sentiu primeiro as pernas pesando
depois percebeu, contrariado, que o nariz respirava estranho
tinha um cheiro sempre que inalava o ar
depois viu-se tonto
e quando realizou
tinha mais açúcar dentro de si
do que do açucareiro
a morte lhe chegava sempre assim,
fazendo piada
sempre lhe vinha, a morte,
sempre sorrateira, fantasiada
ou disfarçada
e mesmo assim, quando vinha
era como se fosse a primeira vez
numa tarde de calor
extremamente desconfortável
ele, já sem nenhum apego pela vida,
convidou a morte para que se aproximasse
serviu-lhe um chá de camomila
lhe disse: "dizem que acalma"
então se olharam
ela estava radiante, calmíssima
ele meio trôpego, ainda lhe faltando energia
"você tem os olhos turvos", ela lhe disse
"por isso não te vejo bem", ele respondeu
e ficaram assim, por alguns minutos,
ele sem vê-la
ela sem sair de seu tamanco
era uma tarde qualquer
ele já nem ligava tanto
acreditou que frente a ela
um novo acordo entre os dois
pudesse aparecer
mas ela não cedia
"pensei que você fosse diferente"
"diferente como?", ela reagiu
"menos reativa, menos dura"
"eu?!", e então riu, ela riu
fazia parte de seu jogo ser assim
incontrolável
"se eu morrer agora, isso te alegra?"
"é evidente que sim!", ela firmou
"e se eu te disser que eu não me importo?"
"você se importa", disse a morte desconfiada
"eu simplesmente não me importo", ele disse
e percebeu
ela não tinha se preparado para ouvir aquilo
e então se ergueu
pegou sua foice
(brincadeira, não tinha foice)
cinicamente derramou a xícara sobre a mesa
e se encaminhou à porta da sala
ele permaneceu quieto
estava tonto ainda, um tanto confuso
ela ainda lhe disse alguma coisa
algo derradeiro
e ele ainda mudo
deu a ela o espelho de sua própria face
"não direi nada, nada lhe devo
não dependo de ti, não tem por ti medo"
e então ela foi
sem deixar pistas
de quando retornaria
ele cochilou em sua poltrona
por longos anos
ciente e tranquilo
de que para além de tantas tardes
uma noite fatídica lhe chegaria
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