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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Sobre você aqui tão perto

Caro super eu -

Sei o quanto deve estar te incomodando essa presença aqui tão perto de mim (de nós). Sei o quanto te irrita que eu possa, enfim, estar amando e sendo amado, acordando e dormindo abraçado, beijando e trepando adoidado. Sim, sei o quanto é difícil para você que eu possa, por fim, estar tocando num fiapo de alegria.

Escrevo estas palavras não para provocar você. Escrevo para fazer um pacto de guerra. Sim, a guerra em curso, entre nós dois, entre quem eu sou e aquilo que desejo e a moral que assume corpo na sua falta de sensibilidade. A moral que é você. A moral que, por meio de ti, me cerceia e me convida forçosamente à tristeza.

Os anos estão passando e com o passar deles muito de nós também vai passando, ficando pelo caminho, se perdendo, morrendo, murchando. A tristeza em mim não haveria de durar tanto assim. Deixo que ela passe, deixo que ela se perca, não olho desinteressado para a possibilidade de algo ser diferente para mim.

Recebo o carinho, os beijos, as mãos e braços se misturando e bailando. Durmo abraçado, provisoriamente acompanhado, sinto que viver o que estou vivendo é algo como ensinar a si próprio que a vida é feita também de suas molezas. O papo e o gracejo, o carinho mútuo e eterno posto tão breve, tão instante, tão pequeno.

Escrevo porque é também uma despedida deste ano cruel e cortante. Ano em que cuidei da vida e a vida me deu seu bote. Ano em que só nós, eu e você, meu eu e seu super eu, ano em que fomos um contra o outro colocados. Estamos neste embate e te adianto que sobreviverei. Não ousarei padecer mais do que o que já foi consumado.

A vergonha, o que sei dela, é que também ela passa. O medo, o que dele sei, é que ele também passa. A vida, o que dela confirmei, é que ela vai até ir-se embora. A morte, esta eu sabia, é o melhor lembrete para a vida na hora.

Estou vivo. Leio o passo a passo de cada caminho. Deletei minhas contas virtuais. Estou mais só no mundo e mais comigo. Foi-se o Twitter, foi-se o Instagram, Facebook já tinha ido, até o Grindr não resistiu. Limpei o terreno para ficar mais comigo e me reconhecer, para me conhecer de novo, ou seja, renovadamente.

Quero mirar o tempo e perceber que ele nunca faltou, que ele nunca correu tanto assim quanto me disseram. Não foi o tempo que não veio, foi esse excesso de ocupação que me tirou do eixo e me tornou alguém ansioso e sem dedicação ao nada.

Que o ano novo, ao menos assim, renove a minha fé na possibilidade de uma vida menos massacrada. Que os gestos mais tímidos conservem em si as revoluções mais tenazes. Que o desejo perca a fome artificiosa e ganhe em brilho, em garra e vontade. 

Que a filosofia que eu tanto cito possa, enfim, abrir caminhos pelos quais meus pés hão de pisar.

Sobre você, super eu, aqui tão perto de mim: sim. É assim. Não se vive afastando para longe aquilo que nos é ruim. Você me maltrata e a melhor maneira de me relacionar com você é me relacionando com você. Não fujo, não te padeço. Te olho, te escuto, em mim te vejo e dou-me férias de ti.

Estar perto de você é estar perto de mim e eu sigo, simultaneamente, conhecido e estrangeiro.

Feliz novo ano,
Diogo Liberano

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