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domingo, 29 de setembro de 2024

A decisão acertada

Foi mesmo ter decidido parar de falar de si.

Ao menos por um outono
(que dia é hoje?)

Foi bom tomar essa decisão
porque antes era como se fosse
sempre
e nunca
tudo assim tudo
tudo assim indiferente
afinal

era sempre sobre ti
sempre acerca do senhor
sempre no seu entorno
sempre somente a sua dor

a ponto de nem mais ter dores inéditas
eras tu próprio a dor personificada.

Depois da decisão, entretanto, tomada
outros ventos vieram
outras praças em festejo
o antes deixou de sempre
o nunca morreu batendo os queixos

Você percebe?

Falar do mundo
não é perder a si mesmo.

Falar do mundo
não é calar-se, coitado
ele foi impedido.

Do mundo, falar dele
é como dedicar-se a uma oração
que de ti só precisa da fé
nunca da sua história.

É mesmo com alguma indiferença
que a vida brota e brota.

Nunca dantes, perceba, falamos tanto
em vida, nunca dantes falamos tanto
neste plural.
 
Tomaste mesmo a decisão acertada, jovem
(era preciso dizer)
 

A vida das coisas


De um jeito ou de outro
ela continua.

Você se espanta, obviamente,
não estás habituado à vida
que não seja a sua.

As flores roxas no vidro transparente
já faz quanto?, um ou dois meses?
elas estão lindas.

A podridão das raízes antes úmidas
também chamaremos de vida.

Ela continua.

Varreste o quintal, removeste as folhas
secas e mesmo secas estavam mortas?,
não, estavam aqui (agora na lixeira

lado de fora).

Mesmo lá, a vida impera.

Você, cético, não conseguiria aceitar
que ela impera, sem força, mas que ela
impera.

A vida, meu caro,
a despeito dos seus nãos
segue esfomeada

e vagorosa.

Diz-me algo que não esteja vivo
que eu te encho de beijos agorinha mesmo
te encho de beijos agora.
  

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Contínuo perder


A sensação tem voz alta
e hoje grita.

De vida em vida
ela tudo assaltaria.

Isso de perder também
dura muito.

A ponto de o dia
sequer ter sido visto

ou viste?

Vocês viram?

O dia esteve lá
enquanto seu mundo

interior
em precipício.

Perder não haveria de ser tanto assim
não fosse assim tão demorado.

Como demora.

Tudo isso demora muito.

Já gastamos as moedas para o seguro
restamos, enfim, sem chão

nem certo.

Por quanto mais devo aguentar?,
ele se perguntou numa manhã

fria e tarde.

Quanto?
 

domingo, 22 de setembro de 2024

Perder, perderam


Olha lá ele rodeado por nós. 

Antes, sozinho, conjugava tudo
por si. Estava só. 
Na potência de um si mesmo 
pisava solos e escrevia seus próprios 
Livrinhos. 

Depois viria o vento
que veio. E viria um verão 
Invernos mais quentes e
vejam: ele saberia como estar só
e ainda sem medo. 

Mas aconteceria, eventualmente, 
de perder toda a linha. O eu
Dele estatelado na avenida 
sob condução pesada
Morte é coisa que vem
e passa (sempre por cima). 

Quando já não mais se houvesse 
haveria no mundo inteiro ainda temperos e sente isso. 
E ervas e a vida - diriam -
encontra o seu jeito de se fazer
Continuar.

Perdido um eu, ainda assim haveria um outro
para ele contudo no entanto
O outro nunca seria eu
Ao outro o eu nunca seria se não 
Outro. 

Ficou confuso
Apaixonado
Perdeu o prumo o verso 
Ficava tarde. 

A vida não comete atrasos.

domingo, 15 de setembro de 2024

Cansaço

Disseram bastante acerca daquilo que faria um homem tombar.
Detalhes foram prescritos, a envergadura, densidades, se chumbo ou aço, a diferença entre cervical e ser ou não já tarde. 

Disseram que o de um estava prometido, que o de outro viria no tempo certo, que uma coisa era uma e outra era, por certo, dela distinta. E disseram repetidas vezes que sim já sabemos. 

Sobre os barcos, cascos, dos cavalos, seus lemes, disseram a oeste e norte, que antes não era assim, que maldita tinha sido tão mutante sorte. 

Tarde teriam dito que a causa era da água, depois em rede nacional foram pedidas desculpas para gente tanta, todas já mortas, ainda assim, seguimos atentos ao concerto que se passa na cidade. 

Naquela casa escura faz duas ou três horas (quem saberia precisar?), dois homens dormem abraçados e um deles ainda sonha.

O ronco do que sonha em nada incomoda a paz do mais silencioso. São homens e se amam, a bem da verdade, de modos diferentes e parecidos, ora mãos dadas, ora mútuo espaço é bem-vindo.

Ali, os dois, tombados de cansaço, dormem em impressionante alegria, colchão, eita, vida, eita, vida, quanta delícia quando você chochila. 
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O menino


Ele estaciona o carro no bairro de prédios
com no máximo quatro andares.

Usa bermuda e camiseta pretas
apesar do carro prateado.

Ele parece jovem e se porta
decididamente

ele cruza o pequeno portão
de um prédio

ao seu lado um limoeiro
imenso e verde verde

nas mãos ele segura
o telemóvel

Estou aqui
por onde entro
Você desce
eu subo
E então
Diz algo
estou aqui
Você onde

E o fantasma
em silêncio

se diverte.
 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Amanhecer na cidade


Duas senhoras conversam
entre cafés, guardanapos 
e miradas à rua que corta
a avenida. 

As bolsas e os cigarros
um pão no embrulho 
um carro aguarda
parado. 

Um cão passa com
seu dono e não haveria
noticiário não houve
atropelamento. 

No entanto 
do lado de fora da cafetaria 
um homem barbudo
olha a barba de outro.

A cidade amanhece. 
 

domingo, 1 de setembro de 2024

Uma proibição

Uma indefinição tombaria sobre os segundos

Nenhum caminho adiante, assim pareceria ser

Conjugação forçada, errônea, ingrata sentença

Por ter havido uma proibição a vida não cessaria

tenha a santa paciência

*

O constransgimento não é sufocar

O perder não é morrer, não ainda

Caminho é coisa que se abre tal qual ferida

Há que confiar no futuro

como confias neste doer

*

No desnorte desta corte

No azar desta sorte

É com unhas que você escreve

Privado da solidão

dium umbigo

*

Privação seria isso

Proibir-se de esquecer

Que mesmo que doído

Não estás

não mesmo

*