Não posso falar deste ano de 2014 sem me lembrar das repetidas vezes em que fui acordado, quase sempre por volta de 08h30 dos sábados, por telefonemas dos vendedores do jornal O Globo, tentando - quase que desesperadamente - me fazer aceitar a assinatura do jornal, que fosse por R$ 1,99. Lembro-me com precisão do último assédio que sofri e da resposta que dei à atendente: você realmente quer saber o motivo de eu não querer - de jeito nenhum - assinar esse jornal? Perguntei a ela: você tem tempo para me ouvir? Confusa, a atendente acabou por desligar o telefone me dizendo: certo, senhor Diogo, obrigada de qualquer forma.
Gosto muito de pensar que, talvez, aquela atendente, depois de inúmeras tentativas frustradas, tenha se perguntado: por que as pessoas estão recusando tanto assinar O Globo? Gosto de pensar, infelizmente, que ela tenha perdido algumas noites de sono pensando no que fazer caso se demitisse de seu emprego. Gosto, ainda mais, de imaginá-la no seguinte beco: faz sentido trabalhar para um jornal que, pelo visto, faz tão mal a tantas pessoas? Nesse ponto sim estamos falando de 2014, do que foi, do que é e do que ainda, durante muitas e muitas décadas, será um dos anos mais importantes deste século.
2014 para mim foi o Ano do Armário. Numa definição assumidamente poética (e não pouco política), indo em direção outra que não das definições astrológicas ou do Calendário Chinês, eu afirmo que, ao meu ver, 2014 foi sim O Ano do Armário. Anos do Armário são raros porque são anos em que as dinâmicas públicas e privadas, as tensões subjetivas e sociais, se confrontam de maneira evidente e, por extensão, acabam por forçar a abertura das portas dos armários nos quais estavam guardadas (ou escondidas, trancafiadas, caladas, apartadas). Pois se é o destino dos armários, em Anos do Armário, terem suas portas rompidas e seus íntimos revelados, é inevitável que nesses anos o saldo será de mistura, de encontros e caos profundo, de irradiações e contaminações recíprocas (tanto de quem estava dentro dalgum armário, como de quem se julgava fora deles).
Faço aposta na palavra Armário porque somente por meio da poesia me soa capaz de ler o mundo e interpretá-lo, somente pela poesia me parece possível abrir caminhos onde é dito ser impossível dar mais um passo. Passada esta explicação, preciso confessar que a palavra armário me soa muito curiosa. Ela traz dentro de si outras palavras, como arma, rio, Mário e um neologismo: armario não é apenas armário sem acento, mas uma palavra que faz alusão ao universo bélico e do poder bélico residente num determinado corpo ou mesmo armário.
Uma tarefa política: sair do armário.
Disseram-me que eu, como homossexual que sou, um dia - finalmente - saí do armário. Ora, mais que piada, tal expressão denota um movimento digno de respeito: sair do armário seria como assumir (para fora de si) alguma coisa ou postura que estivesse escondida, trancafiada numa esfera íntima e, nesse sentido, fora do mundo. Sair do armário é uma tarefa política posto seja dialética. Ora, o armário tem usos muito além do trivial armazenar de peças de roupa ou objetos domésticos. Muito além de esconder bruscamente a amante quando o coito do homem traidor é interrompido pela mulher após um dia de trabalho, é curioso observar que o armário é sempre usado para esconder, mas nunca para guardar ou cuidar. O armário nunca é usado para proteger. Mas poxa, a que nível o armário foi rebaixado! Ao armário é só possível o hábito e nunca outro uso? Não. Não mais. Pois bem, creio que 2014 foi o ano que reinventou o uso do armário. Foi o ano que profanou o uso habitual dos armários para apresentar outros usos possíveis e impossíveis. Tentarei, a seguir, rememorar alguns fatos que comprovem minha aposta na importância deste 2014:
Os armários foram estuprados. E de dentro deles saíram os ditos pobres e desprovidos. Saíram vestidos de suas roupas de marca, munidos para o jogo (até então exclusivo) do consumo, para frequentar o modelo mor de armário deste nosso mundo: o Shopping Center. Ora, não seria o Shopping um espaço público? Ora, caso não seja, não seria um Shopping um espaço, ao menos, público para o consumo? Ora, então eu posso entrar, eu posso comprar a casquinha do McDonald's, eu inclusive não sou obrigado a comprar. Mas por que foram tão mal recebidos os caras e minas dos rolezinhos? Foram mal recebidos porque o Shopping Center é o armário da classe média que se julga exclusiva e privilegiada. É espaço segregador que separa uns de outros e, por meio do poder financeiro, determina quem pode ou não pode certas coisas. O Shopping é o modelo é a ilusão de certo tipo de humanidade que se julga alheia e mais importante que outra parcela de seres humanos. O Shopping precisa e foi avassalado nesse 2014 e que assim continue sendo.
Homossexuais assassinados de maneiras distintas, inúmeras e sempre violentas e perversas. Ora, mais que sofrer o crime, 2014 nos descortinou a evidência incontestável não do preconceito e da truculência característica do homem, mas de uma profusão de seres humanos que são aquilo que são, independente do que o senso comum determina como permitido. A morte de inúmeros gays, transsexuais e todos aquelxs que escolhem viver o desejo de seus corpos é a certeza maior de que elxs existem. A morte lhes dá a sanção de sua existência. São os protestos que atravancam o trânsito dos carros e refazem o fluxo das ruas, gritando pela cidade e pelo reconhecimento das ditas minorias. 2014 foi o ano em que o artigo feminino "a" e também o "o" masculino tiveram que se somar ao artigo "x", que representa (e, nisso, legitima) a existência dos que sobrevivem para além dos gêneros masculino e feminino. Homem ou mulher é pouco diante da profunda multiplicidade da natureza. O "x" é a senha que abre o armário e devolve ao mundo a complexidade que a ele pertence, mas que havia sido trancafiada.
Ou eu poderia falar um pouco sobre a Comissão Nacional da Verdade, que rompeu o lacre de um armário-cova no qual eram aprisionados, desde o "fim da ditadura" brasileira, a vida e a morte de uma série de civis que lutaram contra a perversão que o amor pelo poder foi capaz de gerar em alguns homens. A Comissão Nacional da Verdade abriu este armário sepulcral ao revelar nomes, nomear culpados, culpabilizar responsáveis e responsabilizar os autores pela obra horrenda que foram capazes de escrever um dia. E está online, e você pode fazer o download de tomos e mais tomos de vidas interrompidas. O armário rachou, mais do que ter sido aberto. Em anos como este, 2014, se o armário não é aberto, abre-se ele sozinho.
O fascismo nosso de cada dia
A política brasileira resume em si toda a arqueologia do Armário e toda a revolução de sua Abertura. Pela disputa presidencial entre os candidatos Aécio Neves e Dilma Roussef foi possível ver a profundidade que a mídia tradicional é incapaz de enquadrar. Não sei dizer se o mais incrível foi ver a Dilma ser reeleita ou se foi ver Aécio Neves perdendo as eleições. Parecem afirmações idênticas, mas não. Dilma ter vencido, em primeiro lugar, reforça a continuidade de um projeto de governo (de Nação e de Mundo) que se pensa mais para fora do armário do que para dentro das gavetas de uma burguesia mobiliada e lacrada em seus escritórios e resorts. Diz respeito a um governo que abre as portas, janelas e bibliotecas de universidades para fomentar a educação e não apenas o abrir de carteiras e contas bancárias ao consumo sem escrúpulos e intolerante à sustentabilidade. Ver Aécio perder, no entanto, mais do que perversamente divertido (lembro da cara de Luciano Huck num vídeo divulgado na internet no qual ele acompanha - absolutamente incrédulo - o saldo da votação que reelegeu Dilma e não Aécio), foi importante para trazer aos olhos e à consciência o quanto estamos rodeados de inimigos, o quanto estamos cercados por um projeto individualista, exclusivista e fascista no que se refere aos direitos humanos. Aécio ter perdido, junto à recrudescida marcha pelo impeachment de Dilma em São Paulo, provam - mais do que qualquer outro fato - o quanto há trabalho pela frente. 52% de Dilma versus os 48% de Aécio desenham de maneira dramática a tensão entre o desejo de um país aberto (Dilma) e de um país de privilégios, armários e cofres lacrados (Aécio).
Estive na Europa, pela primeira vez, apresentando um espetáculo teatral que escrevi. Em Edimburgo, na Escócia, vi de perto as "comemorações" pelo centenário da Primeira Guerra Mundial. Comecei 2014 pensando em 1914, preocupado com o destino de todos nós e da ignorância humana. Será que seremos capazes de fazer novamente - e com ainda mais perversão - a violência da guerra? Termino o ano ciente de que sim, o ser humano é capaz de piorar. Mas, ao mesmo tempo, não quero ser suscetível aos lugares comuns, nem sequer à dormência da mente: 2014 foi o ano em que se abriram muitas e muitas frentes de solidariedade e nenhuma delas foi divulgada em rede televisiva nacional. Os inimigos deram as caras, assim como o ser humano. O gay mais uma vez deu bom dia à vida e, mesmo que centenas tenham sido assassinados, outras centenas seguiram e aqui e agora ainda estão, programando o futuro. Sim. Eu tenho inimigos. Aos 27 anos me fiz certo de ter a quem combater: não acredito em paz, não acredito no feliz ano novo, mas acredito - com veemência - na possibilidade de alguma coisa que não a completa degenerescência da humanidade. Trabalho para a vida, para a diferença, para a multiplicidade e para a rede. E sim, agora está claro, há quem trabalhe contra um mundo outro que não apenas este.
Um negro acorrentado pelo pescoço, com uma tranca usada para a segurança de bicicletas, num poste em plena cidade. Um negro acorrentado pela cabeça num poste. Isso não pode significar coisas tantas que nos impeçam de ver que sim, a situação é desoladora, mas ainda assim, também por ser terrível, é múltipla e nos solicita respostas e escritas também outras. Em anos como este 2014, Ano do Armário, já não parece ser possível a exclusividade. O mundo é da gente, pois que as escolhas sobre como cuidar e usar o mundo também sejam de muitos para além daqueles poucos (os tais das tais tantas empresas que controlam o mundo). Penso: mais do que divulgar por aí como o mundo é pervertido e como não há mais o que ser feito, por que é que não divulgamos por aí a vitória imensa e pequena de cada dia? Um beijo, uma abraço, um casamento, um voto de confiança, um taxista que devolveu o celular esquecido, alguém que me chamou a tempo de eu resgatar a minha carteira caída em meio à avenida... Estão tentando nos convencer que o mundo é impossível, mas a impossibilidade de tudo, tal como é vendida, é apenas maneira perversa de manter o mundo possível apenas para uns poucos tortos que ainda acreditam em nobrezas e realezas, mas são parvos de realidade.
Contra a única voz Midiática
Às redes sociais, o meu obrigado. Obrigado por me aproximar, por me permitir me aproximar, de tantos, tantas e tantxs que eu sequer conhecia e dos quais eu hoje dependo para continuar minha vida. Obrigado, Redes Sociais da Internet (blogs, Twitter, Facebook, Instagram e muitas outras), por me esfregar na cara tanta coisa além do que eu costumeiramente já sabia ver e ler. Obrigado por me confrontar com a diferença e por aguçar o meu gosto ou desgosto por pessoas, valores e ideias. A internet é a zona dos armários abertos, das janelas e portas permitidas ao livre uso. A internet é hoje o mais próximo do que possa ser o mundo. Pode-se muito com essa realidade inventada e rapidamente modificada, pode-se fomentar o que há de pior no homem e no mundo, mas também pode-se muito mais que isso. A internet foi responsável por enfraquecer o império da Mídia que molda os valores correntes nesse mundo. A internet me deu as fotos dos corpos mortos das crianças alvos da guerra pelo poder. A internet me fez conhecer o amor com que hoje estou casado. Ela me fez ouvir e ler contra e a favor de tudo aquilo frente ao qual eu aprendi a tomar posição.
Este foi o ano do desarranjo. O ano em que as certezas morreram intranquilas e ano no qual a vida voltou a regurgitar, aberta e explicitamente, a sua incoerência tenaz e inerente. Que 2015 não seja um ano novo e pretensioso por zerar tudo o que foi vivido. Que seja um ano novo no sentido de ser novo também o uso que faremos de tudo o que foi vivido neste ano que agora se encerra. Que sejamos mais honestos com nossos desejos e mais desimportantes com nossos quereres mais imediatos, que saibamos abrir mão e não abrir mão. Que Deus siga caindo e declinando, que Deus siga perdendo a sua importância para que os homens passem a encontrar neles próprios a responsabilidade pelas suas chacinas e pelas suas crianças.
E o teatro? Que é minha profissão. E o teatro? Seguirá anacrônico e determinante. Seguirá o teatro desimportante e absolutamente em crise. És o teatro o lugar único ainda onde eu toco, de maneira honesta e inteira, a dimensão do que possa ser uma vida boa e humana. E que em 2015, possamos usar os nossos armários para guardar os valores e qualidades de um futuro melhor e mais partilhado. Que usemos nossos armários não para esconder coisa alguma, mas para não nos esquecermos do que já vivemos e de como o adiante diz respeito ao que estamos - todos nós - fazendo deste agora. Foi um ano em que desisti do espetáculo para reencontrar a arte como exercício da experiência entre os homens, arte como convite ao compartilhar incessante daquilo que se sente e daquilo, sobretudo, que se incompreende.
Comecei esse longo texto falando do jornal O Globo. Não foi por motivo qualquer. 2014 foi um ano contra-teológico. O ano em que a única voz, a Voz Midiática - que sempre achamos ter sido a voz de Deus - foi combatida e o mundo pôde, enfim, ouvir os sussurros de outras vozes enclausuradas em armários inúmeros. A mídia como portadora de uma voz única e divina, portadora das respostas todas, tal mídia teve seu império metralhado. E, com isso, vozes outras se ouviram. Foi o ano em que ouvi os sussurros dos que foram sob a terra oprimidos, ano de sussurros tornado audíveis. Os sussurros aumentam e já se pode ouvir sua profecia. Vem vindo um tempo em que se posicionar é demanda sem a qual não será possível a vida. É chegado um momento em que a vida volta a ser orgânica e não há possibilidade de não ser rendida pelo o que sente o corpo, cada corpo, todo corpo. Corpo exposto, desvelado, corpo para fora, no precipício, reivindicando ser ouvido e ser tocado.
Bem-vinda, Vida, ao seu novo lar. Aqui é agora. E o agora é tudo o que há.