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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Guirlanda

Marceau está sobre uma escada que se encosta à parede. No alto, retira livros e pedaços de passado e os limpa, devolvendo tudo de volta à prateleira em seguida. Marcel chega cabisbaixo. Senta-se na base da escada. Imóvel.
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Marceau - (sentindo a chegada de Marcel) Ainda bem que você chegou! Ainda bem!
Marcel mantido em um silêncio profundo.
Marceau - Ora, Marcel, já era hora! Ande, vamos, me ajude com isso aqui!
Marcel quase imóvel, pisca um olho com pesar.
Marceau - Eu já limpei uns 73 livros, 49 caixas de cds e algumas bandeiras inteiras. Sabe o que eu achei?
Marcel - (apático) Humm?
Marceau - A bandeira do Cazaquistão! Não é ótimo? Você estava procurando ela outro dia.
Marcel - Ótimo.
Marceau - (estranhando) Não diga "ótimo" de maneira tão ingrata. Eu achei a nossa bandeira!
Marcel - Pode ficar pra você.
Marceau - (desequilibrando-se) Espera lá! Não é minha, eu disse, é nossa! A nossa bandeira...
Marcel - Pode ficar.
Marceau - (olhando para baixo do alto da escada) Ora, Marcel, o que foi agora?
Marcel permanece mudo.
Marceau - Ora, você sabe, não gosto de falar sozinho. (Pausa) O que foi, diga...
Marcel coça o nariz.
Marceau - Certo, não foi nada. (Volta a limpar a prateleira) Eu estava pensando aqui, sabe? A lembrança é mesmo uma coisa muito poderosa. Já parou para pensar como ela é libertadora? Nada é tão duro quando é lembrança, porque a gente lembra e muda o que lembrou e tudo ainda conserva a mesma cara, apesar de muitas mudanças. (Pausa) Eu fico emocionado com tudo o que construímos juntos!
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Marcel se levanta bruscamente e sai da sala.
Marceau - (preocupado) Ora, começa assim e daqui a pouco sou eu quem cai dessa escada. (Descendo) O que será dessa vez? Marcel! Espere por mim, vamos almoçar, você está precisando se alimentar direito. Marcel!
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Marcel está sentado em um banco de jardim. Marceau se aproxima, como se pedindo espaço, e ele sequer se move. Marceau, com cuidado, ajoelha-se diante de Marcel, sobre a grama verde-radiante.
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Marceau - O que é que você não quer me dizer?
Marcel - Você já disse. Não quero dizer.
Marceau - Certo, a questão é... Me diz. Eu te ajudo.
Marcel - Eu não preciso de ajuda. Preciso de cura.
Marceau - Marcel, você está gripado?
Marcel - Antes fosse...
Marceau - Não diga isso! Viu quanta gente tá morrendo? Eu quero você vivo.
Marcel - Mas é como se eu estivesse indo... Devagar, enquanto vejo tudo ir acontecendo...
Marceau - Não é gripe, então?
Marcel - Ora, não!
Marceau - Eu preciso entender o porquê da sua rispidez...
Marcel olha de maneira assustada para Marceau
Marceau - Ora, convenhamos, você está um tanto sem modos nesta manhã.
Marcel - Eu preciso te falar...
Marceau - Sim, um pedido de desculpas e depois há de me explicar...
Marcel - Acabou.
Marceau - Acabou o quê?
Marcel - Acabou.
Marceau - Ah, certo, as ervas? Eu já ia mesmo te chamar para cortarmos mais, não quer ir agora?
Marcel - Não. Acabou.
Marceau - Ora, Marcel, o que acabou além disso?
Marcel - Acabou, já disse.
Marceau - Você tá acabando com a minha paciência. Estou aqui sendo muito compreensivo, aproveite.
Marcel - Não quero!
Marceau - Se aproveitar de mim? Ora, desde quando?
Marcel - Desde ontem. Acabou, Marceau. Entre a gente. Tudo acabado. Não posso.
Marceau cambaleia sobre si mesmo no chão do gramado.
Marcel - Acabou. Não pode ser eterno. Eu pensei que fosse, mas não pode.
Marceau - (levemente descorado) Não pode ser eterno o quê, meu Marcel?
Marcel - A gente. Não pode ser.
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Marcel levanta-se e deixa Marceau caído ao chão, imóvel. Perto do pé de ervas, Marcel volta a olhar Marceau, dessa vez, desabando o interior.
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Marcel - Eu pensei que você fosse eterno. Eu pensei que a gente pudesse ser pra sempre! Eu tentei que fosse, eu me esforçei, você também o fez. Mas não dá. Acabou, eu percebi. Você não é eterno. Eu também não sou. Isso não está me fazendo bem. Faz poucos minutos eu me vi empurrando a escada só para que você caísse...
Marceau - (levantando-se e segurando Marcel pelo rosto) Você quis me derrubar?
Marcel - Ora, eu quis te derrubar.
Marceau - E por qual motivo?
Marcel - Eu não sei...
Marceau - Eu te explico. Quis me derrubar porque no chão, onde eu cairia, você já estava. Quis me derrubar pela vontade de estar junto pela vontade de eternizar. O que é eterno precisa de calor, sem isso não vale, sem isso tudo fica empoeirado, não pode ser. Escute! (Olham-se, lacrimejantes, olho a olho) Eu sou eterno enquanto eu for. Você para mim é eterno enquanto existir. Não é algo contra o qual se deve lutar.
Marcel - Mas ela morreu! ELA MORREU! NÃO FOI ETERNA! ELA ACABOU DE PROVAR!
Marceau - (surpreso) Quem morreu, Marcel?
Marcel - Minha mãe, Marceau. Ela era eterna. Agora se acabou. O que eu faço?
Marceau - Oh, Marcel, é verdade o que me diz?
Marcel - Não fosse eu não estaria assim.
Marceau - (deprimindo-se, aos prantos) Oh, Marcel, como isso é doloroso! Mas a titia nunca...
Marcel - Nunca pareceu que fosse capaz de morrer. Pois é. Mas morreu. Eu não consigo compreender.
Marceau - Oh, que angústia me invade o peito. Dá vontade de ir no lugar dela!
Marcel - Eu já tentei, não tem como. Eles fecharam o caixão hoje cedo.
Marceau - Já foi o enterro?!
Marcel - Estava voltando dele, por isso acordei mais cedo.
Marceau - Oh, Marcel, como o tempo passa veloz!
Marcel - Ora, é melhor você se segurar... Eu não vou ficar por muito mais tempo.
Marceau - (caindo sobre o gramado, sem saber o que falar) Ora... Mas... Titia...
Marcel - Eu disse, acabou. Não podemos continuar. Ainda mais agora que mamãe morreu...
Marceau - Ainda mais agora? Você quer me desesperar?
Marcel - Achei que também quisessem, mas não dá. Eu já pensei em tudo. Vou partir, você vai ficar.
Marceau - (erguendo-se e limpando as lágrimas) Ora, muito bem, senhor Marcel. Vamos supor que tu partas. Sim, vamos supor. Me desculpe, mas é só o que eu consigo. Supondo que você vá entrar nessa casa, pegar uma mala e sair por essa porta, sem sequer se despedir de mim. Eu poderia ao menos entender um pouco mais dessa situação?
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Marcel entra em disparada para dentro de casa. Marceau continua falando sozinho.
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Marceau - (gritando, incomodado) Ora, que coisa, não? Um dia você acorda e alguém que estava com você, junto na mesma obra, resolve largar o barco e todos morrem afogados no fim! Não pode ser assim, Marcel, eu exijo o mínimo de afeto! O mínimo de noção, eu disse aquele dia no comércio, compre esta porção de noção, é bom ter em casa, é bom às vezes a gente se desgasta e faz coisas que não são feitas sem nem perceber. É falta de noção que tá faltando dentro, você deve estar mesmo doente, se quiser, espere mais um pouco, eu vou buscar pra...
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Marcel sai completamente agasalhado e com uma árvore de natal semi-enfeitada de dentro de casa. Marceau o olha assustado. Marcel se aproxima lentamente.
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Marcel - E eu que pensava que você fosse eterno como mãe... (Sai em disparada)
Marceau - Oh, Marcel! E ainda vai levar o nosso pinheirinho! Oh, como eu me sinto mal. Não é possível. Marcel! (Marcel vai indo já distante. Marceau tenta correr em vão atrás dele. Fatigado) Eu não sou eterno como mãe, mas eu tenho em mim alguma eternidade. Eu tenho! Quando é que você vai ver, seu Marcel? Não demore muito. Não deixa acabar esse pouco de alguma coisa. Não deixe. (Pega sobre a grama um enfeite de palha da sua agora distante árvore de natal).
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____________________ outras cenas com Marcel e Marceau:
Violácea, em 31 de maio de 2009 | Rúcula, em 21 de junho de 2009
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dialética

tudo o que eu quero dizer eu não saberia te contar. dentro as coisas se entendem sem que eu precise explicitar. tudo o que eu queria sentir a minha pele se deixa exposta. dentro as coisas se resolvem elas se reorganizam sempre e sempre a cada hora. tudo o que dentro eu não comprendo fora sai feito rima. tudo o que eu dentro não dou remendo aqui fora em mim se procria. feito pendência. feito absurdo. feito ingratidão. tudo que dentro eu não organizo aqui fora vira insônia. insônia indecisão tudo o que fora me choca o corpo dentro eu reconheço como perda. e de tanto perderes, sou eu assim um ser já perdido. assumidamente perda. assumidamente nisso partido, partida, condição, saberes. meu destino é perder. perder é o meu destino. destino é o meu perder. quanto mais eu vou indo mais próximo eu vou chegando desse estado do total se abster, onde sorrisos não valem, onde abismos não me matem, onde a morte sequer chegue a assustar. onde não há devaneio onde sequer se vê um "há". e de tanto perderes, eu serei completo. eu serei uno. naturalmente eu serei discreto. capaz, se possível, de evaporar. de evaporar.
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sábado, 25 de julho de 2009

Eufemismo

Disse a mãe adentrando o quarto do menino,

- Rafael, desliga esse treco!
- Ai, mãe, não enche eu já falei...
- Eu não quero ouvir desculpa. Eu disse desliga esse treco, Rafael, sem mais demora!
- Mãe, eu já sou crescidinho, tá certo? Não precisa ficar me tratando como se eu fosse seu filho...
- Mas você é meu filho. Quem foi que te enganou, meu amor?! Você é meu filho, é meu filho!
- Certo, mãe, eu sou. Agora você pode me dar licença que eu preciso terminar...
- Eu não quero saber do que você precisa. Quem vai dizer o que você precisa agora sou eu!
- Como é?
- Anda, levanta desse computador ou eu puxo essa porcaria da tomada.
- Qual é, mãe?
- (com a mão na tomada) Eu vou precisar fazer isso, meu filho?
- Mãe, você vai queimar o computador...
- Vou sim. Eu tenho esse direito. Quem te deu, não fui eu? Então eu posso.
- (levantando-se e indo pra longe do computador) Tá certo, calma, deixa isso aí... Eu saí do computador.
- Meu filho, e quando eu não estiver aqui?
- O quê?
- Eu tô te perguntando o que vai ser de você quando eu não estiver mais aqui?
- E quando vai ser isso, mãe? A senhora vai viajar?
- Rafael, eufemismo, meu filho. Já estudou isso, não?
- Metáfora?
- Eufemismo.
- Dizer uma coisa pela outra... É isso?
- Não, meu filho. Isso é metonímia. E eufemismo, o que é?
- Eu não lembro...
- E hipérbole, você lembra? É possível arrancar de seu cerebelo toda a memória concentrada em passagens que mesclam os tempos, os dramas e os remendos desse peito seu que agora bate aí dentro, cheio de dor...
- Mãe, você tá exagerando, mãe!
- Isso é hipérbole, meu filho. Agora eu quero saber do eufemismo. Diga.
- Já disse que não sei.

A mãe avança até o filho e o leva até diante a janela de seu quarto.

- Abra-a, Rafael, por favor.
- (abrindo-a) Abri, pronto, pode falar.
- Quando eu te pergunto o que vai ser de você quando eu for, eu quero dizer, de maneira amena...
- Amena?
- Eufemisticamente falando... Eu quero dizer o que vai ser de você quando eu morrer.
- (assustado) Por que você tá me perguntando isso?
- Porque você tá tão sem cuidado.
- Eu não sei como vai ser quando você morrer. Mas vai ser ruim, é inevitável.
- E, hiperbolicamente falando, vai ser muito mais do que ruim, meu filho.
- Você tá exagerando! De novo!
- Eu estou exagerando sim. Mas é preciso. Vai ser ruim porque você sem cuidado é o mesmo do que te deixar caminhando descalço sobre um abismo qualquer...
- Mãe!
- O que foi?
- Para de falar essas coisas... Tá tudo bem. Foi algum sonho que você teve, é isso?
- Eu costumo sonhar acordada, você sabe. Mas isso não foi sonho, é concreto, eu olho pra você, meu filho...
- E vê tudo isso acontecendo?
- Eu vejo que eu te deixo solto demais, e que isso é bom, e que isso é legal, mas eu sinto, eu sinto que não...
- É mesmo bom, é legal, você sabe que eu não saberia ser de outra forma.
- Mas eu sinto que quando eu for, quando chegar a hora, eu sinto que você vai se enrolar todo.
- Mãe, é sério, às vezes você me confunde... É uma metáfora agora?
- Não, filho. Enrolar. Ficar todo perdido, confuso... É metáfora, mas é seguro. Eu não quero te ver enrolado.
- Então me deixa ser livre, como eu sou.
- E o que eu faço quando eu te ver desse jeito, quando eu olhar pra você e achar que vai dar tudo errado?
- Confia em mim. Eu daqui vou sempre lembrar do seu amor, mãe. Ele me ajudará a me desenrolar.
- (depois de uma pausa, olhando pela janela) Quando eu pedi pra você sair desse computador...
- Eu saí, nem vem...
- Era porque eu queria que você visse o céu hoje.
- Sim, eu estou vendo.
- Eu queria que você visse o céu sempre, sempre que estiver se sentindo mal, entende?
- Certo. (Pausa) Mãe, você tá querendo me dizer mais alguma coisa?
- Eu?
- É, mãe. A senhora.
- Eu? Eu não. Era só isso de olhar o céu e de apreciar o vento e também de às vezes dormir bem quentinho e também de se dar o seu tempo eu queria dizer que às vezes um café resolve às vezes um silêncio e também um sorriso. Às vezes, porém, meu filho, nem mesmo um ombro amigo irá resolver a sua dor...
- E o que eu faço então?
- Lembra que eu te amo. Só isso. Lembra que eu te amo que eu sei que nesse momento, quando você lembrar, um pouco do seu desespero vai se afastar e você com o tempo vai ter de novo as suas pernas para andar... Lembra do nosso amor, meu filho.



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