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sábado, 21 de junho de 2025

Com que dedicação

Ajoelho-me ante ao cansaço.

A ele, por certo,
sou dedicado.
Sua força descomunal
sua ausência de chamas
não sei
Me encanta.

Diante do cansaço
o mundo desce

Estamos acordados?
 

Fronte

Onde quer que estivesse
de quando em quando
ele seria convocado
a perceber a fronteira
entre o agora
e seu imenso desespero.

Como arquitetura rija
e móvel, firme e abstrata,
haveria nessa linha
um marco inóspito
cruzá-lo seria algo
como dissipar-se.

Mas ele insiste em ficar
não com força
nem demasiadamente dedicado,
ele fica por cansaço
por descaso
fica por não ter sido convidado

a vencer.

No dentro
como gaveta que protege
um raro brinquedo
Haveria a hipótese
de que a vida pudesse ter sido
mais gozo

e menos tempo.

Frente ao limite
o atravessar ganha outro nome
seu rosto anuncia
tantos instantes
tanto agora tantos antes
insista (a repetição é por vezes nauseante)

eu não vou cruzar
eu não vou cruzar a linha
eu escolho, por mais esses minutos,
ser triste
para não ficar
louco.
 

As horas boas


Sobre elas
história alguma foi contada.

Haveria uma predileção
silenciosa e ácida

para a destruição
pelo desassossego.

Ele saberia quando, em vida,
aprendeu que tal sentimento

começasse com um "s"
seguido de dois "s"

duas vezes.

Sua solidão, se possível,
seria escrita também assim

ssolidão.

As horas boas
por não terem sido narradas

desaconteceriam

teriam não vindo

nem sido sentidas

Infelizmente
haveria uma torrente de poemas

tentando dar a ver
o que só se sente.
 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Recordo-me do que me disseste


Imaginar que eu sentiria a falta
daquilo que tuas palavras
provocam em mim

Sentir falta
de uma espécie de tomada
de posição
perante a vida

Estou aqui, vida, venha
vamos ver onde isso
nos levará.

Recordo-me que disseste
algo sobre como eu tinha
passado por muita coisa
sozinho

Recordo-me que disseste
que meus cabelos não mais
cairiam que meus olhos
não cegariam

Recordo-me, saudoso,
devo confessar
porque sim

não tenho conseguido estar em sua companhia.

Sustento-me, meio habilidoso
meio salve-se quem puder
entre dias que sim e dias
que prefiriria esmaecer 

Esmaecer, sabe?
Como quem some na paisagem.

Tenho sumido na paisagem.

Queria mesmo era não gastar dinheiro e ter tempo para ler uns cem livros.
 

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Oscilante

Oscilo
Como quem sabe 
secretamente 
Que se muito para lá 
Algo aqui não me ignora. 

O desespero tem a perna presa nalguma tranquilidade,
Lá e cá é tudo parte. 

Quando o semblante rangia
mesmo assim não era tarde, 
Ou quando o pranto alarmou sua face, alguma graça restava
Protegida noutro lugar talvez dentro. 

Mesmo que não, ainda assim, há de haver. 

A vida brinca com quão desesperado você insista em ser. 

Seja menos. 
Seja menos. 
 

domingo, 25 de maio de 2025

Mago

A bruxaria deu-te uma rasteira.

De nada adiantou tanta cúrcuma, tanta carta, tanto tantra, se ainda não aprendeste a ser sincero. 

Os deuses te enganaram ou fizeste tu pouco caso deles? 

Não vale colocar a culpa na lua, já éramos homens quando tudo aconteceu, ou não éramos? 

É triste que, passado tanto tempo, diríamos por fim que tudo se encaixou. 

Tiraste proveito, proveitoso, abusaste do jogo, jogador, humilhaste qualquer princípio de humanidade é, mais que tudo, pensaste que sua loucura te curaria da visibilidade. 

Eu vi. 

Eu vi tudo. 

Eu ouvi o que disseste. Desliguei a chamada telefónica e anotei a mágoa que apaixonadamente me fizeste.

O que é teu está guardado e deixo avisado: está guardado em ti. 

Aí dentro. Desse retiro. Desse sapo. Desde veneno. Desde arcanos a seus cinismos. 

A vida dá-te o recado. 
 


desviantes


Saberiam ter ver
Com a duração 
Da sua calma? 

Saberiam ficar 
Nos seus olhos
Como fossem casa? 

Saberiam não correr 
Não fugir nem se abster 
De...? 

Quase sei que já não. 

Meus olhos temem que meus medos possam vazar por eles
Por isso atuam, delicadamente desesperados
Como se pudéssemos nos distrair de qualquer traição 

Por suspeitar por intuir por desejar 
Por colocar em questão por pensar 
Demasiadamente pensar e pensar e pensar que... 

*

Dou-me o direito de te olhar 
Como quem é nutrido 
Por sua calma. 

Calo a boca, sossego o peito 
Tente aprender com esse homem 
O privilégio do sossego. 

Confio na sua história 
Confio no desinteresse em tornar esta vida 
Ópera, 

Não a tornemos
Luzes acesas 
Se é uma fase pela qual cruzamos 

Que nela haja outra imagem 
Outro par de versos
Que as tintas sujem o cobertor 

E os gatos venham tomar leite 
À janela. 
 

Dar-se ao tempo


Haveria um copo de vinho 
Em sua companhia 
Quando por fim aceitasse 
Que é preciso desistir 
Por cansaço 
De algumas insistências 

Abandonar-se um pouco
Ao menos um pouco 
Um pouco que seja 
Faria uma grande imensa 
Diferença
Um pouco 

No rol das pegajosas 
Implicações, o corpo fica todo
Perdido, ele gira, desorientado
Querendo um motivo
Um princípio não há 
É tudo coisa da tua consciência

Poemas viriam sem lastro
Vida seria gasta sem alma alguma
Sabe o mais interessante? 
Estou esgotado 
Esgotado 

Escrevo como quem desiste 
Desisto como quem lança à vida 
O direito de fazer de mim
O que ela bem desejar 

É verdade 

Duro dizer 

Mas o ânimo para o embate 
Em mim 
Parece ter acabado de morrer 
De morrer
 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Ela


Repetiria que com ela ele não trabalha
Com ela não 
Com ela, ele sublinha 
Eu não trabalho. 

A questão é que o trabalho nasceu antes dele próprio. 

Trabalhar com ela ou não 
Não lhe era bem assim 
Uma possibilidade

e quando diz que não 
é sim por certo 
e quando é talvez
certamente é assim

A culpa anfitriã do desespero. 

Vale chorar o leite tomado? 

Não valeria. 

Sua culpa não é sua
Seu desassossego é mais mundo 
Do que propriedade 

Desista

Mesmo antes já é tarde. 
 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sequestro


Outra vez
A vaga vem
e açambarca-me.

Resto inundado
A cabeça doendo
olhos molhados.

Acontece no entanto
de a vaga tombar
em dia ameno.

Acontece no entanto
de tombar naquele
específico desalento.

Estava desatento
quando ela veio e
sobre mim tombou.

Não senti dor
não senti dor

Foi como algo
ainda mais
doloroso.

Senti-me idiota
antigo ultrapassado
senti que não tinha consistência

para a vida em ato

A vida em ato, sabes?

Sinto-me tão idiota
por ter tomado a onda
por ter tomado um quilo

de susto

e ter ficado assim
lacrimejante.

Nalgum lugar da vida
diriam que é bonito isso
de se abalar ser abalado.

Quisera eu ter essa paz
quisera eu confiar constante
nessa possibilidade.

Sou todo medo.
 

quinta-feira, 8 de maio de 2025

De todo

Seria eu uma tabacaria
Em plena vapor
Aberta aos domingos 
E com salas especiais
Para meu rol de ansiedades 

Nela encontraria o afago
Não para romper mas para
Proteger instabilidades 
Como quem mantém no fogo
No cigarro eu me manteria 

E agora já faz quatro meses
E um ano, um ano e quatro meses
Contando 
Sem que eu fume e
Faço o que com tais ansiedades? 
 
Observo o corpo
Não parece transmutar ânsia 
Em nada
Que não apenas
Desespero

E pronto como um passeio
O ato de pintar a óleo 
Reluz
Na sua persistente 
Lembração

A ansiedade
Faz-me 
Esquecer
Não apenas da tinta
Também do gesto de transformá-la. 
 

antes não, agora

Investigo o mistério
Enquanto caminho em direção 
À viagem

Antes, em mim não havia
Espaço ou tentativa 
Para sair de nós 

Era como se novo 
Como se quase sacro 
Amantes & Amantes

Hoje sinto-me já outro 
Talvez tenha sido aquele mês 
Em que precisei te amar menos 

Não lembrarás 
Eu lembro 

Nem é que tudo seja ameaça 
É só que potencialmente tudo 
Tem mais graça 

Não sei, não sei 
A corda em mim 
Soa frouxa quase 

Desatando 
Mas é quase 
Quase, no entanto 

Quando a caminhar 
Tropeço entre pés para 
Fazer valer as palavras 

É porque algo em nós importaria 
E recuso o Apocalipse 
Recuso, menos hábil, o acostumar-se

Disseste ser uma fase 
Esta na qual estamos, fase
Esta pela qual passamos 

Confio
Sem saber como
Na vida apenas 

Que ela me empurre para lá 
Agora um pouco mais ou menos 
Observo o mundo quase o lambendo 

Não estou propriamente perdido
Estou a caminhar 
Até o terminal rodoviário. 
 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

E pensar que elas

Estão sempre abertas
Ao livre uso que delas 
Fazemos

O trânsito nesta cidade 
Não, ele não é como
Elas

Ele invariável
Elas mutantes
Que só 

Nos tempos passados
Quando numa tarde
Com elas disse o sentido

Como é possivel
Que tenha sido
Tudo tão específico?

Outra vez elas me estendem
Suas mãos amplificam
Minha paixão é meu desassossego 

Oh, palavra, que nunca chega! 

Sorte a minha
Ainda não ter
Acabado. 
 

Novamente

Em deslocação estou.

Mas o que mudou? 

A espera diz que conversaremos sobre o ocorrido, 
que falaremos ambos sobre o facto de que não falamos tanto
sobre nós. 

Tento pinçar as causas os motivos eu tento selecionar os factos 
Que fogem, eles fogem, desesperados, como se nossa vida fosse imune
A transformar-se.

Em deslocação estou
A tentar um decisivo equilíbrio capaz de tornar nosso jogo também mais meu amigo 
Eu queria ficar. 

Mas talvez do desejo
A realidade não possa ser feita. 

Estou a caminho, meu amor,
Para onde? 
Não faço a mínima. 
 

terça-feira, 29 de abril de 2025

é com você, com quem haveria de ser?


Você 
Fiel destinatário 
Cúmplice único 
Aquele diante do qual 
Minha fala é escutada 

É difícil, eu sei 
Quando muda o interlocutor 
E ele muda a sua fala
É difícil
Nós sabemos

A vontade de abandonar tudo
De sair, fugir, qualquer seja o verbo
De romper, não mais querer 
Tudo isto em ti
É imenso, hoje é imenso

E então 
Por que julgas improvável? 
E então consegues dar pistas
Até um amigo dizer 
Estou por aqui, se quiser falar

Que não seja só com você 

Que não seja só com você 

Estou tão cansado
Que este poema 
Escreve-se a si mesmo 
Como a vida 
O que quer que ela seja. 
 


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Poema de amor


Sorri honesto
lendo um poema
que escrevi
sobre o nosso amor

e que parece ter restado
apenas nele mesmo
no poema e não no amor
que o narrava.
 

Não é simplesmente um cansaço


Os olhos não teriam aberto
quando chegada a hora
ainda assim houvesse
aquele cansaço

Não falávamos no entanto
das pernas que doessem
da coluna dilacerada
era outro torpor

Indagariam se foi tristeza
um aleatório falaria a palavra saudade
perguntariam ao homem se era depressão
(palavra da moda, entreouvir-se-ia)

mas era não
era outro nome
nome talvez sequer inventado
era outro cansaço

Mediriam a pressão
a penugem nas orelhas
vai que fosse algo
nele deveria poder dizer

por que tão assim
por qual motivo tão desse jeito
e os olhos mortificados
e o ânimo a despeito

(entreouvir-se-ia, reage, homem)

Mas seu cansaço
não era simplesmente um cansaço
Não estou simplesmente cansaço
disse à televisão local

E aquilo como que viraria um mantra
uma casa uma onda
não um simplesmente cansaço
as crianças diriam entre risos

Porque nunca tinha havido
coisa tão simples quanto
um cansaço
(dá sono nele, entreouvir-se-ia)

Mas não era um simples cansaço

Não era um simples cansaço

O que sinto não é um simples cansaço

Não é simplesmente um cansaço.
 


sábado, 26 de abril de 2025

Um engano


Ela dizia
Que aquela 
Espécie 
Lá não florescia

Ele dizia
Que florestas 
Daquele tipo
Eram outras

Não encaixava

E falaram
De como algumas 
Espécies são 
Invasoras

E repetiam
Os acordos
As normas
Os nomes 

Homens todos, os nomes, homens. 

(Fora da conversa 
No planeta mesmo
Entre ares eras e terras 
Florescia uma nova
Inaudita

e sem nome

Vida). 
 

outro outra vez


      Esta é uma boa imagem 
    Vês? 
                 Dizer o mesmo
dessa        outra maneira 

Meu espanto
         é cauteloso 
                   não assassinaria
      Revoluções 

      Já é tarde
Estamos atrasadas
                         A vida pede calma
Calma 
 
Eu peço 
Casa 
Casa
Casa 
 

Enganonão


Não te enganarei. 

Aqui só duas ou 
Três palavras. 

Para dizer da vida não
Direi mais. 

Era esperado de mim
Futuro, mas vejam

Falta-me imaginação
Para coisas boas. 
 

Acho que o nosso trabalho, como às vezes acontece, antecipa um olhar que só vem a fazer sentido um cadinho depois


E o depois chegou 
E nosso olhar quer ser
De mais gente
Que não só da gente 

É olhar que quer 
Abrir olhar que 
Quer ver no dentro
Ao lado em cada fundo 

Há um espanto de mundo
Que o poema não cessa
De reverenciar 
Um susto que floresce

E estala

Diante dele a vida 
Arde o fôlego repassa 
Passo a passo
O caminho 

Se não fosse mundo
Seria martírio, portanto 
Sobreviva, oh, vida 
Sobreviva 

É neste mundo onde 
Se vive
Não noutro lugar 
Não noutro

Entre árvores e mesas
Vasos e telefones 
Você e noutros,
eis onde vivemos. 
 
 
 

domingo, 20 de abril de 2025

Romance

Como quem confia
Que a vida ainda 
Não termina agora. 

Como quem sente
Que até chegar 
Muito antes chegaria. 

Numa calma ancestral 
Como quem sabe
O recado será dado. 

Antes do fim
Haveria caneta, tempo
E laço. 

A Deus, peço o ânimo 
Necessário para compor 
Quando isto se fizer. 
 

Receoso

Dizer realiza

A palavra
Quando dita
Faz contrato 
Firma

E se não é dito
No íntimo 
Faz revolver
Indisposições 

O corpo assim
Desconfortado
Não há outro
Demandação

Temo que
Tenho medo
Receio
Essa palavra

Sendo dita 
Diria mesmo
Mesmo
Mesmo? 
 

terça-feira, 8 de abril de 2025

Indistinção

Cruzaste a corrida
Sem nem saber que
Era suposto correr. 

Para veres como tu és 
Desatento. 

Sob a noite daquele dia
Na manhã seguinte descobririas
Que teria acontecido
Mas estavas ao relento. 

És parvo ou lento? A ti
Perguntarias. 

Se a vida fosse uma
Você dela teria feito 
Meio uso

Meio assim
Meio aqui
Muitos meios
Orgulhoso, dirias, 
Fez um homem. 

E não haveria tristeza 
Posto não terem feito guerra 
Reluzias sua ausência de machados e mercados 
Bom dia

E já não havia podium 
Prémios nem imprensas. 
 

segunda-feira, 31 de março de 2025

Da covardia moral

Nalgum lugar
Saberia explicá-la
Empírico 
Exalo seu característico 
E primordial 
Hino

Registo, portanto, o suplício 
De um corpo cansado
Da luta não convicto 
Mas sequestrado
Pela imaginação 
Do livrar-se

Disso

Persiste em mim 

Quer continuar a despeito de

Infiltra-se em cada gesto
No verbo no olho perscrutante
Que tolo
Digo de quando em quando 
Queria talvez doar-me
A outros jogos 

Mas alarma
Como resto de amor 
Ética desobjetificante
Alarma em mim
Outro princípio quase reconfortante 

Resista
Não ceda 
Isso é hábito 
Performatiza a vida

Até ela provar-se outra outra

Que cansaço. 
 

domingo, 23 de março de 2025

Lá Fábrica

Nenhuma palavra
Noutra costurada 
Traria a mim
A paz da morte
Tão de quando em quando 
Desejada

Um oceano de cinismo 
Alagou este mundo 
Já não parece possível 
Ver com olhos lúcidos 
Desejar como quem 
Só respira 

As exigências corroem o ânimo 
Para onde correr
Que fazer com tanto abandono 
Que indagação traria calma
À pergunta
Que não cessa

A desfaçatez 
Palavra estranha 
Por que ela me chama 
Onde estive para que ela me encontrasse 
Onde eu não sei
Mas sinto 

***

Además 
Alguna opción tiene que existir 
Para que sea más grande 
El futuro 
Ni perfecto ni presente 
Algo o alguien 
Alguna cosita
Un sonido
Poco más que todo eso 

Caminando sobre el mundo 
Inmenso a través de la gente 
No sería una vida humana
Aquello que siempre me llamó la atención 
No tiene mi rostro 

Pero ve todo, todo

***
 

sábado, 22 de março de 2025

Entorpecer

Meu olho direito
tremula 

Minha cabeça 
sonolenta

Minha paixão inteira
deixar ser 

rendido pela embriaguez 
estou rendido de ter que 

Meu sono
que não é meu

Meu mundo 
que nunca 

indifere

Dói é ter consciência 
 

quarta-feira, 19 de março de 2025

O seu movimento


É preciso lembrar
o modo pelo qual
o seu cuidado
tomba sobra
uma vida.

Quase invísivel
há crenças
de que escutas
o ardor dos
dilemas

e delicadamente
faz outro gesto
inaugura
outras lidas
diárias.

Talvez não exista
em mim
tenaz confiança
de que daríamos
um jeito,

mas eu sinto
venho sentindo
eu vejo
venho vendo
que sim

o seu movimento tem sido o amor.
 

sábado, 15 de março de 2025

Licença

Sem pedir
A noite chega

Os vidros
Do automóvel 
Choram

A luz fica azul 
Para combinar 
Com essa tristeza 

Delicada
A fome escala 
Distâncias aumentam

O céu noturno 
Desconhece escolha
Ele escurece 

Aqui e lá 
Haveria de existir 
Dor como a sua 

O pássaro sozinho
A árvore sem vizinhas 
A garrafa na berma 

Para além do humano
A tristeza 
Faz impérios 

E assim
Também 
A fome

Eco da memória 
A voz da mãe dizendo 
Leva um biscotinho

Na mochila
Livros, computador 
E moedas 

Nem um biscoitinho
Nem um rebuçado 
A tristeza assim, licença, 

Fica inevitável 
 
 

Reconhecimento

Não valeria desfazer o desfazimento
para em seu lugar
vibrar vitórias

Vitória não há
por vezes é isso, a vida
para um pouco

e respira

Dos espantos
menos sonhados, ainda assim
eles viriam

Do inacreditável
acredite, a sina
repetiria-se

e respira

respira

Nada do que acontece
em vida acontece
noutro lugar

que não aqui

onde você agora
respira longo

pedindo ao ar
aos céus
ao bem fundo do antes

algum sossego
afagante
você pede

Não o antes
nem bem o depois
você pede um

descanso

e respira

como se o ar

solto no ar

fizesse em ti
um levante

um levante

e respira

como antes

respira
 

terça-feira, 4 de março de 2025

Aqui ao lado

Não era a primeira vez
E mesmo que fosse
Não teria sido
Isto que chamávamos
de paz.

Estar aqui
Por certo estiveram
Lado a lado
O pé dium
No doutro
esfregando-se.

Era assim que deveria ser -
ele dizia
sempre que tempo
entre os amantes
se instalava.

E o som que faz, você não gosta? -
era pergunta boba e abusada
O som desse pé meio seco, o seu,
Na minha pele tão macia -
e eles riam
e riam
e davam-se beijinhos
e boa noite, bom dia.

Aqui ao lado
é como se os amores
já tivessem se esbaldado
em cada um deles
em cada uma de suas
tantas vidas
tantas vidas.

Dizem que os amores das outras vidas -
um deles comunicou
É que fazem a gente conseguir essa façanha de agora -
completou, olho no outro, que então disse
Que façanha, tá maluco? -
A façanha que é te amar -
E amar -
E me amar -
Amor, amor, amanhã -
beijinhos de boa noite.
 

segunda-feira, 3 de março de 2025

Vaguidão

Vagueias por entre palavras
porque perdeste um sentido
para a vida

Ainda que tenhas elogiado
a mutabilidade de tudo
Mesmo que tenhas dito
o quanto a transformação
é o fim e o princípio

Suas rimas no entanto
nada te ensinam
Pois seus ouvidos
só querem os sóis

Sois sozinho
nesta sina
de sofrer tão
logo acorde

o dia

Passou
vago
Passou o dia
onde estiveste?

Perdido entre versos
que nada curam exceto
o que nada curam
exceto o quê?

Nada curam

vaguidão tremenda
vaguidão responsável
pontual e insistente
como uma desistência

que pouco a pouco
vai sendo construída
desde dentro
dentro
dentro
dentro

desistência do quê? - a fulana pergunta
ao que respondes
da vida
da vida
da vida
e do amor
 
 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

ungüento

A distração perdeu a hora

E se viesse, caso viesse,
talvez já não tivesse
com quem fazer
sua arte

As flores estão lindas
dentro de casa
Elas morrem
numa tranquilidade

De causar inveja

Invejo
a possibilidade
Deque tudo nelas
seja tão lindo
quanto essas finas dobras
e esse peso delicado
e essa nuance dos verdes
o rosa
amarelado

Como é possível
a beleza
ser tão inofensiva?

Estou marcado
querendo a pintura
talvez seja a hora

Aliviar-se do pranto
e printar
apenas isso
 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

o que fiz não foi feito

A vaga sensação
Segue vaguíssima
Angústias não dissipam 
Reinados ainda imperam

Mudo
Com lamentações 
Reclamo
Insatisfeito

Dá trabalho
Aprender a possibilidade 
De fazer tudo
De outro jeito

Cansa o novo
O velho tem suas garras
E entre um modo e outro 
Nada? 

Oscilante entre reclamar
Daquilo
E disso
Reclamar 

Equilibrado entre um desgosto e dois mais 

Seria brilhante 
Que a vida pudesse
Dizer outra coisa 
Menos

Ou mesmo mais 
Mais 
Mais
Mais 
 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A própria vida, imaginar

Tentei desviar o poema
do rumo que à vida é dado

perdi-me

E perdi-me tanto
que já nem poema eu via
quando anoiteceu
já nem alegria
alguma
eu sabia deduzir

Foi tarde pior que o depois
quando um fiapo de resto
na finura de um verso
me alcançou
(a despeito de mim
e disse que então
eu pudesse talvez
viver com a dignidade
dos que a calma desejaram)

Jamais teria acreditado
que para ter escrito
era preciso tamanho
desconfortar-se

Escrevi agora, pois, em alegria

E mim já não me afundo
A graça deste tempo
não me acena, sequer acessa está

perdi tanto
que, enfim,
estou livre

Para o quê?

Livro-me
até quando?
 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Estoy aquí

Já sei que será aqui
onde por tanto tempo
continuarei o curso
desta vida

Aqui estou, logo aqui
onde chamarei de casa
onde direi fica logo ali
ao lado daquela esquina

Será aqui, eu sinto
onde por sucessivas noites
terei prazer e abruptos
ismos, issos e aquilos

Aqui, portanto, onde agora
fico, não como quem não parte
não como quem não vai
mas como quem não se importa

se o curso da vida
anda meio assim ou assado
se é quente ou frio
aqui eu estou agora

E bebe um vinho
e posso escrever
e há um cômodo a ser organizado

e comprei álcool para limpar
também álcool para beber
enfim
não que isso importe

mas é cedo e tarde
no reino da morte
logo ao lado
como quem enlaça a vizinhança

Se a vida soubesse o que viria adiante
ela ainda assim
dançaria essa dança

...
 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Da possibilidade

Ou colado
Ou descolado
Pensar noutros termos
Tipo ou quente
Ou fatiado

Abrir outros binómios
Outras dioceses
Talvez brindar esquecimentos
Atiçar cenouras
Aturar o sol
Barbarizar suas roupas

Deve haver algo
Que nem um 
Nem dois
Três? 

Deve existir 
Algo além de eu ser feito
Para você e você 
Para mim 

Por exemplo
Meu desejo
Heteróclito & heterogéneo
Por vezes fiel
Por vezes ventado

Deve haver neste corpo 
Outra pista de pousagem 
Que não seja 
O colapso 

Não sei 
Não sei 
Esse cheiro
É mesmo afiado
 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Larga tudo, larga todos

Que ingratidão
diriam aquelas
que doem

Basta o bâlsamo
pousar no centro
deste peito

que pronto
ele larga tudo
larga ele todos

Caso alguém
ao mundo chegasse
agora

Jamais imaginaria
que naquele corpo
pudesse existir

o medo

Larga tudo
quebra toldos
o sol em pleno

Larga todos
todos os como ele
todos os que doem

largaria
largou
largamos

Em praça pública
a dor é bonita
quando acaba

Viva o largado
copo na mão
sorriso ereto

Que bom seu amor
quando não é só
meu, mas nosso

que bom
que bom
até que outra vez\
 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

não seria um livro de poeminhas

minha vida
esta
estes poemas
são poemas?
são textos
palavras
poemas são
o que foram
o que foi preciso
que gesticulassem

minha privada coleção de gestos públicos

minha vida
nestes poemas
um suplício
entre o que foi
o que não queria ter sido
e o advento monumental
do que não cabe a mim
dizer
nem predizer
nem sequer
eu diria
aquilo que nem sequer
poderíamos conceber

caríssimas,
se estou doendo
não é que não esteja aqui
não é que não estivesse vivo
não é sequer que não
se estou doendo
é porque ainda escrevo
porque ainda escrevo
faz-se ver
dói

que horror
a dor
que bruta
que ensimesmada
que sem escuta
sem escrutínio
que merda louca
que vista espessa

estou exausto
 

Engano

Enganei-me
partilhando uma paz
antes mesmo de tocá-la
Feita uma ou duas curvas
lá eu estava
morrendo
sem graça nem altar.

Seu amor me pede
que vá um pouco mais para lá
me pede, o seu amor,
que às vezes fique mais de longe
mais
um pouco mais longe
mas nada é dito

Seu amor pede silencioso
que meu amor seja comedido
por isso estou doendo.

Com demora, sem jeito
ou orgulho, rachei-me inteiro
tentando entender a paz
do seu harmonioso tranquilo,

não deu.

Resisto comedido
comendo a poeira
que o diabo peidou
estou doendo
eu estou doendo, meu amor

E não há imaginação
que toque na sua tranquila paz
é brutal, não seria?
imaginar que enquanto um amante dói
o outro possa erguer um copo
e brindar à vida

que merda
que baita merda

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sustentado do chão

É curioso sobreviver.

Em tantos minutos depois
o corpo já não grita
as estranhas quase ficam
entediadas
É curioso sobreviver à vida
e continuar vivendo.

Quando tomaste a decisão
quando disseste o que foi dito
por dois ou três tremores
forçosamente esquecidos
teria sido como o fim da vida

mas observem, caríssimas
ele ainda está aqui

Agora sobre a cama
o vinho ao lado
o íntimo não bêbado
nem todo avariado
mas é como se

a lágrima quisesse virar rio
dar rasteira
atropelar o cansaço deste tempo
para dar a ver
cansaço maior

oh, amor

que canseira.
 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Do Inalcançável

Enquanto escrevo
olho em sua direção
A vista, no entanto,
acaba antes do seu fim

Você continua
em sua paz agitada
na sua dança toda coerente
e revolta, você continua

como quem despetala
como quem dobra
como quem sobrepassa
como o que existe

Você existe
e diante de ti
agora com você
cá na minha vista

minha sensação
de ser neste mundo
fica toda mexida
eu me perco

Minhas dores diminuem
mesmo que por um pouco
um momento que mesmo não
eu confio

no movimento
céu no chão
chão de água
oh, mar

Por que insistes em continuar?
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Triste

"estou triste
tão triste"

e a tristeza
de um não é
a do outro

estar triste
assim absorto
a quem serviria

o mundo vejo
tudo meio tolo
que cansaço deste

enjoo
meio assim meio
culminância

antes era
possível depois se
tornou ânsia

ânsia

desde então
que tristeza que
tristeza ninguém

dança

todos dançam
todas dançam
todas dançam
 

paralelo

tá-se mal tá-se junto
ao que te faz bem
mesmo o sol
olha ali a chuva de ontem
inda acumulada

lado a lado
embaixo do cima
no cimo do fundo
haveria de persistir
esta espécie de murmúrio

um negócio
coisa inominada
uma perturbação leve
quase besta
mas alada

e lá vai ela
esvoaçando meu tormento
agitando suas céleres asas
alimentando meu mau tempo

que momento, senhoras e moças,
que indescritível momento

aquele no qual um homem
tranquilo, apesar das vestes tão pretas
aquele no qual ele
reage a tudo e a quase todos
de um jeito mesmo

que parece
que parece
um jeito que padece
padece
cada
cada
cada mesmo

que momento!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

enxame, inchada



atravessamento

confesso que foi abrupto
o surgimento do soluço
um risco uma seta um susto
abrupto, devo dizer, foi abrupto

uma tranquilidade
para alguém
neste mundo
seria intranquila
despropositada
seria esquisita
devemos reconhecer

as imaginações povoam o corpo
com pensamentos cujas imagens
desfalecem o ânimo
como continuar?

estar assim assado
atravessado ao meio fatiado
meio no espeto meio perdido
nunca dantes tão avulso e autoritário
amedronta

(o que podemos resgatar de tantos aprendizados vida adentro?)

[ora, talvez, dar-se o direito de um baita foda-se, foda-se essa merda
vai cuidar da sua vida no que ela houver de menor e mais pequena
assim na redundância vai cuidar do seu, só seu, sem ninguém
você conseguiria?

pegar o trem e te levar para passear
comprar-te um presente
se aliviar do medo que, por vezes,
parece ser existir?]

magoou-te o amigo
magoou-te o namorado
a mágoa veio a galope
até com o resto de quem já nem faz parte

que momento, meu amigo, que momento

domingo, 2 de fevereiro de 2025

O som que faz

Eis um termómetro
talvez,

O som que seu ronco faz
a mim traz paz, 
não sei

Dizem que os apaixonados
se enganam dado o imenso 
amor, 

Talvez, talvez, honestamente, 
o som que seu ronco faz
ao meu lado 

Faz tanto mais, tanto mais que simples ruído 

Dá-me a tranquilidade de vossa companhia 
Dá-me a repetição do seu algum cansaço, 
Dá-me o calor do seu corpo após longo dia, 
Dá-me um prólogo, seu ronco, de um breve enlace por mim tão desejado, 

Não sei, não sei, mas queria te contar 
O som que seu ronco faz é lindo
E se eu quiser pausar o barulho que por ele é feito, 
eu toco em ti, meu amor, 
como quem oferta um beijinho

E pronto, nem sei, nem sei, António, 
é tão bonito

A possibilidade, essa intimidade, fico todo mexido. 
 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Da mudança

Não muda
Aquilo que continua
Diriam que é porque é 
Que foi porque foi 
Que assim estava posto
e ora
Discussão encerrada. 

Aquilo que não muda
não continua. 

Continuar seria como transformar-se,
na urgência calma de um estrondo, 
continuar seria uma sucessão de tropeços, 
seria um sucesso no sentido da imperfeição, 
continuar continuaria tudo menos o mesmo.

Ante ao estranho 
Que sua casa invade 
Você pergunta se isso
Ou aquilo, o estranho 
Ele te olha e quer saber 
Sua disponibilidade 

A quantas anda? 

Você olha em direção ao subsolo 
Um armário no tempo
Uma flecha quebrada 
Sua disponibilidade pano furado
Prateleira nunca consertada
Seu dispor a si mesmo
Torneira velha, goteira acostumada 

O estranho te convida 
Vamos? 

Não muda 
A vida insiste 
E a sua ignorância sobrevive 
Ou você tenta
ou se engana 

Você se engana 
Você se engana 
Você se engana
 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Começa-sempre

O nome diz tudo.

O nome esconde. 

De longa expressão 
O começa-sempre
Vira abrupto o mesmo
Sempre o mesmo. 

Mas o sempre
Nada mais faz que não 
Incessantes inícios 
E continuações. 

Mesmo que não, 
Mesmo que não mais, 
Ainda assim, o começo 
Assegura algo que não estava cá. 

Li ontem que um rapaz morreu. 
Rapaz que não conhecia.
Rapaz que cumprimentava-me
ao cruzarmo-nos pelas avenidas.

Esta cidade
Dá início até ao fim. 

A ele desejo outro recomeço. 
Não o conheço, não o conheço, 
Mas a ele desejo
um baita sorriso quiçá 

Um beijo.

¬ para D. P.
 
 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Home

Com atraso descobririas que sim, tens tu também família
Não falo das amigas, gente nova reunida 
Família eu digo como mãe, pai, irmão e irmãs, tantas netas e os netos, sobrinhos tantos e tantas tias 
O que mudou? 

Como quem toma um medicamente forte, pura química 
Ontem estavas sem nervos para sustentar velhas armas 
Foste assim engolido pela lida diária 
Falaram disso e da fila do mercado 
Do fulano e seu fim nefasto 
Quanto antes já havia. 

O atraso é saldo de certeza acumulada. 
Certeza feito Deus, velha e mais que empoeirada. 
Certeza assim feito chicotada. 
Assim feito da ditadura militar à democracia e você nada, você nada.

Ser pontual num evento que você poderia simplesmente faltar.
Presente sem certezas nem embrulho, estou aqui, ela diz, o que você precisa me contar? 
Nem toda a vida será a mesma. 
A sabedoria as crianças pressentem.
Faz tantos anos desde o fatídico desencontro. 

Algo mudou. 

Agradecemos, tranquilas e sem enganos.