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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Rabanada

Marceau sentado no banco do jardim. Anoitece. Em suas mãos, alguns pedaços de rabanada, que ele come com intensa voracidade.

Marceau – (conversando com as rabanadas, numa energia cada vez mais intensa e desesperada). Como está gostosa! No último natal, suas primas não estavam assim. Estavam bem piores, é verdade. Como as coisas mudam, não? Ora, mudam sim. Eu sei, eu sinto. Eu sou alguém muito intuitivo, sabe? Por exemplo, eu não era assim tão faminto. De forma alguma. Sempre fui comedido. Sempre fui! Sempre. Sempre fui! Desde criança. Só comia aquilo que colocavam em meu prato. Sem repetir. Mas agora, sozinho, como sou eu quem coloca o prato, a gente acaba beliscando uma coisinha a mais, enfim... A gente cresce, Rabanada, e vai perdendo os cuidados, perdendo a linha. Tem indivíduo que perde até a noção, sabia? (Come a última).

Um barulho vem do meio do mato. Está escuro. Marceau não quis iluminar a casa para as comemorações de fim do ano. Sente-se sozinho e depressivo.

Marceau – (assustando-se). Oh, senhor. Tem alguma coisa se mexendo no meio do pântano. O que é? Meu senhor, creio ter visto um pinheiro... Se movendo. Oh, pavor! Como pode um pinheiro se mexer? Pinheiros não têm pernas, têm galhos.

Marceau se ergue, trêmulo, e vai caminhando em direção ao pântano. Eis que o pinheiro vem cambaleante em sua direção.

Marceau – (chocado). Oh!...
O pinheiro acena um cumprimento tímido, mas permanece mudo.
Marceau – Boa noite, seu pinheiro...
Marcel – (arriscando a voz e corrigindo Marceau). Seu pinheiro.
Marceau – Sim, seu pinheiro.
Marcel – Não. Seu pinheiro.
Marceau – Não, eu não sou pinheiro.
Marcel – Não, mas o pinheiro é seu.
Marceau – Que pinheiro, senhor pinheiro?
Marcel – Este pinheiro.
Marceau – O senhor, senhor pinheiro, é meu?
Marcel – Sempre fui.
Marceau – Perdão, não o reconheço.
Marcel – Não tive tempo de me limpar.
Marceau – Estás judiado... Te bateram?
Marcel – Ele quer saber se me bateram?
Marceau – (assustado). Ele quem?
Marcel – Você.
Marceau – Eu quero saber se te bateram.
Marcel – Um gambá.
Marceau – Você brigou com um gambá?
Marcel – Ele urinou em mim.
Marceau – Não quer entrar e tomar um banho?
Marcel – Mas estou sujo.
Marceau – Depois eu limpo, não se preocupe.
Marcel – Imagina, não precisa. Eu me banho no lago.
Marceau – É gelado.
Marcel – Depois eu deito ao sol.
Marceau – O forno dentro de casa está ligado.
Marcel – Vais me queimar?
Marceau – São as rabanadas.
Marcel – Você as convidou?
Marceau – Não era para terem vindo. É que eu fiquei sozinho. E esqueci-me de desmarcar. Veio a família inteira, sabe? Eu exterminei metade, mas acho que não vou conseguir comer tudo até o amanhecer. E a noite está indo embora, veja...

O pinheiro em silêncio tremido mira o céu. Marceau com os olhos marejados, todo tímido, mira o chão.

Marceau – Eu fico emotivo com o término das coisas.
Marcel – Minha espécie também está sendo dizimada.
Marceau – É mesmo? Qual espécie é a sua?
Marcel – Sou dos pinheiros enfeitados, que usam brincos, pérolas, argolas, luzes, bolas.
Marceau – Não acredito! Você é metrossexual?
Marcel – Eu sou solteiro.
Marceau – Mas é do subgrupo natalinus floreius?
Marcel – Eu preciso me sentar.

Marceau arrasta o banco do jardim com extrema agilidade e força e o posiciona logo atrás do pinheiro.

Marceau – (orgulhoso). Não achou que eu fosse te dar um vaso, não é?
Marcel – Eu não sei o que dizer.
Marceau – Fique tranqüilo, eu nem sabia que pinheiros falavam.
Marcel – Mas nós não sabemos muitas coisas.
Marceau – Você acha o ser humano esquisito?
Marcel – Acho o ser humano perdido.
Marceau – Você está dizendo isso porque tem raiz e tronco!
Marcel – Eu também tenho sapatos.

Marcel cruza uma das pernas, apoiando-a sobre o colo e amassando alguns galhos.

Marceau – Então você é metrossexual?
Marcel – Eu sou alguém que está na seca.
Marceau – E olha que tem chovido!
Marcel – Não na minha horta.
Marceau – Você tem uma hortinha?
Marcel – Não, eu quis dizer... A chuva que cai sobre mim... É outra...
Marceau – Tem outra chuva circulando por aí?
Marcel – Na verdade tem. Chama-se chorus prantum. E sai de mim.
Marceau – (admirado). Mas pinheiros não choram.
Marcel – Não é verdade. Meninos não choram. Pinheiros choram.
Marceau – É verdade. Meninos não choram. Mas eu choro.
Marcel – Você chora chuva?
Marceau – Eu choro porque fui abandonado. Eu choro porque eu não entendi. Choro porque sinto que fui enrolado. Choro porque não sei me desenrolar. Choro porque o cheiro que sinto agora parece querer me dizer que as rabanadas queimaram. Por isso eu choro. Porque certas coisas morrem, certas se queimam, quando na idealidade... Eu queria que durassem por mais tempo.
Marcel – (regando por dentro o pinheiro de orvalho). Você está um poeta de primeira categoria!
Marceau – Foi Marcel.
Marcel – Eu?
Marceau – Oi?
Marcel – Eu... Trouxe um presente para você.
Marceau – De natal?
Marcel – De desculpas.
Marceau – O que é isso?
Marcel – Um pedido de desculpas.

Marcel se ergue cambaleante. Distancia-se um pouco de Marceau até parar diante dele, de costas. Começa a tremer o pinheiro. Marceau já sem ar. Marcel coloca para fora do pinheiro o seu braço esquerdo, emagrecido. Marceau num só suspiro. Marcel retira o outro, o direito, menos fino, porém, com a mão comprimida dentro da qual um passarinho.

Marcel – Ele entrou aqui antes de eu decidir voltar. Pousou leve e sem medo sobre mim. Não se preocupou com o fato de eu ainda respirar. Ele me deu asas, me cantou a vontade de te encontrar, de pedir desculpas, me cantou aquela canção que fazia tempo eu não conseguia lembrar. Mesmo sem te esquecer, eu já não podia me lembrar. Como faço então? Sem a sua voz. Revendo seus olhos sem te escutar. Perdido em noites a frio, tentando apenas lembrar para te prender para me conseguir segurar. Lembrar para existir. Para ser alguém que está. (Marcel, ainda com o passarinho preso em sua mão estendida no ar, começa a se virar, lentamente para Marceau). Me desculpa, mas era preciso voltar. Eu pensei primeiro em mim. Mas é assim, não é? O passarinho pousou em mim querendo comer, não foi para conversar. Não foi, passarinho! Não adianta resmungar. Ora, você mordiscou estas folhas, você bebeu as gotas do meu orvalho. Mas você não sabia que dentro deste pinheiro vivia um homem envergonhado, um homem meio ao meio, mal passado, mal vestido, mas inda assim amado. Um homem espiando como o mundo faz para funcionar. Eu te asseguro, era mesmo preciso voltar. E se eu pouso agora diante de ti é para te provar, que sim, pinheiros também coram, também choram, sim, porque o choro foi, por vezes, a única forma de te concretizar. De te ter aqui em mim reunido. De poder olhar o sol destemido. De dormir acompanhado e repleto... Meu querido, peço desculpas pela invasão, mas é meu peito que está se abrindo.

Marcel abre a mão, sobre a qual ergue a cabeça, lento, o passarinho. Sem pressa ele alça vôo ao longe e brilha como estrela diante da lua imensa. Marcel avança em direção a Marceau, que do banco, trêmulo, se ergue. Aproximam-se, pinheiro e Marceau.

Marceau estica um braço e deita a mão por dentro da folhagem. O pinheiro treme. Marceau sorri e revista todo o seu interior. Encontra o rosto de Marcel e seca sua alegria. Nisso, desce o pássaro do céu e pousa nesta ponte-braço entre Marceau, o pinheiro e Marcel.

Marceau – Tenho em mim, agora sim, um pouco mais de eternidade.

____________________ outras cenas com Marcel e Marceau:
  
Violácea, em 31 de maio de 2009
Rúcula, em 21 de junho de 2009
Guirlanda, em 29 de julho de 2009
  

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