filho,
você me pede um retrato e eu lhe dou palavras. paciência. é o que tenho. o papai emprestou a máquina de bater fotos e sobraram apenas palavras, como sempre. pois eu me sento agora - ligeiramente embriagado - para escrever-lhe um retrato.
a coluna torta. o sorriso guardado. eu comi todas as minhas unhas das mãos hoje, portanto, escrevo a ti - e a teus irmãos - meio sujo de sangue já coagulado. no quarto do papai, uma música chamada "save me" toca numa altura extraordinária. é que os vizinhos estão em festa. pela primeira vez, a casa da frente, está em festa. antes era só um violão pela manhã, mas hoje, há pessoas circulando na rua e nas sacadas, sem camisa, uma promiscuidade (que o papai gosta, a bem da verdade).
a música aqui no quarto é tão imensa quanto a lá de fora. mas não se escutam, uma a outra. estou semi-bêbado, mas não menos consciente. poderia pintar estrelas, caso você me pedisse. caso você existisse.
é tudo um treino, correto? isso, de lhe escrever retratos. eu lhe escrevo quem eu estou, neste momento, e você nem sequer me promete vir junto. chegar mais perto. você não existe e não existindo eu também perco o sentido. se um dia o seu pai for mais que destemido, talvez a gente se encontre.
por agora, você é tão poesia quanto o tempo. você é possível na medida em que não existe para me provar o contrário. poderia dizer que sofro a sua existência de mentira, mas é tão verdade o que escrevo, que para mim mesmo sou pai já faz muito tempo.
fui pai precoce. antes mesmo da barba, talvez, já tivesse o sido.
talvez mais cedo até. não sei precisar.
ser pai me roubou de mim e não vi se era grande ou pequeno. lembro apenas do que senti. daquela possibilidade, entre as pernas, de dizer alguma coisa que tivesse validade. alguma coisa grande, mesmo que pequena, alguma coisa capaz de causar estrago, amor ou dúvida.
desde esse dia, em que te encontrei (você e seus irmãos), fui amigo também. e as suas vozes, ecoando dentro do meu peito ou da cabeça - não sei - as suas vozes me fazendo seguir, me fazendo companhia, sempre que alguém querido partiu. eu hoje, sinto tanto por vocês, que seria ingrato da minha parte um dia não lhes dar o corpo, tal como pregam as revistas e jornais de domingo.
ser pai, meu filho, ainda é sonho.
mas sonho morno, capaz de acordar em meio ao dia. e só depois se dissipar, feito fantasia.
eu vou estar com vocês. quando vocês vierem, de fato, pisar minha tranquilidade
e convertê-la, em amor pleno.
diogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário