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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Descartável



A primeira vez que a vi, ela fazia um caminho rumo ao topo. Era inegável o seu sentimento de vôo. Era inexplicável a leveza e o som que fazia ao desenhar no ar o seu frescor. Acabara de chegar ao mundo. Abandonada, meio dentro e fora da boca da lixeira alaranjada. Fora empurrada por mãos apressadas, que sequer confirmaram se ela estava dentro fora ou meio ao meio.


As pessoas cruzaram pela calçada. Outras coisas ali dentro foram jogadas. E dentro dela o vazio, a vontade de fazer voar, o desejo de subir, de sumir, de outro lugar. A tarde avançou seu rumo, o vento ventou seguro e firme. E, logo, bastava esperar que a correnteza lhe estendesse as mãos. Para que seus dedos fossem laçados por um ou outro sopro passageiro.


Eis que o encontro se deu. Feito flecha que acerta um alvo que não era alvo, mas que funciona mesmo assim, porque as coisas que não se conhecem também podem ser afins. Foi isso o que ocorreu. O que nela ventou foi de encontro, pelo contorno, abraçou seus pedaços, preencheu seus medos e secou algumas lágrimas que despencaram.
Inchada de ar, partiu ligeira. Assustou a moça que andando falava no telefone e coçava a cabeça. Inchada parecia agora estar repleta, era feito balão e passeava, indiscreta, chamando a atenção de todos. Ao ser tocada pelo vento cantava sons e versos e redemoinhos - estava mesmo apaixonada - por essa possibilidade de poder ser tudo para em seguida, talvez, nada mais.

Acontece que subiu, foi até o topo. E quando eu a vi, passando dentro de um ônibus, ela parecia não aguentar de tanto tanto. Subiu e veio o pranto. E o vento ventou mais forte. E o frio gelou a sorte. E a subida já escalada agora sob ela desmoronava. A sacola foi atingida por um ar, sem previsão. Um grito ou uma dor que viajava pelo ar a abarcou. Foi furada e perfurada e não pôde mais seguir.

O ônibus parado no sinal. Eu ali dentro pensando. De que altura ela teria se jogado. Será que ficou consciente o tempo todo. O tempo todo inclui o fim? Pensou em quem? Pensei em mim. Eu podia ver e sentir e descrevo agora a sensação. Desse corpo que sobe até não mais poder, até se convencer que é realmente preciso cair.


O sinal abriu. O ônibus arrancou. Olhei para trás e descendo os olhos a vi despencar. Parecia ter ficado concreta, pois não havia mão inversa que a pudesse deter. Descia inteira e ia certeira rumo ao próprio começar de alguma outra coisa que poderia ter planejado. Coisa essa que eu já não compartilho, porque meu ônibus seguiu. E hoje eu estou aqui, sentindo falta. Por isso é preciso escalar. Para, enfim, despencar.
Kekes, eu te amo. E sinto muito, muito, a sua falta.

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