Obra Prenúncio Morte
Quando ela decidiu ir embora, ninguém soube, somente ela. Mas sempre em algum lugar deste mundo, eu nisso creio, sempre em algum lugar alguém tem a carta do movimento que você sequer deu, mas que deseja jogar. Alguém tem sempre sob forma de sussuro, prenúncio, aquilo que você inaugura e faz o mundo tremer. Assim como ela, que fez todo mundo chorar. Ele lá atrás, anos antes, deu a cartada ao mundo, a fez nascer. A obra de arte nasce sempre antes da vida. Ela é anterior ela chega e ainda comenta como a criança lutou para se livrar do enforcamento do cordão umbilical. A obra chega primeiro. Depois, o que vivemos, o que fazemos, tudo já lhe é tão habitual, eu diria hoje vendo-a na obra lacrada, eu diria ser banal. Ser sono de domingo, sono com calor, calor sem sequer gemidos. Apenas aquele incômodo que nem sequer tem forças para nascer, é incômodo quentinho, abraçado, incomodo surdo sem voz, não-alado. Ele a prenunciou. Ele a desenhou. O corpo, os cabelos, o olhar destituído de si, mas voltado todo para dentro. O artista me fascina. Ele me assusta, ele eterniza em sua obra alguma vida - e não a sua - eterniza a vida que anos depois veio a se perder. E se hoje eu a olho, ela a obra e não ela, ela. E se hoje eu a olho e lembro dela, é porque ela não está mais aqui, mas permanece viva na obra museuficada. O museu cemitério, de obras anunciadoras do fim e da salvação. É invólucro, é sede, é seda pura ventando solta ao tempo. Hoje eu a olho aqui presa e sei que ela voa ali dentro. Dentro da moldura hoje eu a olho e sei que sim, tive nela e com elas meus últimos momentos. Mas nasce o dia e na parede a obra congela o tormento e eu posso te dizer de novo toda manhã, a qualquer segundo, eu também te amo. E isso me faz seguir meio que seguro, meio por ti contornado, com moldura, tontura, ser incapaz de se deixar jogado, porque há amor que o represente. Há amor e eu te olho eu te escuto e você sem dizer nada... É duro assim mesmo. A obra permanece indiferente, mas no fundo eu sinto eu sei, é você pedindo aos artistas todos mortos por aí, pedindo a eles, deixe que se revelem, não alterem, deixem, deixem porque elas vão se dizer. Eu olho de novo para este você que é você e que nem é, nem é, eu olho e choro, sim eu choro, o que fazer? Algum artista um dia resolveu acordar e te trazer ao mundo. Talvez por isso você tenha partido dizendo ter vivido muito em pouco tempo. Não, o relógio não falhou. Começamos a contar atrasado, foi isso. Você nasceu segura na ponta de um pincel. Nasceu tranquila e adormecida. Nasceu bela, corpo de mulher corpo de menina. Você veio e de nós se foi. Duro e difícil é querer te ter e ver obra. Ver obra e descobrir que na vida, somos quase sempre um esforço desmedido para escrever histórias, ainda que seja simplesmente a nossa. Você se cravou. Está congelada. Quente no quadro, quente em minha sala casa cabeça alada em meu ir... Estás comigo. Isso aqui é apenas uma forma de dizer, de criar, de sacrificar e fotografar, um pedaço a mais de nosso viver. Amo-te, te amo e amo e nem sei o que isso mais possa significar, mas... Sinto. Sinto a sua presença disforme me afagando os cabelos. E se sinto, logo, é também graças a ti...
Nenhum comentário:
Postar um comentário