Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2013
Este ano de 2013 está chegando ao fim. E eu nunca fui de escrever aqui neste blog sobre a vida propriamente dita, sobre o que corre nas ruas, sobre os dilemas políticos e sociais quiçá econômicos. Sempre escrevi sobre aquilo que passa e passou por mim, apenas o saldo que sobra na ponta dos meus dedos e no centro dos meus olhos. Porém, é tanta coisa acontecendo, foi um ano tão intenso que me senti impelido a pensar - com mais cuidado e atenção - sobre aquilo tudo que passou por mim.
Durante algum tempo da minha vida eu fui alguém que recortava coisas. Jornal, uma frase, uma citação, eu recortava tudo e grampeava, aprisionava num mural, tentava forçar à memória que aceitasse que aqueles recortes todos eram algo importante para mim. Outro dia, porém, abri uma agenda antiga e vi que os grampos do grampeador - aprisionando no papel um pedaço de um tempo passado - haviam se enferrujado e tornado aquele recorte algo impreciso, incapaz de ser lido ou novamente assimilado. Eu tentei, durante muito tempo, prender a vida, mas percebo - faz algum tempo - que quanto mais se impede a vida de seguir seu curso, mais então ela vai encontrando as fissuras para escapar do nosso domínio. Portanto, hoje, eu, inteiro, me deixo passar e deixo, sim, que passem por mim todas as coisas.
Carrego comigo aquilo que comigo quiser ficar. Sem exceder dentes ao mundo, sem querer aprisionar amores nem sentidos nem livros nem mesmo a moeda no bolso. Deixar as coisas passarem é a melhor forma de se descobrir vivo, de se fazer parte desse mundo imenso que também está passando (e levando tudo junto). A poesia, por exemplo, nada mais descartável. Escrevo um poema e me liberto ainda mais a cada verso escrito. Não há vida possível quando se quer muito viver. Pois bem, talvez estas palavras queiram dizer muitas coisas. Eu vou tentar. Passar por tudo o que me passou, mas sem pretensão de aprisionar. Escrevo como quem passa. Eu não vou durar.
A sua diferença do outro
Faz uns dias, vi uma postagem no Facebook que estava compartilhando uma foto. Na foto, um sofá no qual se sentava numa ponta o cantor Gilberto Gil e na outra ponta, oposta a ele, uma menina. Gilberto Gil estava, ao que parece, tocando um violão, viola, algo do gênero. E na outra ponta, a menina olhava para o próprio colo sobre o qual estava um aparelho eletrônico (ao que parece, um mp3 player, ipod, algo do gênero), que ela manuseava com as duas mãos. Do aparelho até os seus ouvidos, dois fones se estendiam e nos davam a leitura de que, enquanto o Gilberto Gil tocava, a menina ouvia alguma música.
Não sei se a descrição acima dá conta da simplicidade da imagem. Porém, essa mesma foto - compartilhada excessivas vezes por inúmeras pessoas - trazia à tona uma série de comentários que, em suma, manifestavam um ódio à menina, por julgarem que não pode existir a possibilidade de, estando lado a lado com o cantor da foto, cantor este munido de um instrumento musical, não pode existir a possibilidade de se fazer outra coisa no mundo que não seja ouvi-lo.
E então eu fui um dos que comentaram a foto. Escrevi: deixem a menina ouvir o que ela quiser. E depois, pensando, percebi como a foto assim jogada fora de seu contexto original pode significar muita coisa, inclusive aquilo que possivelmente nem estava acontecendo no momento em que a foto foi tirada. Escrevo para lembrar do espanto meu com a nossa intolerância. Com que cuidado? Com que cuidado e educação se vive em rede, em sociedade?
Eu não consigo acreditar que a menina da foto devesse ouvir Gilberto. (Eu não vou nem entrar nas possibilidades daquilo que realmente estava acontecendo no momento da foto. Vamos aceitar que era isso: ele tocando uma música e ela ouvindo outra). Eu não posso aceitar que ela precise ser diminuída, desrespeitada, apenas por não estar fazendo aquilo que deveria ser feito. Mas o que deveria ser feito? Ele toca e eu escuto? Assim? Obrigatoriamente? Não se pode agir de outra forma? Não se pode não querer ouvi-lo?
É por meio desse tipo de situação boba e trivial, que se repete inúmeras vezes por dia, que o ser humano se manifesta tomado por uma preguiça tenaz de transformar seus hábitos de mundo, seus vícios e sua forma de se relacionar consigo mesmo e com o outro. O que te faz menosprezar o outro? Quer seu discurso seja lindo ou não, o que te faz assassinar o colega ao lado só porque ele não gosta daquilo que você ama?
O simbólico custa caro ou 1989
Eu nasci em 1987. Muitos anos depois, no colégio, fui descobrir que em 1989 um muro, que havia sido construído para dividir a Alemanha Ocidental da parte Oriental, foi derrubado. A queda do Muro de Berlim, tal como aprendi na escola, simbolizou o fim da Guerra Fria. A Guerra Fria foi uma luta a versus b. Capitalismo versus Socialismo. Estados Unidos da América (EUA) versus União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Preto versus Branco. Homem versus Mulher. Bom versus Ruim. Belo versus Feio. Quente versus Frio. Requeijão versus Manteiga. Quer dizer: eu não estou preocupado com a verdade ou a falta dela nisso que aqui escrevo, eu não devo satisfação às Enciclopédias, mas eu nasci num mundo maniqueísta e incapaz de algum comum entre os homens. Dois anos depois do meu nascimento, a efetiva e simbólica queda do Muro de Berlim me brindou com a possibilidade de me misturar ao outro. O Muro de Berlim disse para mim: não precisa mais desse treco de pular cerca. Fique tranquilo. Estamos entre humanos. E o que eu faço agora?
Vejo que o tempo passou. É com pavor que penso que estamos começando o ano de 2014. Estamos nos aproximando quase do meio da segunda década do século XXI. Quer dizer: até quando vamos arrastar adiante aquilo que não condiz mais aos desejos de nosso tempo? Até quando vamos domar a febre de nossa época com remédio? Ninguém vai se embriagar com esse calor? Vai ser uma era de ar-condicionado? Como podemos frear a boca e falar com o peito? Com a pele? Com o coração? Até quando vamos soltar nossa incompreensão e ignorância como tiro e não como pergunta? Quando vamos pedir ajuda uns aos outros para dar conta daquilo que não conseguimos tocar?
Perguntas bobas. Mal formuladas. Mas a Guerra Fria segue operante em nosso mundo. Ela é a forma fácil de produzir perdedores. E de vender fantasmagorias de pódios virtuosos e virtuais. Quer dizer, é fácil, prestem atenção: só existem sempre essas duas opções: ou vai ou racha. Se você não pode ir, você racha. Se você racha, é porque não foi. Simples, né? Quem dera a vida fosse essa novela globulosa.
Vivemos um tempo de deslumbre. Em outras palavras, tempo de medo pós algum deslumbre que tivemos: de que o mundo pudesse ser meu e que dele eu fosse o dono e vencedor. Tempos encharcados de deslumbridades, tempo capa de revista, tempo raso, cova, tudo plano feito outdoor. O nosso milênio traz do escuro para à luz alguma diferença que durante séculos vinha sendo enclausurada. Há muita diferença dentro do queijo e do presunto que nunca foi dita, nunca foi desbravada. Cabe num só pênis mais fábulas do que na Bíblia inteira. Numa vagina, há mais bruxaria que em toda a série Harry Potter (o segundo livro mais vendido na Inglaterra, depois da Bíblia). Há muito mais que homem e mulher nesse mundo. Há mais inclusive do que só calor e frio. Por favor, até quando vamos lidar com o mundo e com os outros que nos rodeiam como se tudo e todos estivessem precisando ser resolvidos? Até quando vamos ficar nesse vício insuportável de voltar às caixas, às categorias, aos gabaritos?
Processo colaborativo
Crise de autoria e, por extensão, de representação. Eu quero dizer: como vamos abarcar a diferença que ocupou as ruas durante vários meses deste ano? Como vamos dizer que partido, que causa, qual motivo? Se cessarmos o esforço de explicar o instante, talvez ele passe por nós e deixe o seu eco profundo ecoando dentro de nós feito arrepios constantes. Mas se quisermos firmar na capa do jornal, talvez estejamos perdendo o instante e o convertendo em tristeza digitalizada (não ouvida nem posta no colo). A nossa noção de diferença é muito segregadora, aparthaida.
Diferença não precisa ser o estranho do qual eu me afasto, o estranho que eu repudio, não precisa ser - a diferença - aquilo que está errado (porque o certo sou eu, porque o certo está comigo). Quando foi que aprendemos que as coisas distintas como se manifestam não poderiam coexistir? Que dominação é essa? Neste instante eu volto a ser a primeira pessoa deste plural: nós. Coloco-me junto para, ao me maltratar, fazer o mesmo com você. Eu também estou sobrevivido nestas questões. Tentando mais que vivendo. Eu estou tentando. Por isso me junto ao rebanho dos gays homofóbicos, dos de esquerda capitalista, dos skinheads e dos que usam dreds. Eu me junto aos negros racistas, aos evangélicos versus evangelistas. Eu converso com o letrado que oprime o sem letra. E também com aquele que, por não ter podido estudar, aprendeu a chamar quem estuda de recalcado. Eu me junto à galera da novela e aos seres da rua (eu tento). Eu me junto a todos e se pudesse - por um instante - quando estivéssemos todos reunidos, eu faria descer do céu, sobre todos nós, o silêncio da chuva: eu iria gostar de ver no fundo dos olhos úmidos escuros que não é sobre isso o que é a vida.
Então, eu me pergunto, até quando eu vou ser no mundo aquilo que não me interessa mais ser? Eu me pergunto: em qual medida ínfima eu posso me colar no meu desejo e sê-lo inteiro (porque ser o desejo é se ser). Em qual medida eu posso andar desejo? Ser desejo? Ser? Nietzsche nos pede que sejamos aquilo que somos. Ninguém melhor que si para se (permitir) ser.
À guisa de conclusão
Não vou continuar. É mais fundo do que se anuncia e eu estou cansado, cansado e imensamente cansado. Eu começo escrevendo para mim, depois me destino a você, depois volto a mim e, por fim, transformo tudo aqui em filho. Neste espaço eu me preservo parte do mundo e deixo que passe tudo (até aquilo que eu condeno ou venha a não mais ser dono). É só que eu estou assustado com o mundo, com a possibilidade efetiva do eterno retorno voltar e firmar as mesmas tragédias de sempre (aquelas que já estudamos na escola). Diria Drummond que vinte anos é um grande tempo, que vinte anos modela qualquer imagem. E eu tenho 26 anos e penso - convicto - eu estou sendo quem eu gostaria de ser.
Eu não preciso te matar para dizer que para mim não deveria existir sol. Eu não preciso assassinar ninguém para compartilhar meu desejo, meu desenho de mundo. Eu preciso aprender a te ouvir e, mesmo não te aceitando, saber que você não é doença, mas sim, saldo deste mundo (que nós criamos juntos). Não, não e não. Não estou falando do sorriso no rosto e de aceitar tudo e ir engolindo o que lançam a mim e a ti. Não vamos duvidar de alguma esperteza nossa. Basta olhar. Olhar fundo e demoradamente. Está ali, dentro de cada olho, o coração da questão que te chama atenção.
A embriaguez de nosso tempo é o cansaço. Andamos cansados, acordamos cansados, amamos cansados e criamos cansadamente. Construímos um mundo que está cansado de buscar solução para aquilo que precisa ser resolvido. Eu não sei. Eu nem estou bêbado, nem drogado, não fiz nada exceto ter deixado o dia escorrer sobre meus olhos mãos dedos pelos e braços. Meus cabelos chegaram em casa pesados. Eu olhei para trás e imaginei o que poderia haver sobre mim que me fizesse os ombros assim tão cabisbaixos. Eu não vou retornar aos parágrafos acima para dar sentido e esconder minhas ignorâncias. Eu não tenho medo da sua leitura sobre os meus fatos, porque eu mudo todos os dias, a minha consistência eu devo ao tempo e não ao corpo. O tempo carrega de mim o que ele quiser e eu não fico, eu apenas passo, passo, eu vivo no meio disso. Eu vivo, no meio, disso. Eu estou aqui.
De passagem. Apesar de um pouco enjoado.
E então a homeostase
Só o amor é capaz de explicar como o corpo se resolve inteiro quando se está a amar. De um súbito para outro minha vida mudou. Num soluço. Inteiro e não muito breve, fiquei vendo os silêncios e descobrindo cobertores de longos anos sobre meu próprio peito. Senti fome que ainda agora sinto. Senti medo. Medo desse abismo fundo que é reconhecer o clichê mais lindo: amar alguém que tem por nome "meu amor". E então, me encontrei na maior cilada: e se eu perder tudo isso? E o que fazer se o meu amor for embora e me deixar feito pinto no lixo?
Dobrei uma esquina, mexi nos cabelos, escrevi oitenta poemas e cheguei a uma resposta: passa por mim, amor, que aquilo seu que quiser morar em mim, no tempo que for, eu vou regar.
Como diz Walter Benjamim, a vida fica muito mais simples quando avaliamos a possibilidade das coisas todas serem destruídas. Hoje eu não sobro em meio a muita coisa; não há muita coisa mesmo. A vida não é shopping (por mais que nos digam o contrário). Hoje eu poderia - repleto - pôr fim a minha vida. E estaria tudo certo. Como tem que ser. Chega um momento em que o corpo escreve apenas o próprio desejo. Chega um momento, tal qual este ano fez chegar em mim, em que os sonhos todos bailaram vivos à luz dos dias e em meio à luz das noites. Deitei e dormi. Acordei e fui. Vivi. Então, percebo, nada em mim resta mais enclausurado: o medo da morte, o medo da saudade, da distância, o medo de sentir medo e do amor; é tudo trailer de filme drama antecipado.
Deixa a vida morrer. Ela precisa disso. Deixa o amor passar, deixa a cama tatuando seu corpo nela até ter que se providenciar outra. Deixemos os rumos serem e se desdizerem, no tempo em que quiserem. Deixa a coisa toda porque nada pode ficar até o fim, nem mesmo o próprio fim. Que pretensão é essa que nos faz querer durar?
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