Insatisfeito consigo mesmo ele desceu novamente as escadas. Sentia-se óbvio, desprovido de qualquer tentativa que não fossem as mesmas. Por isso, fez de novo o café, de novo o fez jorrar para dentro da mesma caneca (que de dentro já clamava pelo mesmo café). Parou um segundo e pensou novamente entristecido. Eu sou triste. Eu sou redundante. Eu já sou isso.
Sentou-se no banco amarelado do quintal. Via na rua o transitar dos carros e das pernas. O café o acompanhava enquanto a cabeça tranqüila lhe assegurava a espera. Esperou mais um pouco. E veio. Sinalizou sacudindo o embrulho na mão. Ele se levantou. Entrou em casa e apoiou a caneca sobre o primeiro móvel. Saiu, a porta já aberta, saiu e foi até o moço do boné.
O senhor é... Eu não sou senhor... Ítalo... Não precisa dizer o nome, eu não gosto. Bom, certo... Essa pessoa mora aqui? E estendeu o pequeno embrulho em direção a ele que sem olhar disse que sim. Tem certeza? Eu disse que sim. Então assina aqui, por favor. Pode rubricar? Não, por favor, assina como é na sua identidade. Eu não tenho identidade. Então você poderia chamar alguém? Eu estou só em casa. Então eu volto outro dia. Eu assino. E o fez. Certo. Certo, disse o entregador meio querendo rir meio querendo debochar da grande revelação que tinha sido descobrir que o menino da assinatura era o próprio destinatário. Certo. Você me daria um copo d’água?
Os olhos pararam. O filtro da cozinha quebrou. Pode ser da pia. Não se bebe água da pia. Eu bebo. A pia também quebrou... O filtro e a pia são uma coisa só. Certo. Eu fiz café. Café? Café. Café. Você quer. Eu acho que sim. Você se importa? Não. Fui eu quem fez. Avançaram em direção à porta de entrada.
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O menino insatisfeito ganhara dois embrulhos naquele dia. Um dentro do qual já sabia o que tinha. Outro que secretamente desejava que fosse mais determinante que o primeiro. Você precisa tirar os sapatos para entrar em casa... É um costume. Você está calçado. Eu sou de casa, você não. Certo. É com visitas. Você não é visita. Tira. Minhas meias... Também as meias. Certo. Agora pode entrar, disse ele depois de ver os pés do homem se desamassando para voltarem a respirar sobre a madeira corrida e polida.
Seus pés estão suados. Eu posso limpar. Não disse isso, disse que seus pés estão molhados. É suor. Eu sei. Eu trabalho andando. Eu sei. Certo. Os dois se olharam. Havia um não saber tão genuíno naquele encontro, que ambos talvez tivessem pensando, não há mal algum em levar isso adiante. E não havia. Olharam-se mais um tempo e o menino da casa seguiu em direção à cozinha, parou e voltou. Pegou sobre o primeiro móvel sua caneca e voltando à cozinha a completou. A caneca. Devolvendo a pequena garrafa de vidro esvaziada à cafeteira elétrica.
Quer sentar? Toma. Obrigado. Eu usei a minha caneca porque não quero sujar louça. Não tem problema. Você não tem nojo? Não de você. Por quê? Porque você é gente, né? Assim como eu. Certo. Talvez sim. Ele aproximou a caneca da barba, depois a boca e por fim – não havia trecho em branco no qual pudesse pousar os lábios e descer o café – a sede. Não tem açúcar. Eu não sei onde fica. Você mora mesmo aqui? Não. Perdão, disse o do boné afastando a caneca da boca, o senhor poderia me mostrar sua identidade? Depois. Eu não posso fazer uma entrega urgente para uma pessoa que não aquela destinada à entrega. Sou eu. É para mim. Sou eu. É meu. Eu quem pedi, eu quem fiz a compra. Você só entregou. Pode abrir, você quer abrir? Eu sei o que tem ai dentro.
Eu não vou abrir. Pode abrir. E se você não souber o que tem? Eu sei. Tem um presente de aniversário. Para você? Sim. Para mim. Eu me dou meus presentes. Eu faço aniversário hoje, obrigado. É sério? Sim, aniversário é aquela data na qual você nasceu e que todo ano se comemora novamente, mesmo quando não se sabe o motivo. Você está comemorando, pelo visto. Comprou presente e tudo. E tudo o quê? E tudo é o que se costuma dizer. Eu não digo isso. E tudo quer dizer que você está fazendo tudo para o seu aniversário. Ah, sim, de fato. Eu comprei presente, agora com você estou brindando a minha vida e em seguida, c’est fini.
Quê? Eu disse que em seguida se acabou, é o fim, ponto final. Entendi. Obrigado pelo café, eu não posso demorar mais. Pena. O que foi? Você ouviu. Você disse pena. Pena. Eu não posso ficar mais, apesar de você ter sido gentil comigo, as pessoas quase nunca são, às vezes nem água nem obrigado nem nada. Você me serviu café. Obrigado, mas não posso demorar. Eu disse que o presente que me dei é uma pena. Uma pena?! Sim, daqueles que se usa para escrever. Que nem nos tempos antigos. Isso. Legal... Você escreve?
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E então ele abriu a caixa. Retirou a pena. Deu ao outro. Este a olhou durante certo tempo. E depois se olharam só os dois. E o que estava com a pena, segurou-a com uma mão enquanto o outro braço estendia-se até a frente. Comprimindo as mãos, fez o sangue correr pelas veias e sim, ia começar mais um de novo novamente. O outro só via. Era único, não era caso para segurar o fluxo do outro já tão assim declaradamente decidido. E então perfurou aqui nessa região perto do pulso. Perfurou lento e fez-se em córrego o sangue vermelho tão preto de tão escuro. Fez-se sangue em silêncio e os dois se olhavam, meio que se encontrando ali juntos naquele momento único que se perderia dentre alguns segundos. Logo após o bater de algumas gotas sobre a madeira branda da sala.
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O carteiro foi até ele e desperfurou seu pulso. Com força apertou as mãos sobre o furo e tentou reter o sangue já tornado cicatriz novamente. O jovem estacou no meio da sala enquanto o do boné tentava tirá-lo de casa. Eu estou bem, mas pode continuar a me apertar. É bom, me dá sono, vai sarar. Nos olhos do outro o seu semblante foi se aproximando e virou abraço. O furo agora seguro entro os dois peitos sem pingar nem doer. A camisa amarela e o boné suado frente à surpresa de ser único cada segundo ali compartilhado. Disse ele ao ouvido do desconhecido uniformizado, eu fiz uma tarde ser nova, ainda que muito igual. Você não precisa?... Eu estou bem, mas se você quiser ficar, eu posso pegar água da pia do banheiro e deixo você me fazer um curativo. Você é quem fez a diferença, no final das contas. Você é quem me fez a diferença. E olharam-se novamente e não mais pela primeira vez. Ei, fica tranqüilo, eu não estou te pedindo em casamento, não quero seu beijo, não vou te agarrar, eu só queria a sua companhia enquanto essa tarde passar. Mas você tentou se matar! Não, eu fiz um furo no meu pulso com esta pena. Para quê? Para me impressionar. Para ver o sangue. Você viu como é escuro? É bonito. Não é nada demais. Eu não queria te assustar. Você tem cara de quem não se assusta com qualquer coisa. Isso não é qualquer coisa. Medo de cachorro, você tem? Não, já acostumei. Eu também já me acostumei. Com muita coisa, com muita dor, eu me acostumei demais com muita coisa que hoje o que eu busco é somente aquilo que eu não sei, sabe? Sei...
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E voltou outro dia, com uma caixa um pouco menor. Sacudiu-a enquanto o corpo do outro se enrijeceu profundo sobre o banco da varanda. É para mim? Sim, está aqui seu nome que você não gosta. Não precisa dizer. Eu não disse. Não precisava. Não vai abrir? Eu não encomendei nada. Mas é para você. Pode mandar devolver. Sério? Sim. Não tem remetente? Não. Então joga fora, não tem como? Fui eu. Eu o quê? Eu quem lhe enviei isso aqui. E o que é? É para ti. Para mim? Abre. É brincadeira? Abre. É doce, eu odeio doce, é doce? Só vai saber se abrir.
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E me deu esse estilete, que desde então, só serviu para abrir cartas e para me lembrar daquelas poucas visitas, das quais eu não guardo nada exceto aquilo que já sei.
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