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sábado, 6 de outubro de 2018

Otimismo, esperança e partilha


Rio de Janeiro
Sábado, 06 de outubro de 2018
10h06/11h39.

Oi, gente –

Precisei escrever para desenhar melhor o modo pelo qual venho sentindo a atual situação política brasileira e percebo que, ao fazer isso, estou em busca de um cuidado, o cuidado de algo muito valioso para mim: o otimismo frente a uma época tão investida no extermínio de (quase) tudo e (quase) todos.

Em primeiro lugar, escrevo porque luto – de variadas maneiras, por meio de distintas ações – escrevo porque luto contra o fascismo. E o fascismo, para mim, em sua definição mais aterradora, diz respeito à linguagem. Fascismo não diz respeito à censura, não diz respeito a impedir alguém de dizer algo: diz respeito a uma imposição feita de A a B visando com que esse B diga exatamente aquilo que A quer que B passe a dizer. O fascismo é a colonização via linguagem. E eis o nosso momento, não? Uma grande fraqueza forte se move produzindo e divulgando, compartilhando e tatuando na sensibilidade – já tão judiada – do povo brasileiro, algumas frases, um monte de morais, tantas outras direções sem sentido.

Eis, para mim, o fascismo. É por isso que comecei falando sobre o otimismo. Otimismo (talvez nem seja essa a palavra, mas por agora será) não é uma busca alienada por leveza num momento tão grave; não é uma tentativa de livrar-se do instante presente com promessas de um futuro melhor; nada disso. Para mim, otimismo diz respeito à capacidade de se manter firme num espaço-tempo em que já não se escuta tanto, no qual já não se sabe dialogar, tempo-espaço em que a arma é o verbo e não param de nos metralhar suas balas: verdades generalizantes, fórmulas simplificadoras, coisas mortas e fechadas no lugar de existências-movimentos que ainda vibram, que ainda manifestam a vida (que é esse respirar incessante, esse meio do caminho inevitável entre tantas e tantas agruras e belezas).

Quis escrever porque vou votar no Fernando Haddad sim. E isso aqui não é campanha política, é apenas política. Não é uma discussão sobre siglas, coligações, ódios e maravilhas. É uma proposição, um propósito. Um gesto com intencionalidade e movido por um otimismo fundante e enraizado, nascido de um olhar observador do mundo, um olhar que não tolera e não se dispõe à gritaria dos ódios e seus afins. Ciro Gomes não tem condições de ir para o segundo turno (não se inebriem tanto com a propaganda). Já sabemos que Haddad estará no segundo turno. Fizeram e conseguiram tirar o Lula das eleições, mas não é sobre o Lula, é sobre um propósito, não é sobre “corrupção” nem “tríplex”, nem sobre esse papo de “ficha limpa” que é de uma ingenuidade assustadora: somos todos “ficha suja” porque a sujeira é parte da vida, então que a gente pare de moralizar o coleguinha ao lado. Observem: o que mais estamos ouvindo nos últimos dias antes desse primeiro turno é sobre como o antipetismo vai destruir tudo e nos fazer ter Bolsonaro como presidente. Eis outra marola no ar: o antipetismo, o Lula é um bandido, a Dilma sofreu um impeachment e porque era isso ou aquilo e por aí vai. O fascismo – a imposição do que dizer, de como se sentir – segue agindo sobre nossos desejos e suas falas. É preciso estar atento e respirar fundo pelo nariz soltando o ar velho pela boca.

Não votarei em Ciro Gomes, não por ele nem por seu projeto, mas porque acredito que Haddad – e o meu, o nosso otimismo – precisa vencer essas eleições. É uma questão energética, material e imaterial, e tudo isso anda junto: a possibilidade de um governo de esquerda e a alegria de fazê-lo ser eleito. O que é isso de esquerda? Não me interessa a sua definição ontológica. Interessa-me uma esquerda performativa, quer dizer, interessa como o meu corpo se sente mais potente quando o movimento mais para o lado de lá do que para o lado de cá: esquerda (como o lado de lá, o lado a lado com o outro) como um caminho que preza pela partilha do comum, direita (o lado de cá, do meu umbigo e apenas ele) como um caminho que não. Posso estar sendo simplório na abordagem, afinal, tantos estudos e histórias conceituam melhor essas noções, mas fico com o mais imediato e mais rente ao meu corpo: existem pessoas que estão sim interessadas num mundo partilhado e outras que acreditam que partilhar o mundo é perder o que se tem. Eu sou das pessoas que não precisa ter mais nem ter tanto. Penso nas minhas amigas e nos meus amigos: o amor que tenho por elxs, o amor delxs por mim é tão imenso, tão grande, tão tanto. Eu sou amor, por isso não temo partilhar, pois já compreendi que quanto mais dou, mais ainda eu recebo. Sou das pessoas que compreende que a partilha é o único gesto capaz de sustentar uma sociedade entre seres humanos.

Cessem as morais já mortas e, ainda agora, tão presentes por meio de tantas fantasmagorias: a tradição, a moral cristã, não é possível falarmos de política e enfiarmos, de frase em frase, “graças a Deus” ou “pelo amor de Deus”. Deus é uma construção e ele está sendo usado – a despeito d’ele próprio – para perpetuar violências sem fim. Não tem nada a ver com Deus. Deus não está no meio da conversa, ele não fala, não aparece, não comparece, não tem e-mail nem residência, Deus não tem título de eleitor. Não se faz política lidando com e através dessas categorias afastadas, separadas e sagradas. Política, como a vejo, é rente ao corpo. E não é – unicamente – ir às ruas, sabem? Política é saber conversar consigo mesmo e com mais um, com mais outro ser, é testar essa capacidade incessante de partilhar tempo e espaço, partilhar distinção de olhares e pontos de vista, coexistência de cores e desejos, respeito mútuo e mútua aceitação.

Há um projeto – fascista – dizendo o que pode e o que não pode. Não vai rolar, camaradinhas. Os corpos estão despertos, os desejos manifestos, as falas e seus lugares fincados cada vez em nosso tempo presente. Cessem esse bafafá chato que desloca nosso pensamento para um futuro vindouro e nos tira da agonia que é encarar o dia presente. Pensem comigo: nenhum candidato que for eleito vai ocupar a presidência com tranquilidade. O Brasil está em luta e há luta sim, não se enganem. Há luta, por todos os lados, há lutas movidas por frentes diversas, por diferentes cores, desejos, propósitos e por aí vai. Não percam tempo, não percamos tempo, refutando a instabilidade – inevitável – de nossa época para, em seu lugar, colocar fantasiosas soluções. Não há solução. Não há mundo melhor por vir nem mesmo antes nem agora aqui: só o que há é luta, tentativas, vitórias e derrotas; só o que há é movimento.

É importante que Haddad chegue o mais forte possível ao segundo turno (lembrem-se do otimismo). Bolsonaro não é um governante possível, ele é fachada para um empreendimento. Um descarado cretino – e é mesmo, já sabemos – que está servindo de outdoor para reproduzir e divulgar atrocidades que livram pessoas inúmeras de se comprometer com a tortuosa discussão prática do que é política. Bolsonaro é a imagem corpórea – e flácida – da indiferença. Uma imagem que fala, feito um brinquedo programado a dar coices sempre que você, dono do jogo, quer reclamar no mundo, mas não tem habilidade para fazer isso com o devido cuidado, ou seja, junto.

No segundo turno, se pudermos especular o futuro, a esquerda brasileira (não temam usar o termo “esquerda”), a esquerda brasileira – que tão lindamente se espraia, aparecendo em gestos e contornos diversos – no segundo turno a esquerda brasileira vai seguir movendo a vitória de um Brasil menos fascista. Sempre foi luta, sempre será luta. O otimismo é importante porque eis outro texto alienado e alienante que estão nos empurrando: “agora deixa, perdemos, vamos rezar para nas próximas eleições conseguimos eleger alguém melhor”. Poxa, amigos. Que merda de texto é esse? Que text ruim e viciado. Observem se estamos usando essa fala porque de fato acreditamos nela ou porque ela é ótima para a nossa imensa e estúpida indiferença.

Há jeito sim. Vocês viram? Foram às ruas? Os bandidos quebraram a placa da Marielle e, no dia seguinte, vi pessoas nas ruas do Rio de Janeiro com novas placas com o nome de Marielle em mão, fotografando novas avenidas. Ou ainda estamos perplexos com imagens bidimensionais, divulgadas em JPEG, no Instagram dos candidatos? Ainda confiamos em recortes de intenção de voto feito por institutos e empresas que valorizam o avanço fascista porque é esse avanço que os livra de pagar bilionários impostos? As Organizações Globo e o Ibope. A Folha de São Paulo e o Datafolha. Não penso que devemos cair nesse mundo projetado. O mundo se faz entre gentes e não entre simulações. Há gente sim, muita gente, lutando contra o ensandecimento geral da nação. Isso é otimismo e otimismo tem peso, tem valor.

Percebam quantas violências ocorreram na vida recente do nosso país. Observem quantas respostas a elas foram feitas e continuam se fazendo, observem quantas propostas desenhadas e prontamente realizadas. Nada acabou, tudo segue em movimento. Eu quero mesmo é que o Haddad seja eleito para eu não sair do pé dele, para exigir meus direitos, conversar sobre os direitos de muitas e muitos brasileirxs, eu quero poder conversar com esse “representante” do povo. Porque faz pouco tempo, com bastante ou pouco atraso, estamos descobrindo que não é mais sobre “representação”, mas sobre participação. Sei disso pelos rumos que a arte está tomando, pelos caminhos que o fazer artístico está abrindo nas últimas décadas: não queremos arte pronta que nos diga o que é ser humano e como deve ser o mundo; queremos arte que se possa fazer junto, que abra caminhos para que eu também escreva humanidades mil e outros possíveis mundos, arte que não encerre, mas que saiba convidar. A “representação” vai morrendo – muitas vezes via força e também via delicadeza – para a “presentação”: a vida acontece no agora, não na preparação, não na idealização e no fechamento da “representação”. Vai ter que participar sim. Vamos ter que participar.

Essa abertura não vai acontecer com Bolsonaro: a narrativa dele é representativa, antiga, enfadonha, ou seja, é narrativa fechada, não tolera contágio, não tolera participação nem diferença. Ele é um garoto de programa; sua existência é previamente funcionalizada. Um garoto de programa que te autoriza a gesticular violentamente purgando tudo aquilo que um dia te foi castrado: a violência que ele vende é um engano, uma morfinazinha que segue aprisionando seres humanos na recusa de si mesmos; seres na distância de seus desejos mais carnais e humanos: é gente que tem medo de viado, de lésbica, de trans, de preto, de pobre, é gente que não sabe andar em praça pública. Gente medrosa, odiosa e raivosa, não porque o sejam, mas justamente porque não viveram esse privilégio doloroso do vir a ser quem se é, porque não conseguiram afirmar seus desejos nem a si mesmas nem ao mundo, não conseguiram desejar seus próprios corpos nem sequer um corpo outro, gente que não teve sensibilidade para entrar e navegar nos confins tortuosos da vida: gente que só usa o cu apenas para cagar e que sequer usa papel higiênico, evita proximidades, lava tudo com a duchinha mesmo.

Não estou pedindo o voto de ninguém. Para fazer isso, tenho chegado junto mesmo, nem o faço via telefone. Estou compartilhando o que estou sentindo, como estou sentindo, porque tenho esperanças e acho que esperança é coisa que quando existe, precisa ser se partilhada, compartilhada: quanto mais se dá, mais se alastra.

Com amor, cuidado e calma,
Diogo Liberano

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