Primeiro é preciso reconhecer: esse jogo de se transpor em palavras e de publica-las é algo especial demais da conta. Pelo simples gesto de postar, eu me vejo transposto num fundo branco e tudo então é revelação. Revelação do que sou, do que não consegui ser, revelação - sobretudo - do que ainda posso, desde que me organize para fazer acontecer. Eis a poesia nesse instante. Uma autoajuda preciosa. Necessária.
Mas - e mais uma vez, há sempre um ou dois "mas" - não é só isso. Pelas palavras eu vejo e toco também o mundo. O fora de mim, o que estranho, ainda, eu reescrevo o mundo e o reinvento. Distancio-me demais. Viajo demais. Amenizo as quinas e invento coisas que nem existiam. Tudo certo. A poesia é também isso. Esforço rumo ao impossível. Não se trata de me culpar por nada, nem de desfazer a minha autoajuda aqui encontrada para então apenas falar das ruas.
É tudo junto ao mesmo tempo. Por exemplo: comecei a escrever estas palavras - mais uma vez - sem predizer o caminho, sem antecipar nada, sem esperar nada de mim mesmo. Eu queria apenas era me encontrar comigo mesmo. Por isso, os meus filhos. Que já faz tempo não chamo para conversar. Quando inventei isso de ler árvores e escrever filhos talvez eu quisesse dizer: ler o mundo e fazer nascer poesia. Ainda é assim, mas nunca é o mesmo.
Meus filhos se acumulam a cada ano. Uns, dentre os tantos, já devem ter morrido, mas todos ainda estão aqui e entre eles, naturalmente, os filhos que não vieram, mas que se esboçam tímidos entre uma publicação e outra. Noutro dia eu pensei (acho que foi ontem): não estaria eu gastando o mundo? Não estaria eu me gastando demais? Não estaria eu amarrado a esse blog e a esse negócio de escrever poesia? É isso mesmo o que escrevo? Se chama poesia?
Faz quatro parágrafos escrevo cada um deles usando a mesma quantidade de linhas. É tanta coisa gasta, tanto esforço que eu me pergunto: será tudo em vão? Importa que não seja? O que foi que aconteceu comigo que me põe tão certo frente a cada coisa? Onde foi que eu aprendi essa dureza? Foi no meu pai? Na minha mãe? Quem me deu essa certeza de morte sobre todas as coisas? As palavras, como se vê, desorientam o caminho nesse jogo de se buscar. E poesia vira tortura sem nem mesmo eu perceber.
Uso mais linhas para um parágrafo que parece dizer coisa alguma. Então eu pergunto: precisava dizer algo? Vejam: eu sempre pergunto aquilo que alimenta o fardo de ter que prestar. Eu me acostumei a poder tudo, a fazer o que eu quisesse. Eu desaprendi a força da intenção. O aleatório me assaltou e eu fui, confiante no acaso. Nada importa só o que já foi. Eu não tenho tempo para remendar, acho sempre mais prudente fazer novo movimento. Eu não cesso, até o dia em que finalmente eu me cessar.
Sabe? Já são 28 anos completos de vida. Já vivi um bocado de coisas e sei que muitas outras anseiam por me encontrar. Eu também as quero. Quero muito o que desconheço. Nunca quis tanto sair daqui e conhecer outro canto do mundo. Quero pensar com calma essa pequena viagem. Esse sumir daqui para ir me encontrar no outro que hoje ainda desconheço. Viajar é se conhecer. (A não ser que você viaje apenas para comprar). Tem que haver potência no contemplar apenas. Apenas isso.
Contemplo os anos que por mim passaram e que junto a eles me levaram. Era 2012 quando eu saí de mim. Viajei tanto com meu trabalho. Fui apresentando uma peça de teatro por vários estados do Brasil que nunca havia conhecido. E vi gente e gentes me viram. E beijei nas bocas e fiz amigos. E deitei em camas, tomei cafés distintos, eu nunca - desde sempre - amei o turismo. Mas há turismo que me interessa: o dos afetos.
Deu 2013 e minha sina recém descoberta continuou sem freio. E fui conhecer outros lugares e num deles eu me apaixonei. Era talvez o primeiro amor. Foi. E deu 2014 para 2015 ele se foi e então o amor passou. O amor virou outra coisa e esse negócio de definição do que é e do que não foi é um desperdício de energia. Hoje me vejo em mim reunido. Vejo-me nos meus amigos, meu porto mais firme. Eu me vejo hoje na família que por tantos e tantos anos eu me fiz esconder. Eu estou mudado.
Crescer não é a mesma coisa que simplesmente viver. Crescer exige reflexão. Exige olhar para o antes e para os depois que ainda nem sequer chegaram. Exige parar um instante e postar num blog um esboço de um seu retrato para então perceber que a vida foi seguindo e que talvez você ainda esteja parado no ponto em que te fizeram um buraco no peito que você já não anda bem como não dá vírgula ou ponto final. Eu mudei tanto e ninguém saberia disso em primeiro lugar que não fosse este blog. Aprendi a me revelar aqui. Por vezes, desprovido de total sinceridade, apesar de tanta dor e beleza. Por vezes, neste blog, antes mesmo que eu compreendesse algo sobre mim, aqui já se escrevia minha vida. Que belo é o poeta quando refém de sua poesia.
Olhar para trás às vezes é o melhor caminho. É preciso porque só assim você redescobre que nunca foi feito de uma coisa só. Sempre tiveram tantas e tantas coisas, tantos acontecimentos, que estar preso a um trauma só é redundante e diminuidor do tormento. Há que se olhar o bastante de tudo já vivido para então perceber: que nada permaneceu na mesma constância que hoje a sua cabeça te faz viver. Tudo passou, passou o tempo, morreu aquela gente toda, nasceram outras crianças, outros parentes, dores imensas se fizeram plantar e germinaram, então não me venha com esse papo da não mudança, não me venha com essa história ruim da inércia, do tempo que não passa, porque tudo passou. E, às vezes, só mesmo a poesia para te dizer. Só mesmo a poesia para te tirar para dançar e então, enfim, fazer com que compreendas que a vida é isso mesmo, cara. A vida é isso mesmo: definição que nunca virá nem nunca vingará, mesmo que venha aos pedaços.
Hoje sinto que poderia escrever mais tantas e tantas linhas. Mas há um sorriso aqui dentro de mim que me permite ir dormir sem tanta energia a me saltar pele à fora. Poxa, quanta coisa, cara. Quanta - já - história. É bom isso do tempo, não? Percebo estar falando comigo mesmo. E não será sempre assim? Mesmo quando ela estiver me olhando, ela, uma amiga, mesmo quando estiver me olhando e estivermos papeando, mesmo assim, perceba: eu sempre estarei comigo tramando confidências de um mundo em pleno vapor.
Queria dizer sobre essa música que escuto no fone de ouvido. Às vezes meu corpo vira abrigo para o amor que ainda não veio. Às vezes todo o meu corpo quer morrer por tanto querer abraçar alguém que sequer talvez tenha nascido. Eu preciso disso. E não estou sofrendo alguma solidão, eu preciso como quem respira. Como quem estica a voz e o corpo para anunciar à humanidade que está aqui, precisando porque precisa. E essa música tem gosto doce, essa música sequer me enche os olhos de lágrimas, ela apenas me acaricia, como quem poderia morar comigo dentro de mim por semanas a fio, sem pretensão de existir no mundo.
Tem essa expressão: às vezes. Porque a vida é mesmo cheia de interrupções e inconstâncias. Será essa uma carta aos meus filhos? Será uma carta aos filhos que não me vieram e que, no entanto, aqui estão? Não foi essa a ideia lá no início, mas pode ser se eu estiver achando que é. Esse é o primeiro ano que começa que eu não tenho vontade de rebobinar e escrever algo sobre o já passado. Talvez porque tudo já esteja aqui escrito. O percurso, o amadurecer, o morrer e sempre renascer sempre esteve junto a mim, caminhando, lado a lado, ou mesmo adiante, lá onde eu ainda não consigo enxergar.
Se alguma dor pudesse dizer este presente instante, ela se chamaria Sinceridade. Não sei se gosto. Talvez Honestidade. Tem essa coisa da letra maiúscula, mas a verdade - aquela que escolhemos ser verdade - só mesmo quem diz é que sabe. Talvez este texto - é um poema? - me sirva por muitos e muitos meses. E lá na frente, eu perceberei o mundo aqui transcrito. Eu já havia reconhecido isso, mas é verdade; eu fiquei triste muito cedo e minha ação no mundo virou revelação das desgraças que me apavoram e moldam o corpo. Essa coisa de felicidade, essas exigências que pesam no início de cada novo ano, não, elas não me interessam.
Cá estou eu, fumando cigarros e bebendo cervejas, os olhos pedindo cama e o corpo pedindo um beijo que me espera ali nos quilômetros à frente. O sentido vai sumindo e tudo se torna então sensação. Pura. A música me acompanha e eu sempre pensando em desenhar. Faz uns dias eu comecei a desenhar esboços para um novo mundo. Um desejo pomposo, talvez, mas honesto. Havia comprado um pequeno caderno preto e também umas canetas pretas. E parei nos últimos dias, em distintos momentos, para fazer os desenhos que acompanham esta postagem. Que novo mundo é esse, Diogo?
É engraçado. Para os outros eu me nomeio Liberano. Para mim mesmo, quando comigo converso, ou me chamo de Diogo ou me chamo de amigo, simplesmente. E quando assim converso muito comigo eu sempre me rendo e pergunto: e o mundo, Diogo? (Como se a dor de um homem só já não fosse de todo um mundo, eu sempre me pergunto aquilo que vai me doer nas próximas linhas).
O que temos para hoje não é ainda o que tivemos para ontem? O que acontece? Devo acender outro cigarro (não para amenizar a rima que não veio nem virá), devo acender outro cigarro (para intensificar aquilo cuja dor me ultrapassa)?
A mentira do mundo já nem me machuca. Não quer dizer que tenha me tornado indiferente. Não mesmo. Mas nessa conversa esses nomes e categorias jamais serviriam. Num mundo amoral como o nosso é importante conversar como uma criança conversaria: mais interessada no acontecimento do que na sua serventia. Sei lá, sabia. Quase tudo muito horrendo. Enquanto a dor não me arrombar o peito e o estômago, talvez, tudo ainda pareça mais mentira do que acontecimento. Mas está horrível, não está? Este mundo está tremendo a mentira que fez brotar e que o engoliu. Sinto-me burro para falar sobre qualquer coisa e sinto - eu sei - que querer me calar é tudo o que o mundo hoje quer me ensinar. E eu não acredito. Não vou. Não cedo. Quer aquilo que diga corresponda aos ditames da contemporânea filosofia, ou não, não me importa. Tudo vai do que sinto. E se choro agora, ninguém saberá exceto eu. Mas amanhã, talvez, eu já terei me esquecido.
Eu gostaria de invadir alguns lugares. Gostaria de, dormente, dormir ao lado de quem me abate. Queria conhecer os ditadores todos. Tomar café com eles, sem ser visto. Queria ver os políticos todos, queria ser o papel higiênico que os limpa, queria ser o sorriso sincero que, porventura, neles nasceria. Queria ser a brisa e sair de mim. Para o fora eu queria ir. Lá onde tudo me desconhece e a minha ira do mundo virasse lenço umedecido. Por um dia que fosse eu não queria estar nascido, queria ser coisa outra, queria ser um segundo que durasse uma hora, um dia, um ano que fosse eu queria estar junto ao poder dos homens que dizem poder.
Ainda que em poesia - e nela eu acredito - eu queria acreditar que aqueles que hoje doem por razões de Estado, eu queria acreditar que estou ao seu lado. No chão das ruas, na escuridão das cidades, nas esquinas todas, eu hoje queria ser a intimidade. Mas, sobretudo, queria mais. Queria estar nos palácios, para fazer escorregar da mesa real um nobre talher. Queria ver o rei pedindo ao escravo - nem sequer pedindo - aquilo que ele inventou merecer: serventia. Desejo estranho, mas eu queria. Eu queria ver de perto o horror que meus olhos já estão cansados de acreditar. Eu aqui trancado em poesia imaginando se é possível que o homem teime em destruir outro homem apenas para se subir, se aumentar.
Apenas? Não é pouco. O homem matando o homem para não ter que lidar com a sua fome doentia. O homem, que projeto, não? Que projeto mal resolvido. Que loucura essa a humanidade. O que nos sobra? Sobra o Deus que há muito matamos e que virou a religião do dinheiro? Onde podemos aportar? Nas férias com os amigos no estado outro que não o meu? No sorriso, podemos, dormir no sorriso dos que já não tem sequer dente para sorrir? É preciso dente para sorrir? Como então começar outro novo ano que já começou sem nem te pedir licença?
Faltam esboços para outro novo mundo que ilustrem essa minha impaciência. Mas seguir é só o que restou e vou no prazer profundo certo de que escrever é forjar, ainda que em imagens - e elas existem - escrever é forjar mundo. É tudo mesmo muito confuso e cheirando a qualquer coisa. Mas existe. A dor existe, a guerra, a fome, tudo existe, quer tenha sido inventado ou não, as coisas ruins e pavorosas tomam a água que você bebe a cada manhã. Que eu bebo (e olha: eu tenho bebido mais cerveja industrializada do que água industrializada). Onde está a água?
A lama. Há lama. A poesia perde as pernas ante a perversão deste mundo. O que era uma conversa comigo mesmo virou um quiproquó sem rumo. Mas eu ainda estou aqui. Tramando bem pequeno outra coisa que não a mesma, eu vou seguir meu ano amenizando a guerra, destruindo o fascismo, eu vou seguir tentando porque a despeito de conseguir, é tentando que se abre outro mundo. Voltarei a mim mesmo, mais uma vez, para conseguir ir dormir.
Em poesia eu me afago e destruo. Mas sou eu quem faz isso, não o mundo. (Ainda que isso seja um pouco inverdade). Fico pensando no que está ao redor: no quarto ao lado (minha mãe e meu pai dormem). No quintal o cachorro também deve dormir. Tem a fruta que morre. O céu que acorda. Tem o tempo que ninguém pega e dentro de alguma casa vizinha outro alguém que não conheço deve agora, nesse exato instante, coçar a sua perna ou a sua barba. Vês? Que mundo é possível quando nem mesmo o ao lado é possível saber? Mundo é máquina que não cessa e saber é projeto moderno ultrapassado. É demanda por controle que escapole de imediato. O que quero dizer? Já perdi, mas segui dizendo. Essas palavras não acabam e o mundo segue em destruição, mas, vejam:
A quem possa interessar esta crise na qual nos enfiaram?
A quem pode servir a tristeza em nós plantada?
Quem vai se usar da dor em nós grafada?
Se sabemos a quem interessa toda essa miséria, então o sorriso nasce feito revolução. Há os que dizem não, há os que pregam o nunca, os infelizes que acreditam no sempre, há de tudo nesse mundo. Mas há também aquelas e aqueles que dizem sim. Simples assim, dizem sim. Tenaz confiança. Desmedida fé. Tudo está certo. Porque a força é afirmar sem medo de morrer. A força é saber que é cada um que faz o todo e não o cada um fazendo a si próprio. Se o meu medo germina em potência para o fora, então, eu percebo que o mundo é menos sobre o mim. O mundo eu faço parte, mas o mundo segue me reintegrando a tudo que vier, mesmo depois de mim.
No final do texto, reencontro o medo. O medo que é a certeza de que nada disso é sobre mim apenas. O medo que é a certeza de que eu estou aqui apenas para passar e nisso transformar paisagens. Paisagens que uns destroem e que outros, frente a elas, simplesmente reagem. Sim.
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