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domingo, 21 de setembro de 2014

CROCODILO

Meus amigos aqui presentes: André, Diones, Gustavo, Lígia e Vinícius,
Eu não posso construir um crocodilo,
Porque nesta última madrugada em que sofremos um assalto juntos,
Eu descobri já viver dentro de um crocodilo.

Eu não posso construir um crocodilo porque não tenho a agilidade dele
E, quando dentro de uma mordida sua,
Eu não luto, apenas me anulo e passo a contar:
o tempo dos verbos,
os socos na cabeça,
o rococó dos versos
e o estilhaçar de vidros.

Eu, quando dentro da mordida que tomamos ontem,
Apenas me silencio e observo:
Como o homem fez o mundo se tornar apenas isso.

Não posso construir um crocodilo porque o metabolismo dele catalisa muitas forcas
frente às quais eu tenho apenas vontade de voltar pra casa e voltar a acreditar
que a selvageria do mundo é apenas e ainda
um mergulho qualquer em qualquer piscina azul
e com boias coloridas
e com vocês batendo braços junto comigo.

Mundo sem crocodilos, sem trocadilhos, sem armadilhas.
Mundo simples que rima apenas com abraço, moletom, poesia.

Eu não posso construir um crocodilo porque seu metabolismo cataboliza
hormônios e enzimas que transformam em pasta homogênea e cinza
tudo o quanto é pele, carne, sangue, músculo e grito.
Metabolismo que transforma em merda
punhados de últimos instantes (que não vieram)
punhado de beijos (que não puderam ser dados)
beijos que foram para o sempre do nunca postergados.

Eu não posso construir porque o tempo que me resta agora
é só o tempo daquela mordida de ontem, bordada a dentes finos e frios
Que devoram iPhone, moeda, tênis calça camisa
e todos os sorrisos que um dia nos existiram.

Eu não posso construir um crocodilo porque não há espaço aqui dentro.

Dentro desse estômago onde moramos
Não há espaço para erguer escadas e construir janelas,
Não se pode sair para respirar,
Pode-se apenas olhar – resignado – para este dentro
E ver como a digestão desse crocodilo é lenta
e vai matando, pouco a pouco, o ser humano disposto em filas.

Eu hoje não posso construir um crocodilo, meus amigos,
Porque me falta o braço que ontem me perfuraram,
Falta-me o desejo expropriado de poder querer acreditar
que tudo isso pudesse ser outra coisa menos destrutiva.

Eu não posso construir outro mundo porque dentro desse estômago
A luz é escura e a gente sequer pode se olhar com calma.

O mais perto de amor que eu posso sentir agora por vocês me vem pelo cheiro:

O cheiro da tangerina,
O cheiro do café com pão e queijo e tomate
E poesia.

Mas, depois de ontem, eu cheiro a face de um amigo e, quando movo minha vista para ele,
Seus olhos já não estão mais junto ao seu rosto.

Eu sinto um braço me afagar,
Mas na sua ponta já não há mão nem sequer mais dedos
Ou unhas (que eu pudesse pintar na manhã de ontem, Lígia)

Que mundo é esse que nos devora e que mesmo assim nós alimentamos todos os dias?
Como a gente faz para criar qualquer outra coisa que não soco na cabeça, André?
Que não seus olhos marejados por não querer aceitar que não haverá saída alguma?

Meu peito dói mordido entre a ira de sentir pena e a pena de sentir ira.

O plural de socos nas nossas cabeças ainda me volta como fúnebre sinfonia.
As pausas entre as vírgulas que ontem nós tentávamos desvendar
Ontem mesmo foram bruscamente resolvidas
E dentro do nosso silêncio, amigos, enfiaram este imperativo incessante,
Que apenas repete e repete:

Desistam dessa ideia torta de fazer poesia!
Desistam de querer resolver o que não tem mais saída!

Eu estou dentro do crocodilo agora.
Meus braços se abrem e pedem por paz.
Pedem por alguns minutos que seja.
Pedem por uma nova cena, pequena e miúda, na qual a gente possa fingir morrer
para conseguir se esquecer de alimentar o crocodilo
E, assim, fazer restar ainda alguma sensação de vida a ser vivida.

Eu suplico em silêncio porque sei que o crocodilo ouve a conspiração de suas entranhas.
O crocodilo ouve os pedaços que abocanhou lhe tramando um motim.
Ele sabe que nós queremos dançar a tristeza desse corpo imundo
tão carente de alguma loucura que medicamentos não possam resolver.

O crocodilo ouviu tudo isso que eu acabei de dizer.

Mas é que daqui de dentro desse órgão-baço-teatro-desnecessário
Ele pensa não haver força capaz de fomentar vômito diarreia nem sequer intrigas.

Mesmo assim ele quer saber, por curiosidade, por que desejamos tanto alforria.

Eu poderia morrer agora, meus amigos
Se ao menos fizesse acontecer o reencontro de algumas vísceras.
Eu poderia morrer agora, amigos
Desde que meu corpo-morto virasse ponte ao outro
E fizesse juntar de novo o dente amarelo ao lábio carcomido de heroína.

Eu poderia morrer agora se fizesse acontecer sorriso
dentro desse estômago-escuridão que só come
E mata
E come
E matando se autodenomina vida.

Como pode?
Vendo-me moído no olhar triturado de um de vocês, eu me pergunto:
Como pode termos chegado nesse ponto tão sem diferença?
Tão já resolvido e cronometrado?

Crocodilos não tem mastigação.
Eles abocanham o mundo e o jogam – aos pedaços – para dentro de sua caverna-estômago
fazendo de suas presas vítimas meio ao meio entre morte e vida.

Eu poderia morrer agora, não tivesse eu já morto, meus amigos.

Mas aqui, agora, aos pedaços e com vocês reunido,
O meu braço amputado coagula com a força do seu sorriso atravessado,
Minha boca seca desabrocha com o sangue da sua fala interrompida.

Eu posso me erguer, ainda que trôpego.
Eu posso gritar, ainda que rouco.
Eu quero acordar e ligar nossa vitrola.

E erguer cabana dentro desse estômago
E fazendo alarido, eu posso lhes convidar:


Dancem esse réquiem comigo?


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