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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Débito é dever

Quando a indiferença tombar sobre o humano 
quando a ele nada enfim provocar
exceto o ele mesmo
Seria então preciso com ele
jogar o mesmíssimo abandono
Balançar os ombros e dizer 

- Que seja.

Que seja à força
Que seja sem outro ou outro
Que fosse assim
indiferente, apesar de ferir
Os astros diriam continuem
ele haveria de recobrar um resto de consciência 

Pois há mundos que desconhecem que possam fazer parte de algo que não eles mesmos, 
humanos há aqueles que apenas seguem o modelo
que apenas fazem o mesmo. 
 

sábado, 24 de agosto de 2024

Um para começar

No ato da inscrição
o nome já não era necessário 
Daí viriam sustos outros 
mesmo que esperados 
Por exemplo
não houve comoção 

Pois entre eventos 
e acontecimentos 
Há de um tudo 
menos drama
Sofrimento não sofrem
os parafusos ensinam 

Já estava dado
de certo modo estava 
Que outra era ali começou 
e ali outra começava 
Se nomes pois quedaram 
imprecisos, também pronomes 

Provaram-se irrelevantes
para a irrelevância que
Fazia-se irredutível
psicanalistas na berma
porta documentos vazios
O mundo transpirava 

A ausência do perigo maior 
que teria sido
Os sofrimentos dele.
 

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Sempre que eu abria uma das mãos


Em algum dos muitos textos escritos até agora, disse algo como colocar esse corpinho em jogo. Não que ele não estivesse, mas agora é diferente. Cheguei hoje, 21 de agosto de 2024, uma quarta-feira, à sala de ensaio e fiz uma série de fotos. Não foram pensadas ou planejadas. Eu tirei a roupa da vida para colocar a roupa de ensaio, e no calor do ar-condicionado recém-ligado, fiquei assim, cueca e meias, a dançar na frente do telefone.

As fotos eram tiradas sempre que eu abria uma das mãos e o telefone reconhecia. Em dois segundos, certeiros, uma fotografia seria feita.

Para uma pessoa inibida, expor-se é mais do que coragem, vai além de qualquer sintoma. Expor-se é manifestar-se decisivamente vivo. É como estou. Tenho cá meu arsenal de problemas, mas sigo em vida, e vivo, como prova irrefutável de algo que não carece ser explicado.

Dei saltos e mais saltos. Pensei nos pés e no perigo das articulações. E mais saltos. E um calor no corpo. E a demora em perceber que estar vivo é morrer no gerúndio, como já havia escrito noutro texto, ir se deixando passar, como as horas, como a correnteza de um rio qualquer.

Eu vivo.
 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Devolução



Ele está diante da porta
outra vez
fechada.


Por alguma razão hoje
ele espera paciente
não há mais nada.


O que pode ser feito?


Ele espera como quem eclode
como quem transmuta
como quem espera.


A porta é aberta
(o tempo não esteve neste esquema)
a oferta é direta:


— Pois não, senhor.
— Gostava de fazer uma devolução.
— De qual produto, senhor?
— Deste.
— A camiseta?
— Não, este, este dentro da camiseta.
— O senhor, senhor?
— Gostava de devolvê-lo.

(e eu sequer tenho imaginação para continuar)
 

domingo, 11 de agosto de 2024

antes que tudo vire nada


seria preciso que tudo e nada
e sempre e tudo saíssem 
do poema

para ver poder tocar 
na maravilha do cada passo
sem pressa de aventura à força 
o seu silêncio acaba comigo

temos jeitos diferentes de amar
por certo, e eu acrescentaria jeitos
diferentes de sofrer

sinto-me pesado
quero chorar
e não haveria imaginação 
para vê-lo assim

o seu silêncio me deixa subitamente sozinho

ele serve apenas a ti
e talvez a mais alguém 
mas não a mim 

Não a mim. 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

depender como quem esquecia




sim eu chorei
e fiz gestos que tentaram dizer
literalmente
aquilo que eu venho sentindo
e depois de chorar
falei alto e sorrindo
e depois machuquei a mão esquerda
e encontrei entre as duas
algo esquecido
depois comi algo
tomei insulina
li um pedaço de filosofia
e ouvi músicas
e dancei
e fiz anotações
e desenhos
e lembrei
mais ou menos sem ordem
o que possa ser algo nessa vida
 

da lista de coisas a


nem continuaria
não estivesse ainda
eu vivo

não continuaria
a aumentá-la não continuaria
a ticá-la

ticar
dar um tique
ticar os itens da lista

interminável


nem continuaria
não estivesse em vida
é preciso dizer

não continuaria
a fazer listas e outras listas
caso não aqui agora

demora eu sei
demora, mas numa hora
perceberia que

tás vivo


os refrões te desautorizam
a disposição dos móveis não te ajuda
os traços do corpo nada dizem de um futuro

os versos crescem
e crescem e quanto mais
mais lamento movimentam

um cansaço ancrestral
não quer dizer que não possa
ser exterminado

vives?


há coisas da lista a esconder
para que ela não descubra
para que a exigência não venha a te abater

e é já o pronto
pronto, calma, pronto
era isso mesmo desde o depois

seu poema nunca foi clamor
de algum sucesso seu desassossego
é tão imenso que nem de perto

era possível encontrar alguma sua alegria
mas olha ali no canto ela brilhante
sua alegria ela sua

ela sua
sua alegria
ela é e sua
 

sábado, 3 de agosto de 2024

Eu narciso


Foi com lentidão
que o convite não aberto
se transformou em
delicada exigência

Agora tenho que
dar espaço em mim
para que ele venha
ele, eu digo, eu

desconhecido.

Ele me pede um tempo
e exige-me um dispêndio
que se eu tivesse religião
diria ser gesto sacrílego

e é

Romper assim uma vinda
toda viciada e já hábito
seria o mesmo que assassinar
o assassinato

aquilo que me machucava
sem que eu nada fizesse.

A possibilidade de eu ser menos tanta coisa

ser menos responsável
ser menos preocupado
ser menos previsível
prever menos
antever menos
eu cujos olhos foram recentemente por laser queimados.

Olha,
Se tanto te cansa o fora
Se tanto te cansa o outro a outra
toda essa exterioridade
Convém reter, ficar, sem medo
ficar aí, aqui, consigo, com você

Mira,
o espelho não é sinônimo de azar
o espelho te conta quem tu és
e tu sabes?

Sabes quem estás tu a ser?
 

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Descolar


Com tranquilidade percebo
a importância de não tanto ver-te 
Contaria os dias 
Tento agora não contar 
Mas percebo
a tranquilidade de algum descolamento 

Você aí enquanto eu cá 

Existe algo numa vida que se sustente sem tanto precisar de outra vida? 

Pergunto como quem debocha
a resposta precipita na ponta da língua 
E eu querendo te beijar

*

Sem você tanto por perto
Eu teria que aprender inédito 
O que é isso que disseram ser 
O amor, confesso,

Eu ainda não sei se sei 
Mas sei que estou descobrindo 
Como quem revela uma face
Atrás da qual outras ainda 
Não são visíveis

É o que eu disse
Quando você perguntou se eu precisava 
De alguma coisa 
E a palavra você veio sem que eu pudesse perceber 

Então amanhã não, 
Depois também não,
E também não depois de novo, 
Haveria nisso uma escola
Que me ensinasse a arte do isso mesmo 

Porque é isso mesmo 
É assim como é 
E os sublimes serão instantes 
E o resto é vida prática beijinho obrigado boa noite te amo aquele abraço 

Gostoso
Sublime
e largo
um pouco
  

Querida futura criação ~

Disse meu horóscopo que o dia de hoje teria sido propício para iniciar novos projetos.

Pensei, logo ao ler a profética mensagem, que deveria te começar, dar início à sua, minha, nossa jornada criativa. Mas chego ao fim do dia exausto e não tendo feito nada, exceto desejado.

Desejei abrir um caderno e tomar notas, desenhar um pouco as imagens, imaginar um pouco as palavras. Mas o que resta agora são os últimos minutos do dia e eu aqui tentando precipitar um gesto que fosse a ti, para que possamos criar juntas a nós mesmas.

Te escrevo, portanto, porque venho pensando e te vendo, imaginando e desejando um punhado de gestos e dizeres e, dessa vez, também tantos movimentos. O tempo foi passando e eu fui indo distante do que desejava a ponto de ter desaprendido a saber o que desejo.

Sobre você, querida futura criação já em curso, já em viagem, eu te desejo com a delicadeza mais delicada, na calma menos raivosa, na força menos forçada. Te desejo não porque gostava que alguém salvasse essa minha vida, não por isso, eu te desejo porque ao afirmar tal desejo não sei mais o que dizer.

Não sei mais o que dizer, mas dentro, dentro, dentro eu sinto que faria bem à vida dispor-me desse jeito, querendo ao vivo, e em vida, movendo o corpo, os traumas todos, as belezas e suas tias e iras, eu venho desejando não provar nada a ninguém, mas provar a mim mesmo, colocar-me na boca e mastigar os hábitos para ver nascer, de facto, alguma doçura.

Tenho, faz anos, sido muito sisudo comigo mesmo. Tenho sido péssimo comigo mesmo. Ninguém aguenta por tanto existir sem o afago do carinho. Não digo permitir que se faça isso ou aquilo, isso também não é amor nem cuidado. Estou dizendo do carinho que celebra o gesto ínfimo, do reconhecimento mudo que mesmo sem falar diz algo interior como continua, menino.

Ou homem. Ou fiquei triste muito cedo.

Ou você, então, querida futura criação. Futura não porque você não exista ainda, nem bem porque você não esteja aqui presente. Mas futura mesmo porque o seu semblante é todo do adiante, a sua delicadeza mesclada em intensidades mil é um trunfo que anuncia não tempos porvir, mas éticas por firmar.

Querida futura criação, eu te desejo.

Com amor,
Liberano
 

Sem Título-3



tu pintavas apenas

talvez respirasse

secar

pintar apenas

pensava sobre a importância

passar a deixar

óleo demanda tempo

o gesto dos pincéis

não pensavas

não como quem espera

morrer e passar

mas como quem

horas talvez

enquanto eu óleo sobre tela

em movimento

em 2024

e sobre deixar secar

deixá-lo ali

de suspender o pensar

como quem deixa

assustar-se abruptamente

apenas

ao perceber que por tantos minutos

a pesar