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sábado, 30 de dezembro de 2017

Absoluto despenteado

Manualmente
Escrevo com caneta preta
Sobre papel branco
Faço-me lembrar que nem tudo
É possível definir.

Afirmo em perguntas
Deve haver algo que me sobrevive, não?
Deve existir algo, algum respiro ou coisa,
Aquilo que move meu corpo
E agiganta meu ânimo.

Tão massacrado pelas desistências todas
Tão acostumado aos desmontes
E à contabilidade das corrupções.
Deve existir em mim ainda
Ainda um pouco de alegria, não?

Escrevo para não desistir dessa certeza turva
Para não me acostumar à névoa densa
Que alimenta o meu cansaço dessa
(e talvez) de outras vidas.

Entre vinhos, cervejas e cigarros
Germino uma fé num absoluto despenteado
Sei que nele não posso me segurar
Mas é nele e com ele que bailo.

Hoje, como em tantos outros agora,
Acalenta-me a impossibilidade importante da calma
Digo a mim mesmo
Calma, cara
É assim mesmo

Hoje chove nublado
Amanhã também
O sol, que assim seja, já te existe
Feito memória.

Nada a ganhar desse mundo
Apenas a vitória de saber-se perdido
Você, aqui e agora
Ali numa outrora
Em plena perdição.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Contento

Não mirei a árvore de natal
passei por ela quase sem percebê-la
Sei que ela está ali
no entanto, aqui, dentro,
Sou todo fim de ano.

Não que quisesse virar outro ano
não que não quisesse
É só que uma preguiça de tudo
orienta meus passos.
Estou cansado.

Sou todo cansaço.



Haveria lá na frente
alguma interpretação mais corajosa?
Haveria no adiante
alguma outra frase, outra alguma história?
Já nem me pergunto tanto assim.

A poesia invade o marasmo dos dias
tentando fazer da vida algo que se dê sentido.

Não vai dar, vida.
A sua perdição é, sobretudo, parte tua.
Nem sempre vai ser verão
nem sempre vai ser gostoso
Hoje, como ontem, amanhã, sem dúvida,
hoje tudo cinza
cinza bom, é certo
mas sem gosto
tudo sem gosto.

Miro pela varanda do quarto da infância e vejo nas árvores amarelas algo nunca antes percebido.

Elas estão aqui desde sempre?

Nunca as tinha visto.

Qual mistério sustenta sua força?

Qual raiz terá faltado em mim?

Meu sorriso não dura
meus dentes só choram
Nem sangue em mim despenca
tudo tão calmo, tão inerte
A contento dos tempos ruins.

Terá havido certa vez tempo melhor que o de hoje?

Terá existido algo que não apenas o presente instante?

Penso na sucessão dos séculos, nas viradas dos anos,
penso nas gerações passadas e ultrapassadas,
terá havido diferença?

A sensação é que ter sido humano é ter-se fincado no desacordo.

Queria sim ter tido manhãs mais amenas.

Queria ter durado sobre o colchão e ter feito do lençol enzima imagética.
Ter ido, nadando em plumas, rumo direto à escuridão dos sonhos.
Ter sido abocanhado pelo impossível e ter sido deixado em seu abandono.

Eu, homem já mais velho que criança, eu hoje penso
que a vida será por muitos e muitos anos essa repetitiva constância.

Devo voltar-me a isso?
Devo acreditar que fazer é fazer a diferença?
Ou posso me pendurar na sacada deste quarto e ficar
a contemplar apenas?
A duvidar não como quem desconfia
mas como quem transforma a irritação
em veemência?

Eu duvido inerte do abismo que é estar vivo.
Se faço força? Não. Nem raiva, nem bandeira, nudez nem preciso
Eu, o ciclo das águas, a morte que me chegará,

estou bem assim. Não tentem me mudar.

Costas no ar inerte

Pensaria, de imediato, sobre o destino
Na sequência, é fato, pensaria sobre o peso
eu o sentiria
sobre mim e sobre tudo
sobre mim me igualando ao mundo
Ordinário.

Depois abriria as asas
como que lençóis sobre o oceano de cimento
Bateria as asas
em profundo (e terno, sim, também terno)
descontentamento.

Virá alguém?
Ninguém me escuta.
Serei salvo?
Mereço?

Silêncio tremendo.
Ainda chove lá fora.
Salvação é mera ficção, dirão os que no futuro tiverem flagrado este momento.

Quando me quedo assim
de cabeça para baixo
Penso nos insetos que voam baixo
Penso na família
Penso no passado

Futuro deixa de ser enzima
hoje tudo sobre mim
as asas no chão
o ar inerte
Há flores no horizonte?
Tudo caído.

Eu vou até o bicho
ele segue batendo no chão suas asas
eu vou levantá-lo
Será que ele quer mesmo ser salvo?

Esse bicho sou eu, não sou?