Meus amigos aqui presentes: André,
Diones, Gustavo, Lígia e Vinícius,
Eu não posso construir um
crocodilo,
Porque nesta última madrugada em
que sofremos um assalto juntos,
Eu descobri já viver dentro de um
crocodilo.
Eu não posso construir um
crocodilo porque não tenho a agilidade dele
E, quando dentro de uma mordida
sua,
Eu não luto, apenas me anulo e
passo a contar:
o tempo dos verbos,
os socos na cabeça,
o rococó dos versos
e o estilhaçar de vidros.
Eu, quando dentro da mordida que
tomamos ontem,
Apenas me silencio e observo:
Como o homem fez o mundo se
tornar apenas isso.
Não posso construir um crocodilo
porque o metabolismo dele catalisa muitas forcas
frente às quais eu tenho apenas
vontade de voltar pra casa e voltar a acreditar
que a selvageria do mundo é
apenas e ainda
um mergulho qualquer em qualquer piscina
azul
e com boias coloridas
e com vocês batendo braços junto
comigo.
Mundo sem crocodilos, sem
trocadilhos, sem armadilhas.
Mundo simples que rima apenas com
abraço, moletom, poesia.
Eu não posso construir um
crocodilo porque seu metabolismo cataboliza
hormônios e enzimas que
transformam em pasta homogênea e cinza
tudo o quanto é pele, carne,
sangue, músculo e grito.
Metabolismo que transforma em merda
punhados de últimos instantes (que
não vieram)
punhado de beijos (que não
puderam ser dados)
beijos que foram para o sempre do
nunca postergados.
Eu não posso construir porque o
tempo que me resta agora
é só o tempo daquela mordida de
ontem, bordada a dentes finos e frios
Que devoram iPhone, moeda, tênis
calça camisa
e todos os sorrisos que um dia nos
existiram.
Eu não posso construir um
crocodilo porque não há espaço aqui dentro.
Dentro desse estômago onde
moramos
Não há espaço para erguer escadas
e construir janelas,
Não se pode sair para respirar,
Pode-se apenas olhar – resignado
– para este dentro
E ver como a digestão desse crocodilo
é lenta
e vai matando, pouco a pouco, o
ser humano disposto em filas.
Eu hoje não posso construir um
crocodilo, meus amigos,
Porque me falta o braço que ontem
me perfuraram,
Falta-me o desejo expropriado de
poder querer acreditar
que tudo isso pudesse ser outra
coisa menos destrutiva.
Eu não posso construir outro
mundo porque dentro desse estômago
A luz é escura e a gente sequer
pode se olhar com calma.
O mais perto de amor que eu posso
sentir agora por vocês me vem pelo cheiro:
O cheiro da tangerina,
O cheiro do café com pão e queijo
e tomate
E poesia.
Mas, depois de ontem, eu cheiro a
face de um amigo e, quando movo minha vista para ele,
Seus olhos já não estão mais junto
ao seu rosto.
Eu sinto um braço me afagar,
Mas na sua ponta já não há mão
nem sequer mais dedos
Ou unhas (que eu pudesse pintar
na manhã de ontem, Lígia)
Que mundo é esse que nos devora e
que mesmo assim nós alimentamos todos os dias?
Como a gente faz para criar
qualquer outra coisa que não soco na cabeça, André?
Que não seus olhos marejados por não
querer aceitar que não haverá saída alguma?
Meu peito dói mordido entre a ira
de sentir pena e a pena de sentir ira.
O plural de socos nas nossas cabeças
ainda me volta como fúnebre sinfonia.
As pausas entre as vírgulas que
ontem nós tentávamos desvendar
Ontem mesmo foram bruscamente resolvidas
E dentro do nosso silêncio, amigos,
enfiaram este imperativo incessante,
Que apenas repete e repete:
Desistam dessa ideia torta de
fazer poesia!
Desistam de querer resolver o que
não tem mais saída!
Eu estou dentro do crocodilo
agora.
Meus braços se abrem e pedem por
paz.
Pedem por alguns minutos que seja.
Pedem por uma nova cena, pequena
e miúda, na qual a gente possa fingir morrer
para conseguir se esquecer de
alimentar o crocodilo
E, assim, fazer restar ainda
alguma sensação de vida a ser vivida.
Eu suplico em silêncio porque sei
que o crocodilo ouve a conspiração de suas entranhas.
O crocodilo ouve os pedaços que
abocanhou lhe tramando um motim.
Ele sabe que nós queremos dançar
a tristeza desse corpo imundo
tão carente de alguma loucura que
medicamentos não possam resolver.
O crocodilo ouviu tudo isso que
eu acabei de dizer.
Mas é que daqui de dentro desse
órgão-baço-teatro-desnecessário
Ele pensa não haver força capaz
de fomentar vômito diarreia nem sequer intrigas.
Mesmo assim ele quer saber, por
curiosidade, por que desejamos tanto alforria.
Eu poderia morrer agora, meus
amigos
Se ao menos fizesse acontecer o
reencontro de algumas vísceras.
Eu poderia morrer agora, amigos
Desde que meu corpo-morto virasse
ponte ao outro
E fizesse juntar de novo o dente amarelo
ao lábio carcomido de heroína.
Eu poderia morrer agora se
fizesse acontecer sorriso
dentro desse estômago-escuridão que
só come
E mata
E come
E matando se autodenomina vida.
Como pode?
Vendo-me moído no olhar triturado
de um de vocês, eu me pergunto:
Como pode termos chegado nesse
ponto tão sem diferença?
Tão já resolvido e cronometrado?
Crocodilos não tem mastigação.
Eles abocanham o mundo e o jogam
– aos pedaços – para dentro de sua caverna-estômago
fazendo de suas presas vítimas
meio ao meio entre morte e vida.
Eu poderia morrer agora, não
tivesse eu já morto, meus amigos.
Mas aqui, agora, aos pedaços e
com vocês reunido,
O meu braço amputado coagula com
a força do seu sorriso atravessado,
Minha boca seca desabrocha com o
sangue da sua fala interrompida.
Eu posso me erguer, ainda que
trôpego.
Eu posso gritar, ainda que rouco.
Eu quero acordar e ligar nossa vitrola.
E erguer cabana dentro desse
estômago
E fazendo alarido, eu posso lhes
convidar:
Dancem esse réquiem comigo?