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sábado, 19 de fevereiro de 2011

Imento

São 22h55. Eu estou só dentro de casa. Eu estou nu sobre essa cadeira preta e giratória. Eu não vou fazer rimas. São elas que se divertem me fazendo e refazendo a todo o instante. Enfim, o que eu queria dizer é que eu vou me dar apenas o tempo deste cd que começou a tocar para escrever este texto. É este o meu dogma. Hoje eu estou cansado. Cansado de sair de casa cedo demais e voltar a tempo de pegar o jornal do dia anterior. Ainda fresco, embrulhado. Cansado da minha louça suja. De fazer café. De beber. Eu me perguntando como nós humanos podemos nos cansar de certas coisas e mesmo assim continuarmos firmes, indo direto ao centro da própria ruína. Eu também não entendo. Eu queria dizer tanta coisa. Eu fico me perguntando certas coisas que não deveriam ser perguntadas. Eu fico me perguntando. Eu fico me perguntando. Não é uma frase sem terminação. Eu fico me perguntando é a minha maior constatação. De quem eu sou, do que eu faço. Eu ação precisa me pergunto a cada segundo, a cada passo. E quando eu seco. E quando eu respondo a tudo. E quando eu perco a graça. E quando eu tenho as referências todas ali impressas e xerocadas. Bom, eu preciso começar tudo de novo, porque o desejo é mais legal sendo desejo e não encontro. Eu poderia ficar um ano olhando a sua boca sem te beijar. Eu poderia te dizer eu quero te beijar e demorar quatro estações até de fato morder a sua boca. Eu queria dizer tanta coisa a vocês que talvez não venha a dizer nada. Só para divertir meu corpo na busca e enganar minha alma na possibilidade de sua poesia expressa em palavras. Desculpa. Eu quero pedir desculpas. Antes de tudo, eu peço desculpas. Desculpa. Desculpa. Sempre. Porque assim eu posso errar o mundo inteiro sem culpa de ter que acertá-lo. Tá poético? Tá puxado? Paciência, eu vivo bem nesse contexto. Eu sou um desses caras. Que não tem medo de metáfora. Nem de metonímia. Nem de hipérbole. Quiçá de rima. Eu esqueci muito rápido o que era uma coisa e outra, sabe? Daí deu nisso. Eu sei. Não importa. Eu fico me perguntando por que é que eu digo essas coisas a vocês. Mas depois, num segundo depois, eu me supero com uma pergunta mais instigante: quem são vocês afinal? Porque cabe um mundo inteiro dentro da palavra você. Cabem ditaduras genocídios cabe a minha mãe obesa e adoentada, cabe o meu signo, o meu escritor favorito e todas as minhas revistas de mulher pelada. Em você cabem todos os vocês que eu nunca tive na vida. Em você cabe eu mesmo e a sua falta. Suprema. Sem pesar, sem penar, eu queria dizer que você é tudo enquanto for você este gesto da fala, esta palavra curta e grossa, enquanto for você a maldita e a suprema falta. Eu encontrei o que eu queria dizer. Vocês também são autores que eu sei. Eu autor que fala. Eu autor que autua. Eu autor que faz autópsia. Eu que aqui me mostro diante de inúmeros olhos e digo essas coisas que mesmo não sendo minhas são minhas. Porque sou eu quem as falo. Eu falo. Eu desejo que isso seja meu e ponto. Este ato de me fazer dono daquilo que talvez eu seja incapaz de deter. Desculpem-me. Eu autor estou um pouco cansado. E as músicas seguem sem fim, cantadas por este computador preto nesta noite quente neste Rio de Janeiro. Eu quero dizer. Eu acho que às vezes eu queria ser canção. Sabe? Eu queria que a minha mãe tivesse me perguntando um dia: filho, o que você quer ser quando crescer? E eu gostaria de ter respondido: mãe, eu quero ser canção. Acho que teria sido interessante. Teria rolado uma fricção entre mamãe e eu. Eu talvez venha a ter um filho só para que ele me abuse dessa forma. Só para que ele me desnorteie. Mas e o mundo? Como se coloca criança no mundo de hoje que não seja pela buceta? O Word acabou de corrigir buceta para boceta. Buceta tá errado. Boceta tá certo. Do “o” para o “u” há só um buraco por onde passa o piru, Word. Você é muito ingênuo. Odeio essa palavra piru. Palavra infeliz, palavra que podia ser esquecida. Gente, que mau gosto. Sorte a minha que eu me dei um cd inteiro nesta noite e vou continuar. Estou ainda no início da segunda folha e, sinceramente, quem me vê aqui entretido nesta ficção de mim mesmo o que poderia supor? Que eu amo? Que eu te amo? Que eu amo a gente, as gentes, as moças e os moços? Quem poderia supor o que de fato é meu e o que talvez seja só a projeção do meu abandono? E se eu disser que eu cheguei em casa e a minha vizinha esquizofrênica estava no meio da rua dando socos no próprio peito? E se eu disser que eu comi um miojo sabor galinha caipira, você iria acreditar? E se eu disser: mentira, gente. Nada disso. Eu quero dizer, eu não sei o que estou dizendo e neste momento isto é o mais sincero que eu posso lhes dizer. Estou com os dedos doendo e amo essa música. Conheci-a faz três dias e meu deus, poderia me casar com ela agora. Não fosse eu feito de carne e ela de outra coisa. Podia tudo isso ser memória. Podia ser um brainstorm. Podia ser uma performance. As pessoas rotulam de performance toda e qualquer merda. Que merda. Eu não pedi pra você me classificar. Eu não pedi a vocês que tentassem me entender. Vocês me sentem? Era isso o que eu gostaria de sentir. Mesmo que eu o tenha escrito horas antes de ele ter acontecido de fato. Este momento está valendo alguma coisa.
Eu tô aqui me abrindo a você e querendo sim te fazer acreditar que em mim alguma coisa é capaz de doer. Eu quero dizer. Quando cessar a minha confissão sincera e íntima eu ainda assim vou precisar te entreter. E como se faz isso? Se eu já me esvaziei na frente de todo mundo? A gente quer ser entretido e por isso, é preciso pesar os cortes sobre o corpo, porque nem todos precisam ser de verdade. Vocês são capazes de se impressionar com a malha abraçando a poça de vinho, vocês são capazes de duvidar de uma lágrima, de um sorriso. Vocês são maravilhosos e devem inclusive estar pensando que esse menino quis chamar atenção e polemizar geral. Mas não, calma, a coisa tá acontecendo e você se adiantando querendo decupar o instante. Eu estou querendo polenizar geral. Sacou? Talvez se alguém achar graça eu vou imaginar ter outros no mundo que ainda acreditam no poder do pólen. Talvez ouvindo mais um riso eu vou começar a achar que de fato eu passei dos limites. Que bom, de fato, alguma coisa agora começa a acontecer. E esta música é ainda melhor, mesmo sem eu saber letra alguma. Doem meus dedos. Meu peito está quente e eu estou faz minutos sem respirar. O corretor automático do Word não me aceita como eu sou. Eu acho que depois de certo momento na sua vida, todos os seus problemas serão com a linguagem. Para usá-la será preciso matá-la. É uma merda. É uma coisa. Eu queria dizer. Eu queria dizer que o que é sagrado para mim pode não ser para você. Ou seja: eu profano o seu sagrado e você segreda o meu profano. Não. Não é isso. Eu quis dizer: se tu achas que a linguagem é algo que precisa ser respeitado e louvado, bom, eu acho que dilatamos a noção de sagrado e de profano, porque eu discordo de ti. Inteiramente. Internamente. Talvez você nunca vá saber. Porque o Giorgio Agamben fala uma coisa muito legal sobre profanação. Ele tem um livro chamado PROFANAÇÕES. Dá uma lida, depois me conta, porque eu li, fiz o que quis com o conceito dele e conto pra todo mundo que o Giorgio Agamben tem um conceito muito interessante de profanação. Qual é o conceito? Desculpa, Giorgio. A música trocou novamente. Eu preciso falar dela. Ela, minha amiga morrida que neste instante pode ser uma personagem de outro tempo. E é de fato. Eu amo essa música. Ela é de outro tempo porque morreu e ficou parada, lá atrás. Mas se eu a trago aqui junto comigo é porque eu sou fraco e ainda tenho essa coisa de amor e da saudade. Ela se suicidou. Humm... Que grave isso, não? Mas vamos rir bastante. Profanar seu suicídio. Se a gente pode debochar da Leila Lopes, por que não da minha amiga? A gente pode debochar de tudo, gente. Eu quero ver quando as coisas começarem a debochar da gente, o que vai ser. Vai ser o máximo. No final das contas, é tudo uma questão de profanação: me profanas que serás profanado. É realmente muito fácil chochar aquilo que somos incapazes de compreender. Ou pior, aquilo que não sabemos sentir. Foda-se. Eu falo mesmo. As crianças quando nascem não choram porque sentem o ar entrando pela primeira vez nos seus pulmões. Os bebês choram primeiro porque descobrem muito cedo que são capazes de amar... Caramba. Imagina isso? Eu ainda não acostumei com essa capacidade... Do amor. Eu choro por ela. Eu aqui, olhando para trás e vendo minha amiga congelada na sua juventude que já foi a minha também. E se eu disser vocês vão acreditar na minha poesia? Na minha ficção? Na minha azia? Vocês vão acreditar que vocês são realmente o tal “vocês” para o qual eu destino toda essa palhaçada? Porque ela acabou. Ela se foi, de fato, ela acabou. Mas ainda falta falar da memória. Mas eu não me lembro. Eu não me lembro de nada. Todo mundo pra falar de memória se lembra de que sofre amnésia. Engraçado. Às vezes eu acho que lembrar dói mais do que afaga. É só porque está muito quente. E eu queria finalizar isso logo. Eu to pegando mal. Eu queria ter dado um depoimento. Eu queria uns segundos de silêncio. Uns segundos apenas. Uns segundos de silêncio. Por favor. Eu preciso.
Estranho isso. Às vezes eu acho que a verdade está retida nos olhos. Talvez por isso eu esteja de cabeça baixa. Talvez por vergonha. Talvez por ética. Por estética. Por logosofia. Por hermenêutica. Por filologia. Por afasia. Dermatologia. Ou talvez por Elise. Minha amiga. Enfim, é difícil mentir para vocês. Mentir com verdade, sabe? Quer dizer, é fácil. Essa é a questão. Eu fico me perguntando: o que haverá de mim perdido em cada uma dessas linhas? O que meu vai com você, o que meu fica num sorriso ou numa respiração? Eu me pergunto que dor minha em você ganhou asas e foi capaz de findar? Eu me pergunto quantas coisas minhas eu precisei abrir para aprender a me doar? Eu sempre querendo saber se em ti algum lixo meu teve validade. Eu querendo medir se o meu sangue morno em você causa cura ou enfermidade. Eu querendo descobrir se a rima tem vida própria. Eu, aqui disposto. Eu mesmo, aqui destemido. Sem vergonha. Com vergonha. Falsificado. Mal interpretado. E ranzinzo. Eu inventando a pólvora capaz de me colapsar. Eu inventando as linhas que me tiram o ar. Eu inventando essa ficção para amanhecer um dia potente. Eu capaz de viver a vida para refazê-la contente sobre o fundo branco deste papel virtual. Eu querendo acontecer. Eu querendo ser verbo inconjugável. Eu que roubei minutos da sua manhã. E que doei horas desta noite já madrugada. Eu aqui de bom grado. Eu respirando. Eu que amo essa música. Eu que queria ser música mas que não sei cantar. Eu que queria tanta coisa que eu prefiro nem dizer, por medo de perder tudo aquilo que eu ainda posso conquistar.
Eu, Ficção, Ser Imenso.
Desculpem-me. Já começo a quarta folha. Mas preciso retornar. Para pintar com outras cores essa ficção que é ficção desde que alguém se disponha a ler ou contar. A minha ficção é minha, mas ouço mosquitos dentro do quarto. São 23h33. Obrigado. Mas desculpem-me. Sempre. Obrigado. Não batam palmas. Eu amo essa música. São 00h55. Agora, por fim, não mexo em mais nada: são 01h23 no horário de Brasília.



Para desbravar mais esse problema da ficção, veja as imagens de

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