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sábado, 1 de agosto de 2009

Álvaro

Foi no meio desta noite que passou. Foi no momento exato em que ele acordou, o corpo involuntariamente sentado sobre a cama solicitava atenção. Olhou pela janela aberta e viu a escuridão do céu. A escuridão plena daquele céu sem estrelas. Como podia assim ser: apenas escuridão. Fechou os olhos para esboçar estrelas e vieram palavras. Palavras num véu cobrindo seu olhar. Era escuridão, pleno, mas palavras ainda podia enxergar.
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Ergueu-se da cama, os pés no chão. Ainda era todo escuro, caminhava seguro pois caminhar nunca lhe fora problema. Não, pensava dentro. É algum sentimento, algo sentido, nada pode ser assim tão obscuramente pleno. A plenitude o assustava. O que restava ainda de tão pleno no mundo ali fora. As cortinas encostadas eram mesmo o céu aquela negra escuridão opaca. Aproximou-se, o sexo contra a parede. Não havia desejo, mas ainda assim avistou, no canto da rua, um poste elétrico como fosse aquela luz uma lua ou estrela precisa.
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O que sou eu nesse mundo. Por que sou eu. E não outra coisa. O que me faz se agora sou eu quem acorda no meio da noite e quer entender o porquê de alguma escuridão reinante. O que me faz agora estar aqui e não em outro lugar. O que me faz diferente de outras vezes não ter vontade alguma de pular. A plenitude o assustava. E morrer era o que poderia haver de mais pleno visto ali de onde olhava.
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O ranger do portão. Os pés ainda descalços, ainda eram chão. Na rua o ar era outro, parecia mais denso. Mas não era isso, o que fora ali reconhecer não era o ar não era nada que eu pudesse agora te descrever. Mas tento, mesmo assim.
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E me perco. Eu tentei, você não viu, mas é no saltar de uma linha que meio mundo eu corro veloz. No saltar de uma linha ou mais que eu caminho vagando a buscar isso que agora eu tento lhe entregar, moído, mordido, pedaço de mundo dilacerado posto impreciso. Tentação é perder. Movemos-nos pela perda. Comigo é sempre quando a palavra que quero é incapaz de se mostrar de se eleger. Eu tento, ainda assim, pois de tanto perderes acredito és mais forte.
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Ele ali diante da rua os pés no chão. Eu aqui diante da tela as mãos num solo precário, onde jaz tudo solto mas tudo ao mesmo tempo pleno de ser costurado. As coisas se revelam feito poeira, nada é tão pleno, tudo é plenitude falsa, imperfeita. Eu construo com as mesmas partes do ódio esse tal amor, que o fez acordar no meio da noite e descer as escadas eu poderia ter lhes dito elevador. Mas não. Tenho nas mãos os pontos que me fazem ver o mundo com calma. Com dosagem. Precisão. Utilidade. Eu pulo uma linha
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e o tempo segue mais tarde. O véu que antes ele pareceu enxergar, enquanto lá ainda é a noite plena e escura, aqui para mim é já sensação. Eu deito sobre essa pele o mundo tal qual o vejo aos pedaços. E os pedaços assim dispostos me fazem crer: é possível costurar o mundo é possível ele deter. Por isso deixo que vague a essa hora - inventada - em meio a escuridão da rua para encontrar numa esquina não muito longe de casa, aquilo justo que buscava.
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Ele recolhe com calma, entre o deter do objeto e o do tremer das mãos. Ele volta caminhando seguro para casa. Os pés quase que silenciados, quase sem mover o som ao tocar o chão do asfalto negro e sujo. O ranger do portão já não me chama atenção. Dentro uma fábrica veloz desmonta-se em construção. Ele está vivo, outra vez. Acordou perdido, mas agora sobre uma cadeira, diante da janela, prende o objeto que lhe traz consolo, ação.
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Estrela fica por aí até o amanhecer. Me faz dormir seguro que eu não vou ligar se de mim você se perder. Mas me faz dormir. Entretem meus sonhos meus sem sentido. Fica comigo até julgar que de ti eu não mais preciso, mas saiba: eu sempre te preciso mais do que sou capaz de revelar. Portanto, quando souber que é hora de partir, espere mais alguns minutos, que é o tempo inexato de eu ir eternamente a...
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Ele disse isso. Eu já não sei. O véu da noite ilumina em mim também alguma transcendência possível. Não me responsabilizo por tudo o que aqui eu lhes digo. Mas sim, talvez ele tenha dito. Ao menos eu o disse, caso duvides do outro. Em mim deita com a noite a certeza do véu eterno que costura o mundo aos meus dedos. Somos cada vez mais um só corpo um só... Não saberia dizer. Nem mesmo importaria. A plenitude não é o alvo desse ser.
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Um comentário:

Vanessa Gomes disse...

A plenitude é um alvo inventado
se somos a cada dia um só corpo.
Di, adorei menino
a poesia reinou na prosa
como reina na vida.
Lindo demais!!!

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