Passado alguns meses, de maneira convicta, ele ponderou: este talvez seja o momento de ultrapassar a mesmice desse meu gesto e começar a fazer diferente. Sobre o que ele está falando? Vamos com calma. Sem pressa. Ele está sofrendo de amor, por isso, aqui, cada linha será feito uma gota lançada no oceano. Gotas que não farão diferença durante um longo tempo até que, num certo dia, serão grossa e caudalosa onda.
Esse meu gesto de não compreender o evidente. Esse meu vício de dizer que compreendo mas de caminhar aos tropeços, como se para sempre estivesse doente. Não quero mais. E ele se dizia essas coisas com uma convicção assustadora, quase impossível de quebrar. Anda. Faz alguma coisa. Ele se dizia. Solto e avulso em sua solitária sala de estar.
Ele sou eu, cara leitora, caro leitor. Isso é evidente, porém, é preciso frisar: ele é ele antes de me ser. Porque é sendo ele, é escrevendo o nome dele e não o meu, que eu me modifico e faço dos meus desejos e angústias outra coisa que não o mesmo. Sim, eu estou usando ele para conseguir me ser. Eu uso a ficção para me consertar, para me confrontar e me amadurecer.
Dito isso, ele pensou, já tantos meses, não é possível que ainda não tenha cessado essa dor. E colocou uma mão sobre o peito (estava sem camisa). A mão sobre o peito, terreno baldio, ele sempre assim se reconhecia. Eu, terreno baldio, feito página em branco para todo e qualquer desastre. O que ele desejava - e que nem bem sabia - era justamente fazer de si objeto de estudo. Ele queria acreditar que para além do vivido, existia alguma coisa em seu percurso capaz de o impulsionar ao adiante. Precisava haver (e eu escrevo apenas para ajudá-lo a se encontrar, a se compreender).
A mão no peito. A noite escura e fria, agradável, ele gostava da noite assim. Silenciosa podendo ser barulho, escura podendo ainda assim ter algum brilho. Pegou o celular sobre a mesa e ponderou, novamente: eu poderia ligar. Poderia mandar uma mensagem perguntando: está podendo falar? E então o que viesse depois não importa prever. Devo eu me manter na distância ou devo, de vez, me complicar, me puxar o tapete, me contradizer?
Suas perguntas habitavam a atmosfera da solitária casa. Os livros de filosofia, dispostos nas prateleiras, pareciam querer se abrir e lhe fazer algo compreender. Mas ele não tinha olhos tão assim abertos, porque no instante em que mirava o fora, o dentro lhe pedia atenção e o dividia: ele tinha sempre que mirar o fora perdendo tempo com o próprio desassossego. Ele estava carregado, estava até mais velho, o rosto mais marcado, a coluna mais dolorida, os sonhos meio já gastos, a esperança curta e a face, quase sempre, sombria.
Mesmo o mais sensível dos seres humanos que já conheci, mesmo ele, ainda assim, certa vez não conseguiu fazer conversar a consciência e o coração. Cada um falava uma língua e a comunhão nunca foi realmente possível. Ele se angustiava ao perceber a clareza da cabeça que, num segundo, era calada pela batida do peito, pelo nervosismo das mãos. Não havia jeito. Seria mais uma noite carente de abrigo. Seria outra noite no mesmo esquema: beber, fumar, dormir, tentar sobreviver ao instante-soluço.
Nem sequer chorava. A face seca, mirando a fria noite, ouvia desatenta as músicas em repetição desenfreada. Percebia, num momento, que o seu gosto pelas coisas havia se perdido. Nada importava tanto mais. Estava avulso, solto, sem porto onde deitar. Sem abraço onde pudesse durar. Quis chorar, mas nem sequer conseguiu (nem sequer fez força). As coisas todas estavam assim fazia já um tempo. E então ponderou, novamente, ponderou: o que eu estou vivendo é só essa chateação. Não que seja pouco, não que seja qualquer coisa, mas é só o que tenho.
E ficou na noite entretido. Sem diversão, sem devaneios, estava tranquilo. Aquilo que sentia, tudo o que estava vivendo faz meses nada mais era do que a certeza exata e límpida: estou doendo, estou chateado, não sei lidar com o amor, não sei o que fazer de mim e, no entanto, parabéns (ele se disse), parabéns por se permitir viver isso (sem trapaças).
Eu vou sair do lugar. Eu já estou saindo. É que demora a se perceber indo, mudando, reagindo. Eu ainda estou todo hábito. Eu ainda não tenho autonomia. Tudo hoje existe em função do que vivi um dia. Eu ainda não me desgarrei do amor, das coisas todas, eu não me livrei do amor que partiu, eu ainda estou em dívida. Eu estou ferrado. E uma dor que nem sequer doía, um incômodo o abraçava por inteiro. Se duraria uma noite e mais tempo, nem importava saber, pois o fato era claro: eu estou vivendo essa tristeza.
Ela é minha. Ela mora comigo. Eu não tenho motivo para me dar jeito porque assim é como eu estou. Isso é meu. Não seja covarde. Isso é tudo o que você tem. Então dure nisso, fique, dê as mãos ao inevitável. Você está doendo, você está certo, convicto, cheio de dúvidas, mas seus passos estão aqui, estão sendo dados. Não há saída. Parabéns. Assuma-se. Parabéns por se permitir. Não vai ser mais fácil, mas, pelo menos, você está sendo aquilo que acha ser: um punhado de aborrecimento andando à luz dos dias e concentrando-se, feito pedra que sente frio, no interior de cada noite.
Por hoje talvez seja só isto. Eu estou de olho nele. Eu estou mirando esse rapaz já faz um tempo. Ele é hábil, ele é sábio porque não quer esgotar a vida. Ele é maduro porque não espera respostas. Ele existe porque sua dor abriu espaço em seu peito e ele a regou, periodicamente, todos os dias. Nem sequer ele fala a palavra poço. Ele não está afundado, ele está apenas se vendo em outro momento, com outros contornos, perdido em distintos traços.
Prossiga, menino. Você é novo ainda e já com habilidade de velhos e seres já não tão meninos. Você tem corpo jovem mas voz de quem já declamou épicas e romances inteiros. Você não é fácil de enganar e, portanto, isto que estás a viver, é saldo de quem você é e foi durante todo esse seu curto tempo de vida. Que nem é tão curto assim, ele me contradisse.
Ele está agora na área de serviço de seu apartamento. É noite lá fora. Não há estrelas. Uma taça de vinho repousa ao lado das flores do seu pequeno jardim. Ele acende um cigarro. Ele mira o céu. Ele deseja que o seu amor, seu antigo amor, seu ex-amor, enfim, ele deseja que lá onde ele está agora, possa existir junto a um sorriso. Que ele esteja leve (ainda que não seja assim comigo, ele se diz). Ainda que não seja igual para todo o mundo, você está vivendo isso agora. Compreende?
Ele não me responde. Ele nem sabe que eu existo. Ele ainda vive o calor do momento e sequer compreende esses assuntos de espírito, de reencarnação, de física quântica, ele ficou um pouco cético depois que o amor veio, fez cabana dentro do seu peito e, na manhã seguinte, partiu sem avisar.
Ele está moído. Mas é noite ainda. E depois da noite todos sabemos o que virá. Ele também sabe. Virá outra manhã. Outra noite. Outro amanhecer. Outro amor, quem sabe? Nenhum. Nada. Ele restará seguro na sua solidão intensa e insatisfeita. Ele não sabe mais o que veio fazer aqui, ali, neste mundo. Mas ele sobrevive, de pé, de cueca, sem camisa, sentindo na pele o frio que hoje há para ser sentido.
Ele está do lado de fora. É isso. Hoje ele permanece do lado de fora. Mas amanhã, ou logo que possível, eu o levarei para passear.