada fala ao vento à espera de um abraço ou companhia.
Baque surdo de corpo batendo no chão. O homem que caminhava pela rua resta agora caído. Os olhos nublados escurecem e voltam a enxergar. Eis então que uma outra moça surge no céu de sua vista e ajoelha-se sobre ele para ajudar,
Acalme-se, eu vou chamar ajuda! EU NÃO ME MACHUQUEI. Mas a sua mão... EU NÃO SINTO DOR. Mas tudo nela está contorcido... SÃO AS CARTAS. Cartas sangrando? CARTAS CHAMANDO. O quê? VOCÊ ME AJUDA? Eu vou chamar uma ambulância. NÃO! O QUE EU PRECISO É ENTREGAR ESTAS CARTAS AINDA AGORA. Mas o senhor acabou de ser atropelado, precisa de socorro... O SOCORRO JÁ CHEGOU. É a minha obrigação... ESTAS CARTAS NÃO PODEM ESPERAR. Como é? ELAS PRECISAM SER ENTREGUES JÁ!
E como se quisesse mostrar seu bem-estar, ele ergue o braço deitado sobre o asfalto e acena com algumas cartas machucadas. A moça entende o seu pedido. Retira as cartas com cuidado de sua mão e coloca-as sobre o próprio colo. Do emaranhado de pedaços, ela contempla,
Uma partida ao meio. ABRA-A! Você costuma abrir todas as cartas que entrega? É MEU DEVER FAZER COM QUE CHEGUEM SEGURAS AO SEU DESTINO. Este já perdeu uma metade. POR ISSO É PRECISO ABRIR. E como saber o que se perdeu? VOCÊ TALVEZ NÃO FAÇA IDÉIA DO QUE AGORA ESCORRE PELAS SUAS MÃOS. É só uma carta! NÃO FAZ IDÉIA DO TANTO QUE DEVE HAVER AÍ DENTRO, DO TANTO A SE PERDER NESTE EXATO INSTANTE. Tudo bem, já entendi. Eu vou dizer: é para Dona Ivone, que eu sei, mora ali adiante. Deve ser carta do filho, hoje distante. Pois diz assim,
Enquanto Dona Ivone, em sua casa, dobra e desdobra algumas mudas de roupa deixadas pelo filho, a moça vai lançando suas palavras que através do vento chegam à mãe,
[...]
E por pedir asas que me fizeram voar para longe que hoje estou assim. Quis partir para conhecer. Agora, porém, já não posso voltar, pois virei gente grande. E que triste, às vezes, é esse crescer, mãe. Fiquei tão sem graça, tão sem cuidado. Por isso às 23h17min, quando o ônibus apagou-se, eu apenas chorei por não ter te amado mais. Chorei por não saber aproveitar esse tempo que só avança e...
Eu só queria te abraçar.
Do seu, Filho.
Dona Ivone abraça-se a uma camisa do filho. Sob o peso do amor, a mãe apenas sente saudade. Com a carta partida na mão, a moça já não duvida de sua missão. Precisa fazer chegar ao destino cada carta ferida,
Por isso ela pesa tanto? É PURA SAUDADE. Que já não cabe nem mais no peito, por isso... É PRECISO FAZER COM QUE VOE. PARA ENCONTRAR NO DEVIDO PEITO EM FALTA O SEU LAR. ENCONTRE O OUTRO PEDAÇO!
Ela procura, mas não acha. Na sua busca, porém, outra carta se mostra ainda mais desesperada,
ESPERE! ESSA AMASSADA. Parece preste a se romper... O que eu faço? Tudo bem, eu devo abrir. Há uma folha aqui dentro! ENTÃO LEIA, DEPRESSA! Mas é uma folha! MELHOR ASSIM, LEIA! Não, não é simplesmente uma folha, mas uma folha de árvore. O que eu faço? SOLTE-AS NO AR. Quem?! AS PALAVRAS QUE DELA DESPENCAM. PALAVRAS SÃO O QUE SÃO, POIS NASCERAM PARA VOAR. DEIXE-AS ENTÃO PARTIR OU VÃO MORRER... Isso não é possível! ENTÃO EXPERIMENTE OLHAR DE PERTO. O QUE VÊ?
Dentro de seu quarto Duda estaca. É sentindo um pesar, uma agonia, que ela avança até a janela e a escancara. A moça das cartas, por entre veludos e nervuras da folha sentida, retira dela palavras que aos poucos chegam voando até a janela da menina,
Duda
Não exato o que dizer
deixar-me-ei aos sentidos,
imprecisos que enganam a mente
mas únicos que validam tudo
quando tudo despenca rumo ao chão.
Talvez porque não quisesse outra vez chorar, Duda contemplou firme o céu, não para fazê-lo despencar, mas tão somente para respirar. Sentia-se sozinha e precisava de ajuda, sobretudo se ajudar. De longe, vinda pelo ar, a voz da moça veio-lhe acariciar,
O que é distância?
Talvez espaço da saudade.
E assim
resta-nos o homogêneo ar
que é seu aí
e meu aqui
e no meio
entre os dois
ainda há o vento
que me leva até você
e me faz aqui te receber
De súbito, porém, a menina entra para o quarto e, em seguida, volta à janela. Está agora coberta por um casaco que não parece ser dela, mas que ainda assim a completa. O rosto para além da janela, os braços apoiados no parapeito e em silêncio, a menina em meio ao vento nisso está se refazendo,
O vento
é o espaço do encontro.
E se quiser te surpreender
chamo a brisa
que vai mansa
e te avisa:
alguém passou aqui, por você
somente por você.
Pois é a brisa
o espaço do abraço.
E num impulso, a menina desatou a falar. Foi como se devolvesse à moça que lia na folha, as próximas palavras que ela naturalmente iria pronunciar,
E se mesmo assim eu sentir que o beijo falta, eu chamo a chuva, não é? E ela somente te encontrará se você, possível, ultrapassar a janela e restar sob o teto do céu. Intacto, os pés na terra, olhos no luar. Não foi você quem me disse que é a chuva o espaço do atravessar? O tempo, as lágrimas, os amigos, sentidos, o corpo e os sorrisos. A chuva é a intersecção entre nós e quem tem asas, entre eu e você.
A moça então, num último esforço, achou espremida já no limbo da folha prestes a falecer, um grupo de palavras precisas. Pondo-se finalmente a fazê-las chegar ao peito da jovem menina,
Por isso
quando distanciar
faça chover
e apenas
respirar.
Não se sabe se por doer ou amar ou se por sorrir ou sofrer, mas Duda aqui se debruça sobre si mesma e derruba um pequeno vaso de flores que da janela de seu quarto atinge o chão concreto da rua de asfalto. No exato instante, a moça das cartas revela,
Encontrei! A outra metade da carta a Dona Ivone. COSTURE-A!
E num silêncio, ambos concordam em entregar o resto daquela carta. Pois depois de tantas vezes dobrar e desdobrar as roupas do filho, Dona Ivone agora se ocupa em ir até a caixa do correio e pôr-se a abri-la e a fechá-la. Nunca há nela carta, porém, já exausta, a mãe decide que talvez seja melhor deixar a caixa aberta. Então volta até a entrada de casa e acende ao filho uma vela. E é neste instante que pôde ouvi-lo lhe dizer,
Mãe,
Às 23h17min a luz apagou-se e eu pude, enfim, selar os olhos para o destino que as lágrimas viessem a lhes dar. Segui chorando noite adentro por ter deixado alguém amado para trás. Como coisas que crescem sem que a gente veja, algo surgiu dentro de mim. E na cabeça, aquela dúvida do não saber quando nos veremos outra vez.
A chave sobre a mesa, a mala no chão do quarto. Eu me aborreci procurando uma camisa para começar o dia. E nem percebi que o dia seguia sem mim. O que eu realmente queria era voltar. Aqui está amanhecendo e hoje não é só a mãe que não dormiu pensando no filho. Eu também não dormi, pensando no quanto eu te amo.
Duda agora está na rua. Saiu de casa para refazer o vaso desplantado. E nesse ato de germinar uma flor, veio-lhe novamente a necessidade de falar ao vento,
Saudade para mim já mudou de nome, sabia? Culpa sua. Agora se chama uma coisa que sequer foi inventada, pois a cada palavra tentada, no segundo adiante ela já se torna antiga, ultrapassada. Sabia que em inglês não existe saudade? Lá eles sentem falta. Só isso. Não tem esse peso que a gente dá às coisas. Eu confesso que eu já perdi a vergonha. Isso de conversar com você. Eu que não vou ficar calada enquanto as coisas aqui dentro querem acontecer. Eu falo! O que fazer? Nasci falando. E também acredito que as palavras têm asas... Tenho pensado tanto em você. Onde está. Como vai. Conseguiu o que queria? Era mesmo algo para se conseguir ou foi apenas vontade de voar, de viver? Que vergonha, esse casaco eu roubei de você.
E agora, nesta rua tão sólida, seus moradores estão todos para fora. Em meio ao vento, cada qual matou um pouco da saudade sentida. Dona Ivone, diante da caixa do correio, escuta o filho que não precisa de cartas para dizer eu te amo. E Duda, diante da porta de entrada, encontra no replantar da flor um breve destino para a sua saudade acumulada.
E ESTA ÚLTIMA, PARA QUEM É? É para mim. NÃO VAI ABRIR? Pode estar nela um fim. Ou um começo. DEPENDE DE COMO SE LÊ. Depende do que eu preciso neste momento. E DO QUE VOCÊ PRECISA? Eu preciso abrir, de qualquer jeito.
A moça das cartas abre a sua e irrompe-se numa gargalhada que diz tudo e nada, ao mesmo tempo. Num sorriso pleno que, ao mesmo tempo, parece servir para toda a vizinhança.
Cena da peça AO VENTO, de minha autoria, criada em 2007.
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