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domingo, 23 de março de 2008

"Eu já sei andar sem rodinha"

1.
Um dia veio aflito e me pediu. Eu não vi absolutamente nenhum problema em dar-lhe uma. Afinal, já estava preocupado com a demora. Todos os outros, ou pelo menos a maioria, já haviam pedido e elas inclusive repousavam quebradas num canto qualquer da casa. Ao contrário do pequeno que me pedira no tempo de seu desejo, todos os outros já estavam na era da internet. Mas o tal em questão, não! Estava certo, na precisão de seu soletrar, queria porque queria uma "bic-icle-ta"!

2.
Quando ela chegou a primeira coisa que ele fez foi partir. Na velocidade em que conseguiu, vestido no pijama daquele amanhecer. Dali em diante, vivi noites fossem feito dias. Eu ali, acordado, pensando onde ele estaria. "Ele fugiu", eu repetia. Mas dessa vez não fora da cama para o berço. Quem perde um pequeno perde pelo braço e do braço para o mundo, foi num só passo.

3.
Eu envelheci. Não tanto a pele, nem a beleza. Envelheci por dentro, perdi em delicadeza. O tato foi ficando mais coberto. E sobre as mãos repousaram poeira do mundo, marcas das vãs tentativas de encontrá-lo. Amadureci. Toda manhã restava o café quente esperando. Mas ele não vinha, ele não veio. Os irmãos já ansiosos com o seu paradeiro. "Ele foi para longe?", um perguntava. O outro, mais distraído, dizia "de onde ele veio?". E eu, em apuros, contando a prole ali, ao meio.

4.
Se não morremos é porque estamos vivos. Morrer-se aos poucos ainda é viver. E nessa peleja de ser partido, um dia ouvi o barulho da bicicleta. Pude desenhá-la em meio ao vento para em seguida ouvir o estrépito acolhimento, que só as pedras da nossa rua aos nossos filhos davam. Desci o quintal correndo, o coração já na mão, caso fosse preciso dar-lhe ao meu pequeno.

5.
O rosto avermelhado. Dentro dele alguma força a se debater. Olhou-me sem graça, como tivesse feito coisa errada. E os filhos não sabem, mas os pais adoram suas coisas erradas. Os pais adoram essa culpa frustrada de não os ter educado direito; e mais um drama e sobe uma escada e veja se essa roupa é sua ou do seu irmão.

6.
Mas ele veio, enfim. Caído no chão, olhou primeiro a bicicleta suja e amassada. E como se nada tivesse acontecido, fez-me o segundo pedido: "tem como tirar a rodinha?". Olhou para mim. Eu duvidava sim, mas era desse excesso aqui dentro, não era do seu pedido. "Eu já sei andar sem rodinha. Eu caí por causa dela. Tira?".

7.
Eu não devia ensinar chantagens, mas era a rodinha em troca de um almoço e de um banho e abraço e o seu braço, face, nuca, pescoço. Filho sujo como estava mesmo assim eu bajulava. Correu meio mundo num segundo e eu ali, ao pé da escada. Subimos o quintal. Juntei-os todos e um deles gritou: "Coloca lá no blog que a gente já encontrou!". O outro saiu correndo e nisso, o pequeno se vendo numa tela de computador: "Sou eu?"

8.
Limpei seus machucados. Ele não teve paciência. Almoçou todo o prato que fiz e ainda ameaçou desobedecer, querendo mais do doce só por saliência. Penteei seus cabelos, limpei-lhe a face. Era meu filho voltado do mundo. Tinha nos olhos uma incompreensão que eu julguei ser absurdo. Tudo o que eu julgo absurdo é porque eu não sei compreender. Exceto os filhos meus, absurdamente conhecidos por essas mãos que os acenam um adeus invertido em meio a um vá reprimido.

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