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domingo, 10 de novembro de 2019

[...] em minha recém-conquistada habilidade [...]


Gostaria sim, preciso dizer-vos, gostaria de saber de onde foi que tirei esta afirmação tão dura, tão insensível, tão certeira de si própria. Gostaria, confesso aos senhores e às senhoras, confesso que gostaria, eu gostaria, de saber em que instante de minha precoce vida ouvi dizer que bastava pisar com os pés no encontro das telhas. Posso confirmar: ouvi alguém dizer isso. Se era manhã ou tarde quando ouvi tal sentença, mesmo noite, se fosse, mesmo sabendo, do que importaria? Lembro-me que logo ao ouvir tal afirmação algo em mim brotou como força destemida, coisa imensa, pouco distraída. Algo brotou em mim e tirou de mim minha mocidade. Fiquei sério, intrépido, quase estúpido. Poderia ter rosnado, cuspido no chão, batido em alguém ao cruzar uma esquina qualquer. Teria mastigado pedras para manifestar a força do meu ímpeto. Eu, por tão menino, tinha descoberto o mistério para andar mais perto do céu do que dos meus familiares e amigos. Sobre os telhados da velha casa, caminhei por dias sem descanso. Aproximava-se das beiradas, na iminência de uma morte sem graça, e regozijava-me em minha recém-conquistada habilidade: a de ser estúpido e ignorante dessa estupidez. Por dias, noites, recordo-me, caminhei sobre os telhados como um ninja que, silencioso, confunde-se com a fumaça das noites de inverno. E um dia, sem mais, tudo perdeu a graça. Não quebrei telha alguma, isso nunca, mas um dia tudo passou e me distraí da minha infância ao ouvir a pergunta que me tirou da proximidade dos céus e me devolveu para o fora de casa: vai ser o que quando crescer, Diogo? Já pensou nisso? Já é hora, não acha?

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