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terça-feira, 4 de agosto de 2009

já és toda você senhora indiferença

ei, senhora. não me olhe com esse olhar cansado. não é porque já viu tanto e talvez até tudo que é possível o mundo explicar. nesse segundo em que eu te vi e que você me olhou, vi também tanta coisa horrível de ti se despregar que foi preciso sair. ver o mundo. e agora voltar.
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eu entendo seu olhar. não entendo, mas compreendo. nem compreendo mas faz sentido, na sua configuração, olhando pra você faz sentido, pelo menos parece fazer. eu olhei para fora no mesmo instante em que você. vimos nós dois transitando pela rua escura da noite duas pernas dois seios duas coxas pouco pano. e faz tanto frio nesta noite, como pode?
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não me olhe cobrando a normalidade das coisas. eu não faço as regras. eu costumo quebrá-las. não me olhe tentando pelo olhar me fazer concordar: eu sou facilmente seduzível pelas coisas que você julga abjetas. olha lá ela andando. quem sabe como deve ser isso quando ela está com pressa? quem sabe como deve ser esse corpo fugindo de tiro gozo e socos sucessivos nos lábios já revolvidos?
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não me olhe cobrando seus preconceitos. eles são maiores do que pode caber num peito. eu gosto dessas coisas, eu me sinto bem olhando as poças. ela era linda, perfeita, pois sua beleza já era destruída. nada nela era inteiro por isso mesmo me pareceu tão mulher e para sua tristeza também menina. não me olhe assim com o olhar cansado que eu num instante interpreto sua retina como um mundo ao contrário. eu te interpreto pelo seu horror e jamais pelo o que é - fora - capaz de amar.
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ela existe ela insiste ela faz parte deste tempo neste mesmo espaço em que nós dois cruzamos os olhares. mas não me cobre a existência de um ser. não me faça pelo olhar ter que dizer se ele pode ou não sobreviver. não sou eu quem diz quem merece ficar. ela é plena, caminha com o salto a se desequilibrar sobre um mar que só seus olhos lacrimejantes são capazes de ver. você não vê nada, senhora. seu olhar já é todo pena, já és toda você senhora indiferença.
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vinha ela cambaleante, seduzindo alguém que não pude ver. não sei se era alguém ou se era ela mesmo tentando se manter. se brincava de bailar com os ratos no esgoto exposto, se dialogava com as baratas atômicas resistentes, não sabemos. mas me contento apenas em olhar. olhar morto, convertido no espectro de uma visão duradoura. que persiste, feito o caminhar da moça que hoje agora eu diria triste.
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existe beleza em tudo. existe mazela também. seu olhar, senhora, me amedronta pois é incapaz de dizer o que quer. é olhar que aprisiona pois precisa de alguém para dividir com você todo esse horror que és incapaz - sozinha - de pronunciar. mas fique sozinha, eu não lhe posso ajudar. seus horrores desenham faz anos o mundo em que eu vivo, deles não posso me abster. é triste sim, senhora. mas o que fazer? negar a tristeza?
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olhando ali a moça pendendo sobre um abismo que nem eu nem você somos capazes de compreender. olhando ela ali se entreter, eu vi muito mais do que poderia supor. vi coisas que me alimentaram. vi coisas que aqui dentro, é sério, me fizeram mexer. o seu olhar, ao contrário, apavorou-me justamente por nele a vida tentar reter, como se aprisionando o que julgas ser temível fosse capaz de rotular e fazer a verdade - sua - vencer.
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agora, imagino, senhora, estará você num banco de jardim. a seda branca incapaz de encostar no chão. também varrido. imagino eu, senhora, que seu olhar repousa doente sobre o sol que hoje veio tímido. e com mais um dia, com mais um girar deste planeta, pode ser que o sol venha mais forte e de tanto olhar sua beleza, sinto dizer, mas é provável, é provável sim senhora, que você nunca mais nada verá. pois negou a escuridão. negou o complexo. negou a comunhão já selada entre noite e dia.
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o belo também cega tanto quanto cegamos pelo julgar. aceito o seu olhar pedinte de segurança. mas não movo o semblante, para mim você é lepra que perdura até amanhecer torrada, morta. eu olho para o abjeto e nisso dialogamos nosso interior. não fosse assim, eu não poderia ser isso quem eu sou. isso quem eu sinto ao dizer, mas sou.
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sábado, 1 de agosto de 2009

Álvaro

Foi no meio desta noite que passou. Foi no momento exato em que ele acordou, o corpo involuntariamente sentado sobre a cama solicitava atenção. Olhou pela janela aberta e viu a escuridão do céu. A escuridão plena daquele céu sem estrelas. Como podia assim ser: apenas escuridão. Fechou os olhos para esboçar estrelas e vieram palavras. Palavras num véu cobrindo seu olhar. Era escuridão, pleno, mas palavras ainda podia enxergar.
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Ergueu-se da cama, os pés no chão. Ainda era todo escuro, caminhava seguro pois caminhar nunca lhe fora problema. Não, pensava dentro. É algum sentimento, algo sentido, nada pode ser assim tão obscuramente pleno. A plenitude o assustava. O que restava ainda de tão pleno no mundo ali fora. As cortinas encostadas eram mesmo o céu aquela negra escuridão opaca. Aproximou-se, o sexo contra a parede. Não havia desejo, mas ainda assim avistou, no canto da rua, um poste elétrico como fosse aquela luz uma lua ou estrela precisa.
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O que sou eu nesse mundo. Por que sou eu. E não outra coisa. O que me faz se agora sou eu quem acorda no meio da noite e quer entender o porquê de alguma escuridão reinante. O que me faz agora estar aqui e não em outro lugar. O que me faz diferente de outras vezes não ter vontade alguma de pular. A plenitude o assustava. E morrer era o que poderia haver de mais pleno visto ali de onde olhava.
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O ranger do portão. Os pés ainda descalços, ainda eram chão. Na rua o ar era outro, parecia mais denso. Mas não era isso, o que fora ali reconhecer não era o ar não era nada que eu pudesse agora te descrever. Mas tento, mesmo assim.
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E me perco. Eu tentei, você não viu, mas é no saltar de uma linha que meio mundo eu corro veloz. No saltar de uma linha ou mais que eu caminho vagando a buscar isso que agora eu tento lhe entregar, moído, mordido, pedaço de mundo dilacerado posto impreciso. Tentação é perder. Movemos-nos pela perda. Comigo é sempre quando a palavra que quero é incapaz de se mostrar de se eleger. Eu tento, ainda assim, pois de tanto perderes acredito és mais forte.
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Ele ali diante da rua os pés no chão. Eu aqui diante da tela as mãos num solo precário, onde jaz tudo solto mas tudo ao mesmo tempo pleno de ser costurado. As coisas se revelam feito poeira, nada é tão pleno, tudo é plenitude falsa, imperfeita. Eu construo com as mesmas partes do ódio esse tal amor, que o fez acordar no meio da noite e descer as escadas eu poderia ter lhes dito elevador. Mas não. Tenho nas mãos os pontos que me fazem ver o mundo com calma. Com dosagem. Precisão. Utilidade. Eu pulo uma linha
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e o tempo segue mais tarde. O véu que antes ele pareceu enxergar, enquanto lá ainda é a noite plena e escura, aqui para mim é já sensação. Eu deito sobre essa pele o mundo tal qual o vejo aos pedaços. E os pedaços assim dispostos me fazem crer: é possível costurar o mundo é possível ele deter. Por isso deixo que vague a essa hora - inventada - em meio a escuridão da rua para encontrar numa esquina não muito longe de casa, aquilo justo que buscava.
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Ele recolhe com calma, entre o deter do objeto e o do tremer das mãos. Ele volta caminhando seguro para casa. Os pés quase que silenciados, quase sem mover o som ao tocar o chão do asfalto negro e sujo. O ranger do portão já não me chama atenção. Dentro uma fábrica veloz desmonta-se em construção. Ele está vivo, outra vez. Acordou perdido, mas agora sobre uma cadeira, diante da janela, prende o objeto que lhe traz consolo, ação.
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Estrela fica por aí até o amanhecer. Me faz dormir seguro que eu não vou ligar se de mim você se perder. Mas me faz dormir. Entretem meus sonhos meus sem sentido. Fica comigo até julgar que de ti eu não mais preciso, mas saiba: eu sempre te preciso mais do que sou capaz de revelar. Portanto, quando souber que é hora de partir, espere mais alguns minutos, que é o tempo inexato de eu ir eternamente a...
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Ele disse isso. Eu já não sei. O véu da noite ilumina em mim também alguma transcendência possível. Não me responsabilizo por tudo o que aqui eu lhes digo. Mas sim, talvez ele tenha dito. Ao menos eu o disse, caso duvides do outro. Em mim deita com a noite a certeza do véu eterno que costura o mundo aos meus dedos. Somos cada vez mais um só corpo um só... Não saberia dizer. Nem mesmo importaria. A plenitude não é o alvo desse ser.
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in.falível

distancia sim, que vendo de longe o que passou, você acaba percebendo, que faz sim parte do tempo
distancia um pouco mais que pesa no peito, pesa aqui dentro, o valor de suas escolhas
vai indo e vai rindo sempre no corpo mais um remendo vai assim seguindo que você verá
há sim otimismo capaz de se procriar

ponha as coisas no colo, no devido tempo
cultive a mesmice não com o mesmo
mas com outro afeto, afeto é mesmo algo que dá o sustento preciso

hoje eu longe vejo que o mundo é maior do que algum meu colapso
eu hoje vendo na rua certas coisas que dentro eu não faço
e isso me ameniza, cria em mim alguma ordem capaz de seguir
isso eu hoje olho e a sujeira vai mais além daquela que pensei deter

parece que os amores estão morrendo
mas agora vejo que dentro de mim eles habitam
eles resistem sobrevivem eles são a própria virtude
ser amante é ser destino
é ser cravado no tempo é ser necessidade eu preciso

hoje vendo aqui de longe
eu percebo como o mundo desespera mais alto
como diante das minhas coisas com meu olhar
tudo vai se entortando e por isso está sendo incrível hoje eu me afastar
eu longe das minhas doenças, longe do quarto da sala da casa
eu longe do mesmo café de cada dia
eu descobrindo pelo mundo outras possíveis azias
outras possíveis magias que meu olhar
eu sinto agora eu vejo
era incapaz de deter

fica, eu peço outra vez
o nosso problema é com a partida
por isso eu peço, outra vez
fica mais um segundo
que a gente faz de novo
errando sim de novo também
mas indo num só impulso e acertando o que vem a seguir

eu nem sei o que vem
eu nem sei, importa não saber
importa seguir feito cego seguir não fingindo
mas sentindo que venha a ser o não compreender
(bocejo: é pura existência)

se eu te peço hoje fica
é porque alguma ânsia corrói as certezas
e me faz ser diferente (da mesma forma)
importa ficar
persistir nas poças
durar
ser mais osso e menos carne
ir devorando pelos instintos e acordando
sempre mais
e mais tarde

acordando sempre na hora de uma próxima refeição
outro dia eu acordei na sesta
e vi meus pais tirando um cochilo
outro dia eu acordei na sesta
e todos dormiam
eternamente dormindo
num silêncio de há séculos
fica
que eu divido essa poça com você
fica que juntos a gente inventa esse novo alvorecer

se hoje eu te peço algo assim tão concreto
- o seu ficar -
é porque há clareza no verbo
há clareza no peito a transbordar
e eu mais outra vez me permiti ser
justo o que sou
a complexidão infinita
íntima
imprecisa
in.falível.
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